A Educação de Meninas Negras em Tempos de Pandemia: O aprofundamento das desigualdades

Artigo de Jaqueline Santos e Suelaine Carneiro apresenta dados da pesquisa do Geledés: "A educação de meninas negras em tempos de pandemia".

Em arte de colagem, é possível ver uma foto de uma adolescente negra olhando para um notebook.

Há consenso na afirmação de que a pandemia de Covid-19 escancarou as desigualdades já existentes no Brasil. E, quando o tema é abordado por profissionais da área da educação, desenha-se um quadro de desalento das crianças e adolescentes – principalmente pelo fato da educação à distância ter sido assumida, praticamente, como única estratégia de atendimento a estudantes, que, via de regra, têm muitas dificuldades para acessar as plataformas digitais, não possuem dispositivos eletrônicos e tampouco acesso à internet. Além disso, suas famílias, sobrecarregadas, encontram muitas dificuldades para organizar tempo e espaço nas residências para acompanhar as crianças menores que demandam maior atenção durante a realização das atividades escolares.

É preciso refletir sobre algumas questões para que seja possível compreender a dimensão dos problemas educacionais que decorrem dessa atuação negligente do Poder Público frente às demandas legítimas de educação das crianças e adolescentes brasileiros, em período de isolamento social:

  • Qual o perfil das crianças e adolescentes que acessam as atividades remotas/virtuais?
  • Qual o perfil daqueles/as que não acessam tais atividades? Por quais motivos não o fazem?
  • Como se caracteriza o vínculo dessas crianças e desses adolescentes com a escola? Este se mantém?
  • Ocorreu, nesse período, algum tipo de intervenção para que houvesse a preservação desse vínculo?

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Covid-19 (PNAD) revelaram que, em setembro, 6,4 milhões de estudantes (13,9% do total) não tiveram acesso às atividades escolares no Brasil. O mesmo levantamento mostrou que estudantes negros e indígenas sem atividade escolar são o triplo de estudantes brancos: 4,3 milhões de crianças e adolescentes negros e indígenas da rede pública e 1,5 milhão de adolescentes brancas.

De fato, acentuadas pela pandemia, as desigualdades educacionais afetam todos os grupos sociais. Todavia, é inexorável reconhecer que a pandemia amplia as desigualdades educacionais existentes entre pessoas não-brancas e brancas no Brasil.

Imagem: Freepik @prostooleh | Arte: Marcelle Matias

Violações ao direito à alimentação escolar durante a pandemia são objeto de relatório da Plataforma Dhesca

Documento aponta violações ao direito humano à alimentação e indica os casos do Estado do Rio de Janeiro e do município de Remanso (BA) como situações extremas. Relatório apresenta também recomendações.

Em arte de colagem, é possível ver uma foto preto e branco de um prato de comida. No prato há arroz, feijão, alface, carne e abobrinha. Ao fundo da colagem há textura quadriculada.

A Plataforma Dhesca Brasil disponibiliza o Relatório da Missão sobre Violações ao Direito à Alimentação Escolar na Pandemia de Covid-19: Casos do Estado do Rio de Janeiro e do Município de Remanso (Bahia).

Realizada no segundo semestre de 2020, a missão trouxe à tona violações ao Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas (Dhana) no contexto da distribuição de cestas de alimentos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) na pandemia, tais como o não atendimento a todos os estudantes, a má qualidade e irregularidade na distribuição das cestas, a falta de participação social e prestação de contas, além da interrupção da compra de alimentos da agricultura familiar.

Essas violações acontecem no momento em enfrentamos a maior situação de fome das últimas décadas. O recém lançado Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, realizado em dezembro de 2020 mostrou que 19,1 milhões de brasileiros, ou 9% da população, estava em situação de insegurança alimentar grave, uma condição análoga à fome.

O auxílio emergencial foi interrompido de forma abrupta, e está sendo retomado tardiamente e com valor insuficiente, e não há solidariedade da sociedade e filantropia capaz de dar conta de tamanha fome. Por outro lado, nossos governantes têm nas mãos e vem gerindo de forma pouco comprometida o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), um dos mais importante instrumentos para a promoção do direito humano à alimentação de crianças e adolescentes.

“Assegurar a alimentação das crianças e adolescentes mais vulneráveis durante a pandemia deveria ser prioridade para os nossos governantes. Mas não é. O PNAE é a mais potente ferramenta que temos para o enfrentamento da fome. Mas há um enorme descaso. Falta coordenação nacional, recursos públicos e vontade política para fazer alimento de qualidade chegar na mesa de quem precisa.” afirma Mariana Santarelli, responsável pela relatoria.

Ela avalia ainda que a situação tem se agravado com a chegada de novos/as prefeitos/as e secretários/as: “As novas equipes nem sempre estão familiarizadas com a gestão do programa. Há ainda constantes incertezas quanto a volta às aulas. Com isso, o que vemos em muitos lugares é a paralisação na distribuição das cestas, em um momento de agravamento da fome e ausência de auxílio emergencial.”

Para chegar ao diagnóstico das violações, foram realizadas entrevistas remotas com mães de alunos, representantes de grupos de agricultores e pescadores, gestores, professores, membros de conselhos e do Legislativo. A missão contou ainda com a promoção de duas audiências populares, uma das quais contou com a participação do . Relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito Humano à Alimentação, Michael Fakhri.

“Os dois casos relatados foram selecionados pelo que expressam do ponto de vista prático e simbólico. Foram escolhidos por representarem situações extremas, em que se pode afirmar a existência da violação da obrigação de promover e prover o direito humano à alimentação por parte do poder público”, afirma o relatório.

Rio de Janeiro: violação respaldada pelo Supremo Tribunal Federal

A rede estadual de educação do Rio de Janeiro atende cerca de 661.600 alunos, em um total de 1.168 escolas. Para isso, recebe anualmente do FNDE cerca de R$ 59 milhões, orçamento este que é complementado com recursos próprios do governo do estado, totalizando o insuficiente per capita de R$ 1,00 por refeição. Durante a pandemia, o governo do estado do Rio de Janeiro não distribuiu os alimentos de forma regular, com qualidade e a todos os estudantes, além de ter suspendido a compra de alimentos oriundos da agricultura familiar. As decisões foram tomadas sem diálogo com as comunidades escolares e a situação foi objeto de intensa mobilização de familiares, dando origem, inclusive, aos movimentos Mães de Itaboraí e Passeata das Mães.

“A irregularidade da distribuição, a má qualidade da alimentação sugerida e a não aquisição de alimentos frescos e saudáveis da agricultura familiar ferem o que está preconizado na Lei do PNAE”, diz o relatório.

Para além disso, no Rio de Janeiro houve um fator agravante de que o descumprimento da Lei do PNAE foi respaldado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Após o governo estadual do Rio de Janeiro ter descumprido a lei do Programa, uma Ação Civil Pública foi ajuizada pela Defensoria Pública e acatada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), determinando que o Estado distribuísse alimentos a todos os estudantes da rede sob pena de multa. Porém, em 1 de setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a decisão do TJ-RJ.

“Infelizmente com a decisão da mais alta Corte do país, a execução forçada do julgado restou interrompida, o que pode gerar risco à segurança alimentar e nutricional de muitas crianças não só do Estado do Rio de Janeiro, mas de todo o país, uma vez que a decisão do STF tende a ter efeito cascata sobre os processos similares”, analisa a relatoria.

Ouvido durante a missão, o relator da ONU Michael Fakhri ponderou que o modelo de alimentação escolar do Brasil já foi considerado um exemplo para o mundo, mas que, pelos relatos da pandemia, os governos, nos seus diferentes níveis, têm tratado a alimentação não mais como direito, mas como caridade. “O problema com esse modelo de caridade é que isso acaba com a dignidade das pessoas”, analisou ele durante a audiência popular.

Remanso (BA): interrupção de compra de alimentos compromete renda de agricultores e pescadores

Em Remanso (BA), a relatoria também diagnosticou a falta de atendimento universal, já que foi distribuída apenas uma cesta por família,e não por aluno, apenas duas vezes em um período de 6 meses, e com uma quantidade muito pequena de alimentos. Em muitas escolas rurais a cesta nem chegou a ser distribuída.

O agravante neste caso é que, com o fechamento das escolas, houve a interrupção das compras de alimentos via agricultura familiar e pesca artesanal, o que comprometeu a renda de agricultores e pescadores da região. Segundo a relatoria, grupos de agricultores e pescadores que, ao longo de 2019 receberam a quantia de mais de R$ 630 mil com o fornecimento de alimentos para as escolas do município, não receberam nada em 2020.

Esta realidade se reproduz pelo Semiárido. Em 2019, aproximadamente 4,5 mil produtores de alimentos, organizados em 168 grupos produtivos da região, tiveram um rendimento de aproximadamente R$ 27 milhões. Até setembro deste ano, os mesmos coletivos venderam o equivalente a apenas R$ 3,6 milhões o que, em grande medida, corresponde a vendas feitas antes das medidas de isolamento social.

“Chamamos para conversa, fomos conversar com a Secretária de Educação, alguns de nós somos parte do CAE. Fizemos reunião, e deram a desculpa da logística, com discurso de um decreto que desobrigava. E até agora nada aconteceu. O que foi falado é que esse dinheiro não ia ser mexido, porque ia ser guardado até a volta das aulas, guardado pra quando passar a pandemia”, denunciou à relatoria uma representante do Serviço de Assessoria a Organizações Populares (Sasop) que atua junto aos agricultores e pescadores de Remanso.

De acordo com a relatoria, antes do fechamento das escolas, ao menos três grupos formais e 10 informais já haviam assinado contrato com a prefeitura do município para fornecimento de alimentos. “Esperava-se, portanto, que com a autorização do FNDE para a distribuição de gêneros alimentícios, em caráter excepcional, adquiridos com recursos do PNAE, esses contratos anteriormente firmados fossem cumpridos, o que até novembro ainda não havia acontecido”, afirma o documento.

“A situação que se instalou em Remanso no contexto da pandemia da Covid-19, por conta da falta de diálogo e determinação política da gestão municipal, impacta de maneira direta a alimentação das crianças e adolescentes do município, as rendas de agricultores e pescadores e a economia local. Cabe informar que ao longo do processo de escrita desta relatoria tentamos, sem sucesso, agendar entrevistas com a Secretária de Educação, vereadores e representantes do CAE [Conselho de Alimentação
Escolar]l”, diz o relatório.

Recomendações

Considerando as violações diagnosticadas em 2020, o relatório apresenta ainda uma série de recomendações ao poder público, tais como: a ampliação do orçamento do PNAE, a partir do aumento real do valor per capita e reajuste anual pela inflação; revisão da composição das cestas, com alimentos frescos e minimamente processados, a retomada imediata das compras da agricultura familiar, e a adoção de estratégias que garantam maior transparência e a participação da comunidade escolar nas decisões.

No atual contexto, em que grande parte das escolas estão adotando modelos híbridos, que combinam aulas presenciais e remotas, é preciso assegurar que a alimentação escolar seja fornecida a todos, mesmo os que não voltarão às aulas.

Além de ser divulgado nacionalmente, o Relatório será encaminhado — a fim de que medidas cabíveis sejam tomadas — ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Escolar (FNDE), ao Ministério Público Federal (MPF), à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, às comissões de educação da Câmara dos Deputados e do Senado, ao governador do estado do Rio de Janeiro, ao prefeito de Remanso, e aos respectivos secretários de educação.

Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), responsável pela oferta de alimentação escolar a todos os estudantes da educação básica pública, é uma das mais relevantes políticas públicas voltadas à garantia do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA) e uma das poucas que resiste ao sistemático desmonte de direitos que está acontecendo no Brasil. O PNAE atende cerca de 41 milhões de estudantes, com repasses financeiros da ordem de R$ 4 bilhões anuais aos 27 estados e 5.570 municípios.

Para muitos desses estudantes é na escola que se faz a única ou principal refeição do dia, o que é de extrema relevância para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Além disso, o PNAE é estratégico na estruturação de redes de abastecimento da agricultura familiar: 30% dos recursos repassados para a execução do programa, aproximadamente R$ 1,2 bilhões anuais, deve ser destinado à compra direta de alimentos da agricultura familiar. Isso gera impactos positivos tais como a geração de renda, a dinamização de economias locais, a melhoria da qualidade nutricional e a valorização da cultura alimentar regional.

Sobre a Plataforma Dhesca Brasil

Criada em 2002, a Plataforma Brasileira de Direitos Humanos – Dhesca Brasil é uma rede formada por 45 organizações e articulações da sociedade civil, que desenvolve ações de promoção e defesa dos direitos humanos, incidindo em prol da reparação de violações. A Plataforma Dhesca Brasil tem como princípio a afirmação de que todas as pessoas são sujeitas de direitos e, como tal, devem ter todos os direitos assegurados para garantir as condições de vida com dignidade.

Informações para a imprensa:

Júlia Daher – comunicacao@tiplataformadh.org.br | 11 9 9457 7006
Thais Iervolino – thais.iervolino@gmail.com | 11 97617 4626

A potência dos saraus para a educação: conheça a poeta e ativista Patrícia Borges

Mulher trans e militante, Patrícia Borges conta sobre a importância do TranSarau e da poesia em sua trajetória.

Em foto monocromática em roxo, é possível ver a poeta Patrícia Borges lendo o livro Antologia Trans

Símbolo da suposta diversidade da capital de São Paulo, a Avenida Paulista sempre recebeu manifestações de distintas matizes ideológicas que, nem sempre com a cobertura conivente da imprensa, disputam o debate político do país. Incontáveis marchas progressistas e conservadoras cruzaram seus quase 3 km, do Paraíso à Consolação, sempre acompanhadas da proteção ou do monitoramento das forças de segurança pública.

Durante a campanha eleitoral de 2020, Patrícia Borges decide ocupar este espaço para defender a causa que sustenta não só como uma bandeira, mas também na sua condição de existência. Patrícia é uma mulher trans preta, engajada em defender o direito de pessoas como ela de serem respeitadas e participarem da política, e fazia campanha para a então candidata a vereadora Érika Hilton (PSOL-SP).

Contudo, a diversidade da avenida não a acolheu tão bem quanto o faz para os discursos antidemocráticos que estampam a fachada da Fiesp desde a última eleição presidencial. Patrícia foi ofendida e agredida, num crime eleitoral ainda impune, como tantos outros que já foram cometidos contra a ativista.

Não seriam as mordidas nem os golpes com uma haste de metal que calariam uma mulher que há tanto tempo luta contra a intolerância para ser ouvida. Para Patrícia, o infeliz episódio recebeu nas urnas a resposta que tarda a vir dos tribunais: Erika Hilton recebeu mais de 50 mil votos, fazendo dela a vereadora mais votada do país naquela eleição.

Com tom vitorioso, Patrícia relata este caso, permeado com suas memórias, experiências e expectativas, num depoimento cheio de poesia e indignação. E deixa avisado: ela não vai se calar. É preciso falar muito mais  para superar a invisibilidade que submete travestis, mulheres e homens trans no país que mais ameaça seus corpos no mundo. Seja nos discursos de seu ativismo ou nos versos que apresenta no TranSarau, Patrícia tem muito a nos dizer.

[Ação Educativa] Como surgiu o Transarau?

Patrícia Borges – O TranSarau nasce a partir do Cursinho Transformação, que é voltado para a população trans e travesti, e reunia participantes que tinham interesse por manifestações culturais. Os encontros aconteciam no prédio da Ação Educativa [antes da pandemia], e foram ganhando autonomia a cada edição. 

Como um encontro de poesia, o TranSarau traz política. Um corpo trans, travesti, é político. E os nossos corpos, com a arte, são uma manifestação de tudo aquilo que estamos vivendo, para a sociedade poder entender. Quantas vezes não vi pessoas brancas e cisgêneras chorando no Transarau? É um trabalho de formiguinha. Em cada pessoa que vai ao TranSarau, a gente vai plantando uma semente que ela leva pra sua família, que às vezes é misógina ou racista, carregando a compreensão de que elas vão ter que nos respeitar, porque não vamos nos calar. Esse encontro de poesia, de arte, é maravilhoso, e formador.

“A gente tem um histórico de opressões que nos acompanham desde criança quando querem nos colocar numa caixinha, e o TranSarau vem como um divisor nas nossas vidas, porque ele rompe essas barreiras com arte e poesia – que nos acalenta, que pode nos curar, como me curou. Essa é a verdade, esse é o significado do TranSarau, levar adiante a palavra trans e travesti.”

Patrícia Borges

[Ação Educativa] O que o TranSarau e a poesia representam na sua trajetória?

Patrícia Borges – As pessoas trans não têm direito ao estudo. Eu não tive direito ao meu sonho. Eu queria ser advogada, mas parei de estudar na sétima série porque meu pai me expulsou de casa. No momento em que eu deveria estar estudando, eu tive que ser minha própria professora. Contudo, também foi isso que me faz ser a pessoa que sou aos 30 anos, com a cabeça que tenho.

Quando voltei a estudar na EJA (educação de Jovens e Adultos), que tem um conteúdo reduzido, eu não me sentia preparada para fazer uma prova, prestar Enem, tentar alcançar meus sonhos. E a poesia surgiu pra mim como um divisor de águas. Não tem uma forma definida, não preciso seguir as regrinhas de introdução, desenvolvimento, conclusão. A poesia é livre, ela te permite brincar, não é como uma dissertação do Enem. Através dela eu consigo falar dos temas atuais com liberdade.

A poesia me permite ser positiva, acreditar que eu posso ser semente. Quem sabe um dia eu não consiga criar a “Casa Patrícia Borges” para ajudar outras pessoas trans e travestis? A gente tem que virar história e a gente tem que dar valor para as pessoas em vida. Qual o sentido de eu exaltar as pessoas depois de mortas, como se faz hoje com Brenda Lee e Laura Vermont?

[Ação Educativa] Como você acha que a educação promovida por essas sementes do TranSarau podem proteger a população trans e travesti?

Patrícia Borges – As pessoas fazem campanha contra o que chamam de ideologia de gênero, mas se esse entendimento, se essas informações tivessem chegado pra mim e para os meus formadores na escola, eu não teria sofrido tanto a minha vida inteira. Eu não teria sido chamada tantas vezes numa sala para ouvir que não seguia as diretrizes de um colégio. Eu não teria apanhado tanto, tendo que sair na mão com diversos alunos para mostrar que eu era uma mulher.

Uma questão relevante também é o racismo. Grande parte das vítimas de transfobia são travestis pretas — segundo reportagem da Agência Gênero e Número, com base em um relatório da Antra, 78% das pessoas trans e travestis assassinadas no ano passado eram negras — e essa violência também precisa ser combatida.

[Ação Educativa] A violência contra travestis e transexuais é muito latente no país, e infelizmente você foi vítima recentemente de uma agressão…

Patrícia Borges –  Eu fui agredida em campanha, foi um crime eleitoral também. Eles querem matar a possibilidade das nossas corpas ocuparem os lugares em que não estamos — a estimativa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) é de que 90% das pessoas trans e travestis acabem passando pela prostituição em algum momento da vida. Eu estava lá, de frente ao Center Três, fazendo campanha, dialogando sobre a importância de eleger a primeira vereadora trans, travesti, preta. 

Eu ofereci um panfletinho para uma mulher cisgênera branca que passava, ela respondeu ríspida “tudo cambada de viado” e seguiu. Logo depois ela voltou, com um pau de selfie, daqueles antigos, para dar na minha cara. Com ela, vieram mais dois rapazes, e no meio da agressão ela até me mordeu. Minha sensação é de que vivi a mesma brutalidade que a do “episódio da lampadada” — o caso ocorrido em 2010, no qual amigos que retornavam de uma balada foram agredidos com uma lâmpada fluorescente e ofensas homofóbicas. Em resposta à agressão foi criado o coletivo A Revolta da Lâmpada.

[Ação Educativa]  Não havia segurança, alguma proteção?

Patrícia Borges – Felizmente eu fui apoiada por advogado, fui para a delegacia, fiz exame de corpo de delito, fui amparada como nunca na minha vida, me senti gente, uma travesti não tem essa assessoria. Muitas são agredidas, muitas são feridas… eu já levei facada, eu já levei tiro, eu já passei por diversas situações em que eu não tive o amparo que eu recebi desta vez. Eu estou processando eles, está na mão de um delegado que está avaliando se houve crime… esse processo falho que nós temos…  

É isso, eu fui agredida em campanha, mas a gente teve uma resposta nas urnas, né? A Érika foi eleita como a mulher mais votada do Brasil! Uma mulher, travesti, preta, periférica, que passou pela prostituição, e que teve essa força dentro dela de dizer “Eu mereço muito mais!” e agora vai ecoar várias vozes que foram silenciadas e mortas. Essa é a resposta para os bolsonaristas, para a bancada evangélica: a gente não vai se silenciar:  Para cada um corpo que ficar ao chão, mil renascerão para ecoar as nossas vozes.

[Ação Educativa]  Como você vê a possibilidade de influenciar nas políticas públicas para a população trans e travesti nesse momento?

Patrícia Borges – É um trabalho árduo, mas o mandato da vereadora transvestigênere Érika Hilton nos permite ver possibilidades. Vamos precisar de muita força, porque a gente pode sugerir uma lei, mas são as 55 cadeiras que vão decidir. Contudo, só a ocupação desta cadeira já é uma conquista, já é uma vitória para estes corpos que estão à margem, na drogadição, na prostituição, na vulnerabilidade imposta pelo país que mais mata trans e travestis. E são mortes com requintes de crueldade, porque o mesmo homem que me deseja, me fere e me extermina, por ele ser criado num cristianismo que promove o ódio e não o amor. Essas políticas são necessárias para que os nossos corpos deixem de ser mortos.

[Ação Educativa]  Já há alguma política que pode apoiar a população?

Patrícia Borges – O Decreto Municipal de 58.228/2018 tornou obrigatório o reconhecimento do nome social e da identidade de gênero de travestis, mulheres transsexuais e homens trans na cidade de São Paulo. No entanto, muitas pessoas trans estão vendendo seus pertences para pagar advogados, mesmo sem ter condições financeiras, para ter atendido o direito de possuir um nome que corresponda à sua identidade, que deveria ser gratuito.

Ainda há diversos entraves burocráticos, porque é necessária uma série de certidões e protestos, e os cartórios aproveitam, porque cobram por eles. Para conseguir fazer a retificação do seu nome, você pode precisar pagar até R$150,00, por conta das certidões todas. Algumas pessoas vão conseguir pagar esse valor, mas a vulnerabilidade sempre afeta as pessoas pretas e muitas travestis migram de outras cidades para fazer sua retificação em São Paulo, o que aumenta muito esse custo.

Para garantir o acesso a esse direito, desenvolvemos o site PoupaTrans, que vai tirar toda a linguagem formal do decreto e mostrar, na nossa linguagem descolada e acessível, que a pessoa pode fazer a retificação do nome sozinha, sem se comprometer financeiramente.

PoupaTrans