A educação antirracista diante do novo ensino médio e da militarização das escolas

Políticas têm sido aprovadas sem atender demandas de estudantes e população negra é a mais prejudicada pelas reformas educacionais

A educação antirracista diante do novo ensino médio e da militarização das escolas

Nos últimos anos, estudantes e escolas de todo país foram impactadas/os por várias mudanças em seu dia a dia: a aprovação do Novo Ensino Médio (Lei 13.415/17), a explosão de escolas cívico-militares, o fechamento das escolas com a pandemia de Covid-19 – nem sempre apoiado por ações que assegurassem a continuidade dos estudos de forma remota – e as várias alterações na lei do Novo Ensino Médio, nunca acompanhadas de aumento de investimento financeiro. Essas várias mudanças tiveram ao menos uma característica em comum: foram construídas e implementadas “de cima para baixo”, sem atender as demandas das e dos jovens, especialmente estudantes negras e negros das periferias, população que é a mais prejudicada pelas reformas educacionais em curso. 

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2023 mostram que cerca de sete em cada 10 jovens que abandonam a escola no Ensino Médio são negras e negros, sendo a necessidade de trabalhar o principal motivo. Apesar da aprovação de uma nova Política para o Ensino Médio em 2024, seguem os desafios com relação ao atendimento educacional de jovens que trabalham, principalmente daquelas e daqueles que abandonaram a escola. E os impactos das reformas educacionais para o Ensino Médio ainda afetam de forma negativa esses/as estudantes. 

Para ser bem sincera, depois da reforma eu dei até uma desanimada da escola, principalmente por causa da parte digital. Sinto que não aprendo tanto só com a tela de celular, é diferente de ter professor explicando. (…) Os mais afetados somos nós que moramos na periferia e, em maior escala, pretos e periféricos. A gente olha mais de fora e vê que quem tem condições melhores, tipo as escolas particulares, não tem o Novo Ensino Médio como a gente. Estou tendo que fazer cursinho popular por fora, e vou concorrer à mesma vaga, com as mesmas exigências, mesmo não tendo o mesmo estudo. Estou indo para a escola para terminar o Ensino Médio, mas dizer que realmente estou aprendendo alguma coisa, eu não estou.

Rebeca*, estudante do 3º ano do EM

Sendo preta e periférica, acho que muitos alunos da minha cor, a gente tem dificuldade de até mesmo seguir com essas plataformas [digitais]. Tá sendo horrível, porque a gente acaba não tendo tempo pra fazer as lições gerais dentro da sala de aula, os professores acabam tendo que fazer um trabalho que não é deles, e isso dificulta muito o ensino. 

Lara, estudante do 3º ano do EM 

Nós queremos ensino médio de qualidade, que a gente possa passar no vestibular, porque projeto de vida não vai me ajudar a passar na Fuvest. Quero que foque exatamente naquilo que a gente precisa pra gente ocupar o lugar que é nosso por direito, porque essa coisa do [novo] ensino médio só foi pra afastar mais e mais a periferia da faculdade. Porque vem aquela coisa “preciso trabalhar”. E dando demandas que a gente não precisa, como projeto de vida, empreendedorismo, afastando a gente mais e mais de uma faculdade pública, a pessoa trabalha mais e mais pra poder pagar uma faculdade particular. 

Bianca, estudante do 3º ano do EM

* Nomes fictícios para os depoimentos das jovens e dos jovens que contribuíram com a reportagem.

Mas o que há de novo no “Novo Ensino Médio”?

Outro fenômeno em franco crescimento em todo o Brasil, e em especial no estado de São Paulo, é a militarização das escolas. Um processo de caráter racista, machista, LGBTfóbico e excludente com estudantes mais vulneráveis, já que a militarização prega pela obediência e pela padronização – que é baseada em ideais brancos, heteronormativos e que privilegia apenas um tipo de masculinidade e feminilidade. 

Por exemplo: em março de 2022, uma estudante baiana negra foi impedida de entrar em sua escola por conta do cabelo crespo, recebendo a ordem de alisá-lo. No mesmo mês, em Santa Catarina, alunas receberam advertência por levar uma bandeira LGBT para a escola. Como destacou Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP e integrante da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação, a militarização “põe a escola a serviço de uma lógica racista de perseguição, de vigilância permanente e de contenção da juventude negra compreendida como uma ameaça à sociedade”. Isso se dá através da imposição de comportamentos rígidos e do silenciamento dos espaços de crítica ao modelo disciplinar militar, além do esvaziamento da gestão democrática e repressão à atuação de coletivos juvenis.

E os dados mostram a urgência de se debater e combater o racismo nas escolas: segundo a pesquisa Percepções do Racismo no Brasil, esse é o tema mais importante a ser debatido, com 69% das pessoas considerando-o prioritário. E cerca de 2 em cada 3 estudantes apontam justamente a escola como o ambiente onde mais o experienciam.

Um dos discursos utilizados para vender o modelo militarizado é de que essas escolas seriam “melhores”. Mas o que os dados mostram é que elas recebem muito mais investimento e que, na verdade, elas já tinham infraestrutura e nota do Ideb acima da média antes de serem militarizadas. E se a adesão à militarização não mudou substantivamente a “qualidade” do ensino nessas unidades, serviu para deixá-las mais excludentes. Isso porque, para aderir ao Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), as escolas tiveram que cumprir requisitos como fechar turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e de ensino noturno – caracterizadas por receberem estudantes trabalhadoras e trabalhadores. 

“Em geral, o perfil das escolas muda depois da militarização: embranquecem, atendem pessoas com mais condições financeiras, passam a ter congestionamento de carros”, descreve Catarina Almeida dos Santos, professora da UnB e especialista em militarização. Catarina ainda pontua o paradoxo de, por questões de segurança, se cogitar ou implementar um modelo liderado pelas mesmas forças responsáveis pela repressão à juventude negra: “É contraditório militarizar a escola com o discurso de garantir segurança e colocar dentro dela exatamente quem não garante a segurança do lado de fora, especialmente para quem é pobre e negro. É porque a sociedade está insegura que a escola também está, e não o contrário. Chamar os responsáveis por essa falha para resolvê-la não resolve nada”. A professora da Unifesp e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), Débora Goulart, complementa: “o que significa para um estudante negro, que tem medo da polícia na rua, tê-la na escola? Sendo a escola esse ambiente que, com todos seus problemas, em geral é onde os jovens conseguem se expressar, se coletivizar e expressar suas identidades. A figura militarizada na escola enfraquece a possibilidade desses grupos se fortalecerem”.

Na minha escola, em comunidade, não ia dar certo. Os alunos estariam em risco. 

Giovana, estudante do 1º ano do EM. 

A militarização nas escolas afeta o jovem negro acho que não só na parte estudantil, mas também o psicológico. Porque querendo ou não essas escolas querem que nós sejamos moldados ao que eles querem, na vestimenta, no cabelo. Então essas escolas são voltadas para que as pessoas percam a capacidade de pensar contra o sistema, entende? Porque pensando contra o sistema vem a revolução e eles não querem a revolução. Com essas escolas eles moldam os alunos pretos e periféricos pra que eles comecem a pensar exatamente da forma que eles querem que a gente pense. E com toda essa revolta contra a militarização isso pra eles está causando uma revolta do caramba, porque pra eles não deveria ser assim, preto não deveria ter voz. Periférico não tem voz. Como assim você tá indo contra o que eu tô falando?  

Bianca, estudante do 3º ano do EM

Ano passado trabalhei com mais pessoas da minha escola para ela não virar cívico-militar nem PEI, por conta da estrutura dela e da própria comunidade que está. Não seria bom para a escola e nem para os professores. E ficaram insistindo para virar, mandaram alguns alunos para outras unidades ver para como eram. Mas na nossa realidade não funciona. Eu agora no pré-exército já estou vendo que se você prestar atenção percebe que é um ambiente muito controlador, tem que seguir tudo à risca, querem bonequinhos. Ou segue à risca ou é humilhado, tem a voz calada.

Leandro, estudante do 3º ano do EM

Acho que seria difícil [se a escola se militarizasse], porque a gente já tem que seguir regras, às vezes a gente não tem muito a oportunidade de dar nossas opiniões, expressar o que a gente pensa, fala, sente. Acho que isso ficaria muito difícil. Acaba tendo muita regra e são pessoas que deveriam proteger nosso povo, nossa periferia, mas acabam prejudicando muito. Acho que isso não funcionaria muito nas escolas. tanto pra nós como pretos ou como qualquer pessoa em geral, LGBTs…acho que não funcionaria muito bem. 

Lara, estudante do 3º ano do EM 

Apostas e caminhos

As juventudes, especialmente as negras, periféricas e LGBTQIA+, sempre encontraram muitas formas de se expressar e de resistir aos sucessivos desmontes. E seguem resistindo à imposição do Novo Ensino Médio, das escolas militarizadas e de políticas que as afetam diretamente. Seguem lutando por uma educação de qualidade, que abra caminhos e oportunidades para o futuro e que as/os escute – por que uma educação antirracista é uma educação que interrompe e corrige desigualdades históricas, o que também inclui assegurar a gestão democrática e a participação efetiva de estudantes

Vai ser a gente pela gente pra tentar mudar a realidade. Se a gente não fizer nada, pra eles tá bom. Então os próprios estudantes que têm que se mover de alguma forma pra mudar a realidade.

Rebeca, estudante do 3º ano do EM

O adolescente negro tá na base, tentando ainda entender os assuntos. E desde que me entendo por gente não vejo recompensa por debater, muitas vezes as escolas não querem que você pense e conheça seu próprio país. Isso é muito frustrante, ir colocando na cabeça das pessoas que se você é de classe baixa, pobre, negro, não pode ser ouvido. Acho que as pessoas deveriam ter mais compaixão, isso ir escalando para quem tem cargos públicos, porque ninguém é melhor do que ninguém, isso foi colocado para a gente seguir regras e ter medo de mudar, de ter um pingo de esperança.

Leandro, estudante do 3º ano do EM

Acho que a gente deveria se unir mais. Com tudo isso que está acontecendo é mais um direito pra gente se unir e dizer que nós temos vozes, que nós temos direito de fazer o que a gente quer na escola porque nós somos os alunos, temos o direito de expor nossa opinião e falar o que a gente sente.

Lara, estudante do 3º ano do EM

O que a gente pode fazer enquanto estudante periférico é ir pras ruas mesmo. Por que a gente é movimento social né? Pretos e periféricos são movimento social sim, vão pra rua, vão alcançar. Eu e você aqui fazendo reclamação não vai ter voz nenhuma, mas junta um monte de pessoas e vai pra Paulista pra você ver. Vai ter atenção, e quanto mais atenção melhor. Acho que a gente como estudante tem que sim reivindicar nosso direito e ir atrás porque aquela faculdade pública é nossa por direito.  (…) Encontros como o de hoje [dos Projetos SETA e Tô No Rumo] ajudam os jovens a pensar. Todo mundo já pensa nisso, mas ajuda a formular o que tá pensando, sabe? Vai juntando ideias que talvez uma pessoa só não consiga pensar. Todo mundo quer a mesma coisa, uma melhoria, mas só como um todo podemos fazer diferença.

Bianca, estudante do 3º ano do EM

Mais de 100 entidades repudiam a militarização das escolas de São Paulo e a violência Estudantil

Escolas militares acirram desigualdades educacionais, coíbem a expressão da diversidade de gênero e sexualidade e incentivam abusos por parte dos militares

A Articulação Contra o Ultraconservadorismo na Educação, ao lado de mais de 100 organizações que atuam na defesa dos direitos humanos e pelo direito à educação de qualidade, lançou na última sexta-feira (24) uma carta de repúdio ao Projeto de Lei Complementar 9/2024, que institui o Programa de Escola Cívico-Militar, promovido pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Essa coalização também condena a violência policial contra estudantes na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), ocorrida recentemente, que impediu o diálogo e a participação da população no debate. Ação Educativa, Geledés – Instituto da Mulher Negra e Campanha Nacional pelo Direito à Educação são algumas das organizações que assinam a carta.

No dia 21 de maio, durante uma manifestação pacífica contra a militarização das escolas, estudantes foram alvo de violência policial nos corredores da ALESP. Essa ação não apenas feriu os princípios democráticos de livre expressão e participação da sociedade civil, mas também mostrou o risco iminente de intensificação da repressão nas instituições de ensino, caso aconteça a militarização das escolas.


A Ação Educativa acredita que a militarização das escolas públicas fere os princípios de uma educação democrática e inclusiva. “As escolas devem ser espaços de aprendizado e desenvolvimento humano, onde o diálogo, a diversidade e o respeito aos direitos humanos sejam prioridades”, afirma Claudia Bandeira, assessora da área de educação da Ação Educativa e coordenadora da iniciativa De Olho nos Planos.


O Programa de Escola Cívico-Militar, promovido pelo governo estadual, propõe um modelo de gestão militarizado que vai na contramão dessas diretrizes. Em vez de promover um ambiente educacional participativo, esse modelo reforça a disciplina autoritária e a hierarquia militar, desconsiderando as especificidades do processo educativo e a autonomia pedagógica das escolas.


Segundo o documento, o projeto amplia a desvalorização da escola pública e de professores. “Militares terão adicionais de R$ 284,62 para cada jornada de oito horas, o que significa um total de cerca de R$ 5.700 mensais em caso de jornadas semanais de 40 horas. Para professores da educação básica, o salário inicial para a jornada de 40 horas é de R$ 4.505”, relatam as entidades na carta.


As organizações detalham as preocupações com o impacto desse modelo na formação dos estudantes e na gestão escolar. Entre os principais pontos do documento, estão:

  • a militarização fere princípios constitucionais do ensino, como a liberdade de aprender e ensinar e o pluralismo de ideias;
  • os programas de militarização não estão amparados em nenhuma das diretrizes do Plano Nacional de Educação;
  • há diversas denúncias de situações de abusos e assédios moral, físico, psicológico e sexual por agentes militares;
  • programas de militarização promovem desigualdades educacionais, inclusive pela cobrança de taxas em algumas das unidades e exigências de uniformes próprios;
  • escolas militarizadas reforçam estereótipos em relação aos papéis masculinos e femininos, coíbem a expressão da diversidade de gênero e sexualidade, principalmente, de jovens LGBTQIA+. Além disso, elas também reproduzem o racismo estrutural e institucional, impondo padrões estéticos baseados na branquitude e violam a liberdade de crença.

    A Ação Educativa e as demais organizações conclamam a sociedade a se unir contra a militarização das escolas e a violência estudantil, e a lutar por um modelo de educação que realmente promova a cidadania e a inclusão.

    Para acessar a carta completa e apoiar a causa, visite: https://bit.ly/4dSFJqd

Militarização crescente, fechamento de escolas por (in)segurança: como a segurança pública afeta a Educação

Lógica punitivista e de obediência tem se refletido no aumento das escolas militarizadas, enquanto operações policiais desarticuladas nas periferias deixam milhares sem escola

Texto: Nana Soares // Edição: Claudia Bandeira

Tanto educação quanto segurança pública são direitos da população e obrigações do Estado, assegurados pela Constituição Federal. Assim como outros direitos, como saúde e moradia, devem estar articulados e caminhar no mesmo sentido: o de construir uma sociedade cada vez mais democrática, inclusiva e participativa, sem deixar ninguém para trás, segundo os princípios dessa mesma Constituição. Mas essa lógica tem sido cada vez mais ignorada, com políticas de segurança pública interferindo de maneira negativa na garantia do direito à educação. 

A concretização dessa interferência é o crescimento exponencial das escolas militarizadas no país, que aumentaram mais de 20 vezes em apenas uma década, expansão que persiste mesmo após o fim do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM). O exemplo mais recente é o estado de São Paulo, que acaba de aprovar um programa nesse sentido. Mas a segurança pública – ou justamente a falha na garantia dela – também afeta a educação de jovens em todo o país pelo crescente de violência e conflitos territoriais, que fazem com que as escolas fiquem fechadas por vários dias do ano. Essas interrupções cada vez mais frequentes trazem prejuízos para toda a comunidade escolar e somam-se a outros problemas estruturais da Educação. 

Militarização segue em expansão, e melhora de avaliação das escolas não corresponde à realidade

Até o governo Bolsonaro, não havia um esforço nacional para a militarização das escolas – quando a gestão passa parcial ou totalmente para a responsabilidade de forças de segurança. Os estados ou mesmo municípios criavam suas próprias iniciativas – Goiás e Bahia são dois dos locais onde esse modelo está presente há mais tempo. Em 2019, com a criação do PECIM, o cenário mudou: em um contexto de avanço do ultraconservadorismo e do pensamento militarizado e punitivista como um todo, passou a haver um estímulo, inclusive financeiro, para a militarização de escolas em todo o país. Um exemplo é o estado do Paraná, que hoje talvez seja onde o modelo de escolas militarizadas se expande mais rápido e abertamente. 

“O PECIM deixou um lastro de nacionalização em um processo que até então estava em várias unidades da federação, mas não era nacional. Sua criação em alguma medida endossou as narrativas localizadas”, diz a professora Miriam Fabia Alves, da Universidade Federal de Goiás (UFG), e que estuda militarização. 

Alguns dados ilustram esse avanço: o orçamento destinado às escolas cívico-militares mais que triplicou entre 2020 e 2022 (de 18 para 64 milhões de reais). Segundo a Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação (RePME), eram 39 escolas militarizadas no país em 2013, número que passou para 122 em 2018 (ainda antes do PECIM) e saltou para ao menos 816 escolas em 2023. Vale comentar que esse número pode ser ainda maior, uma vez que os modelos de militarização são múltiplos. 

Neste cenário desafiador, o novo governo Lula ainda demorou a revogar o PECIM, fazendo-o somente em julho de 2023, apesar de ter sido orientado a fazer isso desde a fase de transição. A revogação, no entanto, não veio acompanhada da “desmilitarização” das escolas que aderiram ao modelo. Assim, embora não exista mais um programa nacional, a militarização da educação está fortalecida após 4 anos de aportes financeiros e estímulos de todas as ordens. E agora os estados e municípios já têm – e seguem criando – seus próprios programas. 

“A tendência é de regionalização”, explica Amarilis Costa, advogada e diretora Executiva da Rede Liberdade, uma articulação que atua juridicamente em casos de violação de direitos e liberdades individuais, onde se inclui a militarização. Ela reforça que o movimento das escolas cívico-militares hoje acompanha a reorganização do bolsonarismo, e há especialmente duas estratégias: o sucateamento da educação pública e o remodelamento e regionalização da militarização. O remodelamento dos projetos de lei é descrito por Amarilis como uma espécie de “fatiamento” do projeto de militarização, ou a construção da viabilidade dessas escolas a partir de outras dinâmicas do direito administrativo. “Por exemplo, em alguns estados, militares ou ex-militares são colocados como secretários de cultura, educação ou gestores escolares”, explica. Já o sucateamento da escola pública “é mais discreto e parece dissociado da militarização, mas está super conectado uma vez que reforça o argumento da escola cívico-militar [ECM] como uma melhoria”, diz. Nessa linha entrariam ações tomadas pelo governo Tarcísio em São Paulo ainda antes do anúncio do programa de militarização, como a restrição da liberdade de cátedra dos professores e o que é ofertado nos conteúdos e atividades a estudantes. Não por acaso, a gestão não demorou a anunciar a adesão às escolas cívico-militares. 

Por que militarizar vai contra o direito à Educação 

A militarização das escolas vai contra diretrizes constitucionais para a educação, acirra desigualdades e reforça o racismo, o machismo e a LGBTfobia nas escolas. Para a pesquisadora Catarina de Almeida Santos, a padronização de corpos e sujeitos é a contramão do que deveria ser o papel da escola. A lógica de obediência e de modelo único, em contrapartida ao reforço e valorização das diversidades, pode enfraquecer também a gestão democrática e o próprio papel das escolas públicas. 

“A militarização se apresenta como ‘neutra’, uma contranarrativa e um combate ao que seria uma escola ‘doutrinadora’. Essa narrativa ganhou muita força no Brasil, um país que flerta com muita frequência com esse super poder dos militares”, diz a professora da UFG, Miriam Fabia Alves. Ela concorda que a supervalorização desse modelo faz parte de um projeto de extrema desvalorização da escola pública, e por isso localiza a disputa também no campo narrativo. “Nós temos dificuldades em todo o país com a atuação das forças de segurança pública, mas ao mesmo tempo supervalorizamos sua atuação dentro da escola. Como as mesmas forças que assassinam podem educar?”, questiona. Vale lembrar que na votação que aprovou o programa de escolas cívico-militares no estado de São Paulo, forças de segurança foram chamadas à sessão justamente para reprimir estudantes que protestavam contra a medida

Além disso, as escolas militarizadas tendem a iniciar, manter ou aprofundar uma lógica de exclusão em relação a quem são os e as estudantes que podem estudar ali. Em Goiás, por exemplo, algumas escolas, apesar de públicas, têm uma taxa de contribuição voluntária. Além disso, alunos que não “se adequam”, seja pelo desempenho escolar ou por outros motivos, podem ser transferidos. “É uma lógica que dificulta o acesso e a permanência, porque nem todas as exigências – de uniforme, contribuição, questão corporal, etc – podem ser cumpridas por todas as pessoas”, reforça a professora Miriam Alves.

Segundo um relatório apresentado pela sociedade civil brasileira a um comitê da ONU em 2023, o investimento público feito nas escolas militarizadas tem sido significativamente maior que o direcionado às escolas públicas comuns, o que tem como efeito ampliar a segregação étnicorracial e de classe no sistema de ensino. As exigências/exclusões e o maior investimento podem, portanto, justificar porquê as ECMs são frequentemente exaltadas como um “modelo vencedor”, tendo como base o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). 

Mas essa ideia não é sustentada pelos dados. A geógrafa Rafaela Miyake mapeou o perfil das primeiras escolas a aderirem ao PECIM e observou que muitas das unidades já tinham infraestrutura e nota do Ideb acima da média antes do PECIM. Isto é, não foi a militarização que elevou sua qualidade. Outros estudos e levantamentos já tinham percebido esse mesmo padrão, e também ressaltam o maior orçamento destinado às ECMs. 

“A conclusão do mapeamento, e o choque, foi perceber que o projeto piloto [do PECIM] na verdade foi uma tentativa de convencimento da opinião pública de que a militarização melhora a escola. Mas elas já eram boas antes”, explica Rafaela, que continua o mapeamento em seu mestrado no Departamento de Geografia da USP. Das 54 escolas do projeto piloto: 49 já tinham biblioteca quando aderiram ao PECIM (90%); 45 já tinham laboratório de informática (83%); 41 já tinham salas de atendimento especial (76%); 36 já tinham quadra coberta (67%) e 27 já tinham laboratório de ciências (50%). As informações foram enviadas a Rafaela pelo INEP através da Lei de Acesso à Informação. E 20 das 54 escolas já tinham alcançado a meta projetada no Ideb (dados extraídos do Censo Escolar). Em relação à situação de vulnerabilidade social, Rafaela também observou que boa parte dos alunos já figurava em índices já diferenciados segundo o censo escolar (índices 3 e 4). “Pensando na realidade da escola pública, já era um quadro de exceção”, reforça a pesquisadora. 

A adesão ao PECIM, conforme observado pelo mapeamento, tornou as escolas mais excludentes, já que muitas delas tiveram que fechar turmas para poder se adequar ao Programa. As escolas que aderiram ao projeto piloto não poderiam, por exemplo, ter turmas noturnas, de Educação de Jovens e Adultos (EJA), entre outros requisitos. Mas no momento da adesão eram cerca de 300 turmas de EJA, com quase 8 mil matrículas. “O que aconteceu com essas pessoas após a adesão?”, questiona a pesquisadora. “[Com a militarização], a avaliação pode até aumentar, mas a prestação de serviços para a população piora: as vagas diminuem, além das escolas – sem noturno e sem EJA – passarem a ter menor complexidade na gestão e menor evasão”, reitera Rafaela. A pesquisadora segue seu mapeamento, agora focada nos programas estaduais de Goiás e Paraná – neste último, que é fruto do PECIM, já se notam os mesmos padrões de exclusão.

Operações policiais e conflitos territoriais: fechamento de escolas cada vez mais comum

Os dados sobre a militarização mostram que ela não é uma solução para a educação pública. Mas além disso, há outra complexidade na relação entre educação e segurança: no Brasil, as ações, estratégias e políticas de segurança pública têm reforçado exclusões e desigualdades educacionais e negado o direito à educação a estudantes mais pobres, de periferias, negras e negros. 

O exemplo mais flagrante dessas violações é a quantidade de dias letivos perdidos por alunas e alunos por conta de conflitos territoriais ou operações policiais. No Rio de Janeiro, em 2023, 257 escolas não abriram ou precisaram fechar por conta da violência urbana – isso apenas nos primeiros 45 dias letivos do ano. Foram mais de 85 mil  estudantes sem aulas, ou 13.5% da rede municipal. Outra pesquisa, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), analisou dados de 2019 e aferiu que nada menos do que 74% das escolas cariocas tiveram pelo menos um tiroteio em seu entorno naquele ano. E a estimativa de redução de aprendizado chegou a 64% em português e em perda completa em matemática. 

O Complexo da Maré sempre figura entre as regiões mais afetadas por esse fenômeno. Lá, onde moram 160 mil pessoas, estudam cerca de 20 mil alunas e alunos em 50 escolas. Segundo dados compilados pela organização Redes da Maré, foram 146 dias sem aula de 2016 a 2023, e em 2024 já eram 10 dias de escolas fechadas apenas nos 4 primeiros meses do ano. Uma média de 25 dias sem aulas a cada ano. Isso significa que nos 11 anos de escolarização obrigatória de uma estudante da Maré, a violência pode ter deixado sua escola fechada por mais de um ano letivo completo. 

“Quando penso na relação entre educação e segurança pública, penso em violação de vários direitos: do direito à educação, do direito de ir e vir, do próprio direito à segurança pública”, resume Andreia Martins, pesquisadora da Redes da Maré e ativista do Fundo Malala. “O mesmo estado que propõe ações truculentas de combate ao crime organizado é o que deveria estar fornecendo educação, mas as operações violam esse direito ao fechar escolas”, completa ela. 

Os problemas causados pela violência se acumulam, uma vez que têm impactos na saúde física e mental de toda a comunidade escolar, além de apresentar um desafio logístico e até trabalhista para repor as aulas perdidas. “No dia seguinte não é uma aula normal, as aulas não têm como ser as mesmas quando a escola ficou fechada por tiroteio, quando pessoas foram baleadas. Além da violação do dia a dia, as pessoas ficam fragilizadas e adoecem. É muito difícil criar um ambiente propício para o desenvolvimento cognitivo, para a produção de conhecimento entre estudantes e docentes com tantas fragilidades”, pontua Andreia. “A Secretaria de Educação do município, que diz ter um plano de mitigação desses efeitos, propõe, para o dia não ser ‘perdido’, aulas remotas ou envio de atividades remotas. Mas pesquisas que nós mesmos já conduzimos durante a pandemia já mostraram que os estudantes não têm condição de acompanhar essa aula”, reforça a pesquisadora, destacando desafios como o acesso às tecnologias e conexões adequadas para as aulas remotas. 

Esse ponto, comum a outras escolas do Brasil, especialmente de periferias, merece destaque. Andreia faz questão de lembrar que, quando o assunto é educação, há outros problemas na Maré que não só a violência, agenda que acaba ganhando destaque enquanto há outras fragilidades no território, como a falta de infraestrutura das escolas, a dificuldade de vagas para todas e todos estudantes do Complexo e a ausência de outros órgãos de assistência à população. “É perigoso porque o discurso do Estado para justificar a precariedade dos serviços oferecidos é muito pautado na violência, sendo que há muitas coisas que independem disso. É preciso superar esse discurso”, resume. “O problema não é só a violência, mas o olhar do Estado na implementação de políticas para esse território, que passa também, mas não só, pela política de segurança pública”. 

Articulações para reverter esse cenário: mobilização social e investidas no judiciário

Nesse contexto de crescente militarização, a mobilização social é cada vez mais importante, e tem encontrado, no Judiciário, um caminho para conseguir frear ou reverter alguns desses retrocessos. “Se por um lado a regionalização e desmantelamento dos programas são um desafio e dificultam seu mapeamento, o fato de não virem mais de cima [nível federal] também nos dá melhores argumentos e articulações no sentido jurídico”, avalia Amarilis Costa, diretora executiva da Rede Liberdade, organização que atua fortemente nessa pauta. A Rede tem insistido muito na inconstitucionalidade das escolas cívico-militares, citando especialmente – mas não só – os artigos 37 e 206 da Constituição Federal, que versam sobre a pluralidade de saberes, gestão democrática, valorização de profissionais, entre outros. 

Por isso, inclusive, a “facilitação” à militarização por meio do sucateamento da escola pública pode ser mais desafiadora, já que não há menções diretas à militarização. Da mesma maneira, as muitas maneiras de implementar escolas cívico-militares no país também são um desafio a mais para o litígio no âmbito jurídico. “São políticas sempre em curso e em constante alteração”, diz Amarilis, explicando que novas estratégias de implementação de escolas cívico-militares são utilizadas tão logo se consegue construir os argumentos jurídicos para desmobilizá-las. 

Daí a importância da sociedade civil articulada e mobilizada na pressão social e na disputa de narrativas. “Com todos os desafios, temos tido avanços consideráveis no repúdio a esse modelo, mas sabemos que o imaginário de violência e retrocesso vai se enraizando e afeta especialmente territórios do sul global. Por isso, a mobilização da sociedade civil é fundamental, já que as respostas institucionais e do judiciário nem sempre alcançam o tempo da resposta política”, diz Amarilis. 

No caso de São Paulo, a Articulação Contra o Ultraconservadorismo na Educação, ao lado de mais de 100 organizações que atuam na defesa dos direitos humanos e pelo direito à educação de qualidade, lançou uma Carta de Repúdio ao Programa de Escola Cívico-Militar, promovido pelo governador, Tarcísio de Freitas, alertando que escolas militares acirram desigualdades educacionais, coíbem a expressão da diversidade de gênero e sexualidade e incentivam abusos por parte dos militares. Além disso, elas também reproduzem o racismo estrutural e institucional, impondo padrões estéticos baseados na branquitude e violam a liberdade de crença.

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>> Informe-se sobre as mobilizações da União Brasileira de Estudantes Secundaristas

Número de escolas militarizadas cresce 21 vezes em 10 anos

Entidades denunciam violações de direitos humanos na educação em comitê da ONU

A Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação, Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação – RePME, Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Ação Educativa, coletivo Professor@s Contra o Escola sem Partido e Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil, com o apoio da Clínica de Políticas Públicas e Direitos Humanos da Universidade Federal do ABC (CPPDH/UFABC) enviaram um relatório Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC) da Organização das Nações Unidas (ONU), destacando a preocupação com o cenário de censura, intimidação e violências na educação básica e solicitando que sejam feitas recomendações ao Estado brasileiro para enfrentamento dessa situação nas escolas. As denúncias foram reiteradas em reunião informal realizada, de forma híbrida, nesta quarta-feira (27/9), com membros do Comitê DESC e organizações da sociedade civil brasileira.

Em um período de dez anos, o Brasil passou por um crescimento de 21 vezes no número de escolas de educação básica militarizadas. As violações de direitos humanos nesse modelo de escola, assim como a perseguição sistemática a educadores, foram denunciadas por entidades educacionais ao Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC) da Organização das Nações Unidas (ONU), que revisará o cumprimento por parte do Brasil do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

+ Ver mais: Para maioria da população brasileira, educação deve ser mais confiada a professoras(es) do que a militares

O dado, inédito e alarmante, foi calculado pela Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação – RePME. Segundo as estimativas, o país tinha 39 escolas militarizadas em 2013. Em 2018, eram 122 as unidades que tiveram sua administração transferida, total ou parcialmente, para policiais militares, bombeiros militares e forças armadas, número que atingiu pelo menos 816 escolas em 2023. As pesquisadoras apontam que o crescimento se intensificou durante o governo Bolsonaro, que criou o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), que implantou 216 escolas militarizadas em todos os 26 estados, no Distrito Federal e em 188 municípios brasileiros. Esses dados indicam que o PECIM teve um papel de disseminação da militarização, que foi além da adesão direta ao programa.

“Por princípio legal, por incompatibilidade educativa e pedagógica, nenhuma escola deveria ser militarizada. A expansão da militarização das escolas no Brasil, já com mais de 800 escolas, é o caminho da anti-educação”, afirma Catarina de Almeida, Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FE-UnB) e integrante da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação (RePME).

Em julho, o governo federal revogou o decreto que criava o PECIM. Porém, o presidente Lula e o ministro da Educação, Camilo Santana, têm ressaltado que a continuidade do processo de militarização é decisão autônoma de cada ente federado. Após a revogação, diversos governos estaduais manifestaram que manterão e expandirão o processo de militarização, com a criação de novos programas nos respectivos territórios. “Na prática, o governo federal se omite do dever de coordenação federativa da educação nacional. Repete-se a postura que prevaleceu até 2018, porém em um contexto em que a militarização está muito mais disseminada”, comenta Salomão Ximenes, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e integrante da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação e da Rede Escola Pública e Universidade (REPU).

Escolas militarizadas recebem mais investimentos

No relatório apresentado ao comitê da ONU, as entidades alertam que o investimento público feito nas escolas militarizadas é significativamente maior que o direcionado às escolas públicas comuns, o que tem como efeito ampliar a segregação etnicorracial e de classe no sistema de ensino; e que a adoção de disciplina militar incompatível com o regime de direitos humanos na educação. Por isso, pedem que o Comitê recomende ao Estado brasileiro que adote medidas para desmilitarização das escolas públicas e promoção da gestão democrática e da educação em direitos humanos.

Na manhã desta quarta-feira, dia 27 de setembro, a coalizão de entidades respondeu a questionamentos das/os relatoras/es do Comitê Desc sobre o relatório, em sessão com entidades da sociedade civil. Bárbara Lopes, coordenadora do projeto Gênero e Educação da Ação Educativa, destacou que o enfrentamento à violência em escolas passa pela gestão democrática, pelos debates sobre gênero e raça e pela valorização dos profissionais da educação.  

Perseguição a docentes nas escolas

Outro ponto levado ao Comitê sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU é a perseguição sistemática a educadores, um fenômeno que envolve a difusão de desinformação, discursos de ódio contra professores, negacionismo científico e centenas de projetos de lei para censurar a atividade docente. Segundo as entidades, têm sido comuns os casos de demissões sumárias ou processos administrativos, de intimidação no trabalho e de exposição em redes sociais, levando a ameaças e agressões contra esses profissionais.

Fernanda Moura, do coletivo Professor@s contra o Escola sem Partido, explica que essa situação tem criado um clima de medo e autocensura, que impedem o direito de estudantes de receberem informações sobre diversos temas, como gênero e sexualidade, racismo, meio ambiente, história e ciências. “O Estado precisa reconhecer que professores são defensores de direitos humanos, que têm garantido que crianças, adolescentes e jovens possam participar de debates sobre as enormes desigualdades do país e sobre sua realidade, se constituindo como sujeitos de direitos. Por isso, precisam de políticas de proteção e reparação nos casos de perseguição”,  destaca.

Veja aqui o Relatório “Paralelo sobre a situação de crescente militarização da Educação Básica, perseguição sistemática a educadores e educadoras e censura às temáticas de direitos humanos nas escolas do Brasil”, em inglês e português

Contatos para imprensa

Bárbara Lopes | Ação Educativa – 11 95796-5224

Catarina de Almeida Santos | UnB e RePME – 61 8182-3823

Fernanda Moura | Coletivo Professor@s contra o Escola sem Partido – 21 98823-7525

Salomão Ximenes | UFABC e REPU – 11 98224-6069

Sobre as organizações 

Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação é uma coalizão de sociedade civil com dezenas de organizações, redes e entidades dos campos educacional, feminista, antirracista, LGBTQIA+, de direitos humanos, acadêmico, sindical e de setores religiosos comprometidos com a laicidade do Estado; que tem atuado em defesa da liberdade acadêmica e dos direitos humanos na educação brasileira.

A Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação – RePME é uma iniciativa que reúne docentes das diferentes redes e níveis da educação, pesquisadores(as) e ativistas que se dedicam a pesquisar os processos de militarização da educação no Brasil, as relações com a democracia e seus desdobramentos na construção de valores morais e sociais em crianças, adolescentes, jovens e adultos nos diferentes espaços da vida social e, em especial, nas instituições educativas. A RePME tem como objetivo a defesa do direito à educação e seus princípios, instituídos pela Constituição de 1988, nos marcos jurídicos e convenções internacionais, pautando-se pelo respeito à diversidade e as diferenças, assim como na liberdade de organização estudantil, na liberdade de cátedra e organização docente.

A Ação Educativa, Assessoria, Pesquisa e Informação é uma associação civil sem fins lucrativos que há 29 (vinte e nove) anos atua na promoção de direitos educativos, culturais e da juventude com vistas à promoção da democracia, da justiça social e da sustentabilidade socioambiental. No exercício dessa missão, a entidade desenvolve ações ligadas à proteção dos direitos humanos, sobretudo no que tange à promoção dos direitos de jovens e adultos à educação pública e à cultura.

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação tem mais de vinte anos de ações em defesa do direito à educação, especialmente pela constante atuação e influência na formulação de normas e políticas públicas educacionais. É a articulação mais ampla e plural no campo da educação no Brasil, presente em todos os estados e no DF, constituindo-se como uma rede que articula centenas de grupos e entidades distribuídas por todo o país, incluindo comunidades escolares, movimentos sociais, sindicatos, organizações não-governamentais nacionais e internacionais, grupos universitários, estudantis, juvenis e comunitários, além de milhares de cidadãos que acreditam na construção de um país justo e sustentável por meio da oferta de uma educação pública de qualidade. A missão da Campanha é atuar pela efetivação e ampliação das políticas educacionais para que todas as pessoas tenham garantido seu direito a uma educação pública, gratuita, inclusiva, laica, e de qualidade no Brasil.

A Plataforma DHESCA Brasil é uma rede que existe há 20 anos formada  por 49 organizações e articulações da sociedade civil, que tem como objetivos desenvolver ações de promoção e defesa dos direitos humanos e incidir em prol da reparação de violações. O trabalho da Plataforma Dhesca visa fortalecer a atuação da sociedade civil brasileira em prol de justiça socioambiental, da democracia e dos direitos humanos e da superação do racismo, do sexismo e de outras discriminações e desigualdades que impactam estruturalmente a realidade brasileira.

O Professores contra o Escola Sem Partido começou como uma página no Facebook de reunião e divulgação de notícias relativas aos avanços do grupo Escola Sem Partido de forma a alimentar a defesa dos/as educadores/as. Atualmente, é um observatório de professoras/es e pesquisadoras/es da Educação que estudam, para combater, os movimentos e estratégias de censura da educação.A Clínica de Políticas Públicas e Direitos Humanos da Universidade Federal do ABC (CPPDH/UFABC) é uma iniciativa de apoio técnico, jurídico e operacional às organizações, redes e movimentos de direitos humanos que, aliando ações de extensão, pesquisa e ensino envolve estudantes, professores(as) e pesquisadores(as) com os objetivos de fortalecer a atuação da sociedade civil em defesa de políticas públicas coerentes com os direitos humanos inscritos na Constituição e nas normas jurídicas internacionais e inserir o compromisso com os direitos humanos na formação básica de estudantes da UFABC.

200 entidades pedem desmilitarização da educação e da vida a Lula

Em carta, entidades pressionam o governo pelo fim do Programa Nacional das Escolas Cívico- Militares e alertam que a militarização viola garantias constitucionais e os direitos de crianças, adolescentes, jovens e dos profissionais da educação.

200 entidades pedem desmilitarização da educação e da vida a Lula

Duzentas entidades pedem a revogação do decreto que institui o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM). Em carta, as entidades apresentam as razões pelas quais o governo federal deve abolir imediatamente o PECIM e indica uma série de propostas para dar fim ao processo de militarização não só do ensino, mas também da vida da população brasileira.

“A desmilitarização da educação e das escolas é condição para garantia do direito à educação e a formação para combater e desnaturalizar todas as formas de violência, sobretudo as violências raciais e de gênero, que tem encarcerado a juventude preta e periférica e ceifado as vidas  de tantas mulheres”, afirma Catarina de Almeida Santos, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (FE-UnB) e integrante da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação (RePME).

Militarização da escola e violação de direitos

A reivindicação da sociedade civil não é de agora. Desde que foi assinado em 2019, o decreto é alvo de alerta das entidades ao governo federal, pois fere princípios e direitos estabelecidos na Constituição Federal, no Estatuto da Criança e do Adolescente, no Estatuto da Juventude e em outras normativas.

As entidades informam ainda que os programas de militarização não estão amparados pelo Plano Nacional de Educação e que escolas militarizadas violam liberdades de expressão, de organização e de associação sindical dos professores. Alvos de diversas denúncias de assédio moral e sexual e de abusos, tais escolas não são mais seguras e ampliam violações de direitos e violências.

A carta pode ser lida na íntegra aqui: bit.ly/cartadesmilitarizacao

Por isso, as entidades apresentam uma série de propostas que o governo federal deve adotar, tais como, o fim dos programas de militarização de escolas públicas, a suspensão dos processos de militarização escolar em curso e a desmilitarização das escolas militarizadas; bem como a criação de políticas públicas nas áreas da convivência e gestão democráticas na escola, a retomada dos planos e programas para a educação em direitos humanos e medidas de justiça de transição para superação do legado autoritário do Brasil.

“A militarização também vai na contramão da valorização das(os) profissionais da educação escolar, ao incluir nas equipes de gestão militares em desvio de função, sem qualificação para o trabalho pedagógico e em desacordo com a definição legal sobre as profissões da educação escolar”, afirma Salomão Ximenes, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e integrante da Articulação contra o Ultraconservadorismo  na Educação e da Rede Escola Pública e Universidade (REPU)

O documento está sendo encaminhado ao Ministério da Educação. “É fundamental que o governo federal, cuja eleição representou uma vitória da democracia, tenha ações firmes para a desmilitarização da educação. Tínhamos expectativa que o fim do PECIM ocorresse na primeira semana de governo Lula. Não entendemos essa demora. É urgente revogar o Programa e cultivar a cultura democrática em nossas escolas e na sociedade como um todo”, enfatiza Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) e integrante da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação e da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala no Brasil.

Para maioria da população brasileira, educação deve ser mais confiada a professoras(es) do que a militares

Pesquisa revela que sete em dez pessoas afirmam confiar mais em professoras(es) do que em militares para trabalhar em escolas. Os dados ainda evidenciam o descompasso entre o que é visto como prioridade pelo governo federal e as reais demandas da população brasileira quanto à educação.

Gênero e Educação - Para maioria da população brasileira, educação deve ser mais confiada a professoras(es) do que a militares

Enquanto o governo federal triplica o valor destinado à implementação de escolas cívico-militares, que correspondem a menos de 0,1% das escolas públicas do país, a maioria da população brasileira (72%) afirma que confia mais em professoras(es) do que militares para atuar nas escolas. Isso é o que revelam os dados da pesquisa Educação, Valores e Direitos, coordenada pelas organizações da sociedade civil Ação Educativa e Cenpec, com  realização do Centro de Estudos em Opinião Pública (Cesop/Unicamp) e Instituto Datafolha, e recursos do Fundo Malala. Para esse estudo, 2.090 pessoas de todas as regiões do país foram ouvidas sobre questões consideradas polêmicas da agenda política educacional. 

Os resultados da pesquisa endossam a fragilidade da tese defendida pelo governo de que investir em um modelo disciplinar de educação ajudaria a melhorar a qualidade de ensino. Para a população, a ausência de investimentos nas escolas públicas, os baixos salários e a desvalorização docente seriam os principais gargalos da educação – enquanto fatores como a falta de disciplina das(os) estudantes (10%) e qualidade das professoras(es) (6%), por exemplo, figuram entre os menos citados.

De fato, o forte apelo da “ordem e disciplina” sobre as escolas militarizadas é notado pelo público entrevistado. Apesar de poucos conhecerem o modelo, as pessoas associam essas escolas à “manutenção da ordem” e a bons equipamentos para atividades escolares (veja os gráficos ao fim do texto). 

“Essa associação vem da confusão que se faz entre os colégios militares e as escolas públicas militarizadas. Tratam-se de modelos diferentes, sendo o primeiro voltado à formação de quadros militares, que recebem investimentos por aluna(o) quase quatro vezes maiores do que o previsto para estudantes de escolas públicas regulares. E a segunda diz respeito à inclusão de militares aposentados para atuar na gestão e/ou nas salas de aula”, explica Denise Carreira, coordenadora institucional da ONG Ação Educativa e integrante da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala. A especialista complementa: “Essa compreensão equivocada leva a população a achar que as condições diferenciadas das escolas militares seriam garantidas para escolas públicas militarizadas, o que não ocorre de fato”. 

Pauta remanescente da agenda educacional do país na década de 1990, a militarização das escolas ganhou nova projeção ao ser assumida como uma das medidas prioritárias da pasta de educação do atual governo federal. Nesse modelo, considera-se que a melhoria da qualidade do ensino estaria, sobremaneira, baseada na imposição da disciplina e da obediência. “Essas escolas utilizam mecanismos de medo, censura e imposição da ordem. Questões como identidade de gênero, raça, orientação sexual, e tudo o que mais foge de padrões é reprimido, constituindo um ambiente escolar opressor”, elucida Denise.

Para Romualdo Portela de Oliveira, diretor de pesquisa e avaliação do Cenpec, a reprodução da “lógica do quartel”, preconizada por esse modelo, não acompanha os avanços já comprovados por estudos nos campos da educação e da pedagogia, além de caminhar na direção contrária às políticas educacionais de países referências em educação. 

“A escola regular trabalha com a ideia de construção de pactos, de uma educação dialógica e é conduzida por profissionais com formações adequadas. A militarização das escolas é conceitualmente complicada e, na prática, ainda mais inviável. A proposta nada contribui para o enfrentamento das desigualdades educacionais, tampouco para o cumprimento das metas previstas no Plano Nacional de Educação, que precisam ser atingidas até 2024. Ademais, desvaloriza o trabalho docente e fere os princípios da gestão democrática”, analisa o especialista.

A pesquisa Educação, Valores e Direitos ouviu pessoas de 16 anos ou mais em 130 municípios entre 8 e 14 de março de 2022. A margem de erro máxima é de 2 pontos percentuais dentro do nível de confiança de 95%. Dados inéditos sobre outros eixos de análise da pesquisa devem ser divulgados nas próximas semanas.

BAIXE A APRESENTAÇÃO DA PESQUISA (PDF)

Contatos para imprensa

Aline Rezende  (Cenpec) – (13) 99137 7967 | aline.rezende@cenpec.org.brMariana Nepomuceno e Tales Rocha (Ação Educativa) – (11) 97152-4834 e 98870-1089 | mariana.nepomuceno@agenciagalo.com; tales.rocha@agenciagalo.com

Sobre o Cenpec

Cenpec é uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que há mais de 30 anos trabalha pela promoção da equidade e qualidade na educação básica pública brasileira. Por meio da produção de pesquisas e de tecnologias educacionais, contribui no desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens, na formação de profissionais de educação, na ampliação e diversificação do letramento e no fortalecimento da gestão educacional e escolar. Em parceria com redes de ensino, espaços educativos e outras instituições de caráter público e privado, atua dentro e fora das escolas públicas para diminuir as desigualdades e garantir uma educação de qualidade a todos e todas. Saiba mais: www.cenpec.org.br.

Sobre a Ação Educativa

Criada em 1994, é uma organização de direitos humanos, sem fins lucrativos, com uma trajetória dedicada à luta por direitos educativos, culturais e da juventude. Desde a sua fundação, integra um campo político de organizações e movimentos que atuam pela ampliação da democracia com justiça social e sustentabilidade socioambiental, pelo fortalecimento do Estado democrático de direito e pela construção de políticas públicas que superem as profundas desigualdades brasileiras, bem como pela garantia dos direitos humanos para todas as pessoas. Desde 2018, a Ação Educativa é apoiada pelo Fundo Malala.  Saiba mais: https://acaoeducativa.org.br/ | https://generoeeducacao.org.br/

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Os impactos da reforma administrativa na educação

Proposta tira direitos principalmente de servidores públicos da educação e estimula a militarização das escolas públicas.

Depois da Emenda Constitucional 95 (EC 95, o Teto de Gastos), das reformas trabalhista e previdenciária, o novo avanço do governo federal contra os direitos garantidos na Constituição de 1988 é a reforma administrativa. A proposta de emenda à Constituição é uma das prioridades do governo em 2021 e quer alterar as regras do funcionalismo público. Entre as mudanças estão a retirada da estabilidade dos servidores, de benefícios como a licença-prêmio e maior flexibilidade quanto a terceirizações e parcerias com o setor privado.

Todas as fontes ouvidas pela Iniciativa De Olho Nos Planos enfatizaram que a PEC 32 é, na prática, um desmonte do Estado. Sem se basear em evidências, é um mero ataque a trabalhadoras e trabalhadores que terá como resultado a precarização do serviço público, afetando mais quem mais depende dele (os usuários e servidoras e servidores com menores salários). Nota técnica elaborada pelo consultor legislativo Vinícius Leopoldino do Amaral sobre os impactos fiscais da proposta na verdade conclui que “a PEC 32/2020 apresenta diversos efeitos com impactos fiscais adversos, tais como aumento da corrupção, facilitação da captura do Estado por agentes privados e redução da eficiência do setor público em virtude da desestruturação das organizações”. O autor do estudo estima que a reforma administrativa, como colocada nesse momento, deve piorar a situação fiscal da União, seja pelo aumento das despesas, pela redução das receitas ou pela criação de até 1 milhão de cargos de confiança. 

Áreas como saúde e educação devem ser profundamente afetadas pela reforma em diversas frentes: precarização de contratos de trabalho, maior influência do setor privado e  consequentemente a diminuição da liberdade de cátedra. 

Tramitação

Enviada pelo governo para a Câmara ainda em 2020, a PEC da reforma administrativa (PEC 32/2020) já passou pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), que avalia se o projeto é constitucional. Apesar de ter sofrido alterações em três pontos, foi aprovada e seguiu para a tramitação. Em junho, a Câmara instalou a comissão especial que vai discutir o conteúdo da proposta. O deputado Fernando Monteiro (PP-PE) foi eleito presidente e indicou o deputado Arthur Maia (DEM-BA) como relator. Maia, em anos anteriores, votou a favor das reformas previdenciária e trabalhista. 

A previsão é que, nesta comissão, sejam realizadas 14 audiências públicas – entre elas, uma com Paulo Guedes – e o relator apresente seu parecer em agosto. Aí a reforma administrativa vai para apreciação do Congresso. Por ser uma proposta que altera a Constituição, precisa ser votada em dois turnos nos plenários da Câmara e do Senado.

A Proposta

A reforma administrativa proposta pelo governo altera as regras para futuros servidores públicos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União, estados e municípios. Em caso de aprovação, atuais servidores não são atingidos pelas mudanças (mas podem o ser indiretamente, como explicado na próxima seção). Também estão isentos os militares, parlamentares, magistrados (juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores), promotores e procuradores.

Entre seus pontos estão o aumento do estágio probatório, o fim da estabilidade dos servidores, de licença-prêmio, e do regime jurídico único da União. Também aumenta os cargos por indicação (de confiança) e os convênios com a iniciativa privada. O governo argumenta que a reforma visa aumentar a eficiência do Estado e que vai cortar um custo na casa dos 300 milhões de reais em uma década. No entanto, falta embasamento para essas afirmações.

Os Problemas

Conversamos sobre a proposta da reforma administrativa com Pedro Pontual, presidente da Associação Nacional dos Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental (ANESP), Roseli Faria, vice-presidente da Associação Nacional dos Servidores da Carreira de Planejamento e Orçamento (Assecor) e Fátima Silva, secretária-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). Eles apontaram diferentes problemas da PEC e convergiram ao afirmar que a atual proposta, originada do governo Bolsonaro, é intrinsecamente problemática. Ela parte de pressupostos preconceituosos ou, para dizer o mínimo, sem evidências suficientes. Portanto, deve ser barrada, já que mudanças durante a tramitação não alterariam seu teor fundamental. 

Pedro Pontual reforça que a reforma não ouviu especialistas ou usuários/as dos serviços para embasar suas proposições e que não há estudos atestando que o problema do serviço público são os servidores. Também não há avaliação dos impactos dos dispositivos propostos. “É uma PEC orientada pelo preconceito contra os servidores, que parte do princípio que o serviço público é ruim e caro e que por isso é preciso diminuir os gastos na folha de pagamento. Mas isso não leva em conta que Estado e orçamento existem para entregar um serviço e que não há meios do Estado ofertar saúde e educação sem o profissional dessas áreas”. 

Essa discussão é importante porque o governo, embora argumente “melhorar a eficiência” do funcionalismo público, não está discutindo, de fato, como melhorá-la. A discussão não se dá em termos de prestar o mesmo serviço com menos pessoas ou de aumentar o serviço prestado mantendo o número de servidores. A reforma administrativa fala apenas em reduzir pessoal. “Se a reforma estivesse de fato debatendo eficiência, estaria discutindo os resultados e não apenas os gastos”, resume o presidente da ANESP. 

Vale lembrar que o Brasil tem um sistema de saúde universal e gratuito, além de uma grande arquitetura de financiamento da educação. Sendo um dos maiores e mais populosos países do mundo, os gastos absolutos tendem a ser mesmo mais altos. Isso não quer dizer que o valor investido por cidadã/o seja alto. Por exemplo, em 2020 o governo reduziu o valor mínimo por aluno do Fundeb para R$3349,56, cerca de 279 reais mensais por estudante, ou de 16 reais por dia letivo. A União repassa aos estados e municípios, via Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), no máximo R$1,07 per capita para alimentação escolar (valor que chega a um mínimo R$0,32 na Educação de Jovens e Adultos). “No Brasil, é comum que o docente compre material didático com o próprio salário. Isso sim é uma realidade. E que não se resolve ao tirar a estabilidade do servidor ou diminuindo seu salário”, diz Pedro. 

A estabilidade é um mecanismo conquistado na redemocratização, que garante que as trabalhadoras e trabalhadores não serão perseguidos por suas visões, opiniões ou atividades políticas. Como lembra Roseli Faria, da Assecor, esse mecanismo está presente desde o início do século XX nos Estados Unidos, não sendo uma exclusividade brasileira. E também cumpre a função de profissionalizar o serviço público. Mesmo com a estabilidade, garante Roseli, ainda há mecanismos para punir o mau servidor.

Pedro Pontual, presidente da ANESP, concorda. Ele enfatiza que o governo Bolsonaro não fez estudos investigando quais são os males da estabilidade antes de propor acabar com ela. “Existe apenas uma narrativa de que a estabilidade gera preguiça. É uma gestão orientada pelo preconceito”, diz. E, sem estabilidade, servidoras e servidores podem se sentir acuados em discordar de seus chefes, de assinar estudos ou pareceres técnicos, além de haver menos incentivos para especialização e aprimoramento profissional – o que pode ser piorado pela retirada de benefícios como a licença-prêmio. Em contrapartida, a nota técnica do consultor legislativo Vinícius Leopoldino do Amaral calculou que os cargos ocupados por pessoas sem vínculo – o que favorece a corrupção – podem aumentar em até 29% com a aprovação da reforma. 

Além do preconceito embutido nas propostas, muitos mecanismos propostos pela Reforma já estão abarcados na Constituição. Por exemplo, a avaliação dos servidores públicos. Servidores federais não conseguem ter aumento de salário ou progressão de cargo sem a avaliação. “Se é a melhor metodologia ou se a avaliação é dura o suficiente é outra discussão. Mas nada disso precisa de uma PEC, não precisa alterar a Constituição. Se quer reformular, regulamentemos o que já está previsto, coletemos as melhores práticas”, diz Roseli Faria. Por isso, na visão da vice-presidente da Assecor, o atual projeto de reforma administrativa deve levar a um efeito contrário ao anunciado, aumentando o aparelhamento, os desvios de recursos e a corrupção, além da terceirização e mercantilização de serviços essenciais como a saúde e a educação. Como consequência de serviços essenciais mercantilizados e terceirizados, teríamos relações de trabalho mais precarizadas e uma piora no serviço prestado à população. 

Da mesma maneira, os desestímulos aos servidores públicos podem acarretar em uma “seleção adversa”. Isto é, ficam no serviço público apenas quem não conseguiu oportunidades melhores. E isso afeta inclusive os atuais servidores, que tecnicamente não são atingidos pela reforma administrativa. Como explicou Pedro Pontual, as prioridades para licenças, especializações e similares tendem a se direcionar para trabalhadores cujos contratos já estão no novo modelo. Nas palavras de Roseli Faria: “A mercantilização pode vir pela ampliação de contratos com a iniciativa privada, que, como contrapartida, precisa da precarização do trabalho no serviço público, da desprofissionalização das carreiras”. Seriam mecanismos de desprofissionalização não apenas o fim da estabilidade, mas também o aumento de servidores temporários com a expansão do período de estágio probatório, por exemplo.

Impactos na educação e enfrentamento

Os impactos na educação podem vir de diversas maneiras: diminuição ou extinção de concursos públicos, substituições de professoras/es e funcionárias/os por cooperativas e/ou empresas terceirizadas em um contexto de já intensa precarização da área, com porcentagem importante das trabalhadoras e trabalhadores atuando sob contratos temporários. Vale lembrar que 80% das docentes da educação básica brasileira são mulheres que seriam ainda mais prejudicadas com a precarização destes contratos. 

“Além disso, há consequências para os fundos de pensões e previdências do funcionalismo público. Sem concurso e com menos funcionários, como pagar a previdência do próprio quadro atual? Os mais penalizados serão os trabalhadores com os menores salários, os que mais prestam serviços à população”, alerta Fátima Silva, secretária-geral da CNTE. 

Salomão Ximenes, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), vê a Educação impactada em diversas frentes em caso de aprovação da PEC da Reforma Administrativa. Além de abrir um potencial para o setor privado lucrar com a educação pública, a proposta também pode estimular ainda mais a  militarização das escolas. Salomão analisa que o parágrafo 4 do Artigo 142, ao autorizar militares da ativa a acumular o cargo militar com outro cargo ou emprego de profissional da saúde ou do magistério, pode disseminar a presença militar de forma sem precedentes nas escolas. Isso permitiria a militares da  ativa assumir cargos de docência ou gestão nas escolas públicas comuns, sem necessidade de afastamento ou desligamento do cargo militar de origem. 

Ainda, segundo sua análise, a fragmentação do regime jurídico entre cargos típicos de Estado e cargos com vínculo por prazo indeterminado (sem estabilidade) pode afetar a liberdade de cátedra dos servidores públicos da educação. “A estabilidade é elemento central da realização do direito à educação de qualidade. É uma proteção não ao servidor estável, que hoje já pode ser demitido por desvios funcionais ou mal desempenho reiterado, mas ao serviço público de educação. E, em termos quantitativos, são os servidores da educação o maior grupo a ser potencialmente impactado por esta mudança de regime e perda de estabilidade”, explica. 

Como ressalta Fátima Silva, nem mesmo as emendas podem alterar a proposta substancialmente. Apresentada pelo governo Bolsonaro, o enfraquecimento do Estado é o único horizonte. “Não é uma reforma administrativa, é passar os serviços públicos para a iniciativa privada”, diz. O único jeito de barrar o enorme retrocesso é lutando para que a PEC não seja aprovada e pressionando cada parlamentar para tentar virar o jogo.

Texto: Nana Soares | Edição: Cláudia Bandeira