Em semana de apagão de dados educacionais pelo Inep, mais de 80 entidades lançam nova versão do Manual Contra a Censura nas Escolas

O Manual inclui decisões recentes do STF que reforçam a inconstitucionalidade de leis inspiradas no movimento Escola sem Partido e o dever do Estado em abordar gênero e sexualidade nas escolas.

Em resposta às intimidações, ameaças e notificações dirigidas a docentes e escolas e à escalada do autoritarismo no país, um grupo de mais de 80 entidades de educação e direitos humanos lança, nesta quarta-feira, 23 de fevereiro, uma nova versão do Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas. A publicação apresenta orientações jurídicas e estratégias político-pedagógicas em defesa da liberdade de aprender e de ensinar, baseadas em normas nacionais e internacionais e na jurisprudência brasileira.

“O Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas articula duas estratégias complementares: por um lado, fornece subsídios para que as comunidades escolares possam, em seu cotidiano, enfrentar as ameaças concretas ou anunciadas. Por outro,  valoriza o debate público sobre essas situações como forma de enfrentamento de um conflito social gerado pela manipulação das ideias”, explica a apresentação do material.

Lançada em 2018, a primeira versão do documento contou com mais de 150 mil downloads. Na nova versão, foram incluídas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal que reforçam a inconstitucionalidade de leis inspiradas no movimento Escola sem Partido e o dever do Estado em abordar gênero e sexualidade nas escolas como forma de prevenir a violência doméstica e o abuso sexual contra crianças e adolescentes. 

A nova versão também apresenta estratégias de como responder a novos tipos de ameaças que têm sido promovidas por movimentos e grupos ultraconservadores contra comunidades escolares. Além disso, são esmiuçadas as alterações recentes de normativas nacionais e internacionais de direitos humanos, além de novas possibilidades no campo das estratégias jurídicas, políticas e pedagógicas de enfrentamento ao acirramento do autoritarismo na educação.

Lançamento da nova edição do Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas

Apagão de dados educacionais

O lançamento ocorre na mesma semana em que microdados do Censo Escolar foram descartados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) com base na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Em nota de posicionamento, entidades, redes de pesquisa e movimentos sociais afirmam que o descarte é inadmissível, carece de fundamento legal e, como resultado, impede a avaliação e elaboração de políticas públicas que respondam às necessidades da população.

O Manual também está sendo lançado como forma de prevenção e enfrentamento de possíveis ataques às escolas, educadores, estudantes e famílias em um ano eleitoral dramático, marcado por ameaças diversas à democracia, desinformação e disputas acirradas.

Casos-modelo, seus desdobramentos e estratégias de defesa

O Manual, que pode ser baixado gratuitamente clicando aqui, descreve 19 casos-modelo baseados em situações reais, seus desdobramentos e estratégias jurídicas e político-pedagógicas que podem ser usadas por profissionais de educação.

Entre os casos, são apresentadas situações de ameaças pelo Poder Público, como a aprovação de legislações antigênero; a interferência do Legislativo ou Executivo nas instituições educacionais; o constrangimento de docentes por diretorias de ensino e a militarização de escolas públicas. São também abordados casos de ameaças por membros da própria comunidade escolar e de seu entorno, como a perseguição por meio de notificações extrajudiciais, a ocorrência de constrangimentos ao uso de nome social, a censura ao uso de linguagem neutra, a violação da laicidade e o cerceamento das discussões sobre racismo e do ensino – previsto em lei – das histórias e culturas indígena, africana e afro-brasileira em escolas públicas e privadas.

O Manual trata ainda do tema fortemente recorrente, mas pouco comentado, da autocensura, isto é, da interrupção da abordagem de gênero, raça e sexualidade nas escolas pelos próprios docentes em decorrência do pânico moral e do medo de perseguição decorrentes da atuação autoritária de movimentos ultraconservadores contra professores. 

Marcos legais nacionais, internacionais e decisões do Supremo Tribunal Federal

A primeira versão do Manual foi lançada no final de 2018 como parte de uma estratégia de incidência junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que a Corte julgasse um conjunto de ações que questionavam a constitucionalidade de leis de censura na educação.

Ao longo do ano de 2020, dez ações foram julgadas positivamente, reafirmando a inconstitucionalidade da censura e o dever do Estado em abordar as questões de gênero e sexualidade na Educação Básica como forma de prevenir o abuso sexual de crianças e adolescentes. As decisões reforçaram também que a ideia de neutralidade ideológica é antagônica ao pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, pilar constitucional da legislação educacional brasileira.

Outro aspecto importante referendado pelo STF foi a interpretação a respeito do lugar das famílias na gestão democrática da educação. Na compreensão da Corte, a participação das famílias na vida escolar de crianças e adolescentes é fundamental, mas  não pode ser usada como artifício para limitar o direito constitucional de crianças e adolescentes a uma educação que contemple várias visões de mundo, estimule a capacidade de refletir e de pesquisar a realidade e que prepare os e as estudantes para uma sociedade sempre mais complexa e desafiante.

“Muitas vezes, mobilizadas pelo desejo de proteção de suas filhas e filhos, algumas famílias acabam contribuindo para que crianças e adolescentes cresçam despreparados e vulneráveis para enfrentar o mundo e atuar conscientemente pela superação das desigualdades, discriminações e violências nas suas vidas e na sociedade brasileira”, destaca o Manual.

Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação

Com apoio do Fundo Malala, do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e da Defensoria Pública da União (DPU), a publicação é resultado do trabalho de uma ampla articulação de sociedade civil, que inclui organizações não governamentais e redes que atuam pelo direito humano à educação, entidades sindicais, associações científicas, redes de pesquisa, organizações vinculadas ao movimento feminista, negro e LGBTQI+, setores religiosos progressistas defensores da laicidade do Estado, coletivos políticos e órgãos públicos comprometidos com a defesa dos direitos humanos.

Confira a lista completa de entidades signatárias:

  • Ação Educativa
  • Ação Educação Democrática
  • ABEH – Associação Brasileira de Pesquisa em Ensino de História
  • ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos
  • ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS
  • ABPN – Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as
  • AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros
  • Agência Pressenza
  • Aliança Nacional LGBTI
  • ANAÍ – Associação Nacional de Ação Indigenista
  • ANAJUDH-LGBTI – Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de LGBTI
  • Andes-SN – Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
  • Anfope – Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação
  • Anpae – Associação Nacional de Política e Administração da Educação
  • ANPEd – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
  • Anpocs – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
  • Anpof – Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia
  • Antra – Associação Nacional de Travestis e Transexuais
  • Articulação de Mulheres Negras Brasileiras
  • Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais
  • Campanha Nacional pelo Direito à Educação
  • Cedeca-CE – Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Ceará
  • Cedes – Centro de Estudos Educação e Sociedade
  • CENDHEC – Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social
  • Cenpec
  • Centro das Mulheres do Cabo
  • Centro de Cultura Professor Luiz Freire
  • Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza
  • CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria
  • Cidade Escola Aprendiz
  • Cladem – Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher
  • CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
  • Coletivo de Advogad@s de Direitos Humanos
  • Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia
  • Comissão Pastoral da Terra
  • Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno
  • Conic – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs
  • CONTEE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino
  • Dom da Terra AfroLGBTI
  • Fineduca – Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação
  • Forumdir – Fórum Nacional de Diretores de Faculdades, Centros de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras
  • Fórum Ecumênico ACT-Brasil
  • Gajop – Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares
  • Geledés – Instituto da Mulher Negra
  • GPTEC – Grupo de Pesquisa em Tecnologia, Educação e Cultura (IFRJ)
  • Grupo Dignidade
  • IDDH – Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos
  • Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos
  • Instituto Alana
  • Instituto Pólis
  • Instituto Vladimir Herzog
  • Intervozes
  • Justiça Global
  • LAVITS – Rede Latinoamericana de Estudos em Tecnologia, Vigilância e Sociedade
  • Mais Diferenças – Educação e Cultura Inclusivas
  • Marcha das Mulheres Negras
  • Mirim Brasil
  • Movimento Humanista
  • Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio
  • MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
  • Núcleo de Consciência Negra – USP
  • NUDISEX – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Diversidade Sexual
  • Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte
  • Odara – Instituto da Mulher Negra
  • OLÉ/UFF – Observatório da Laicidade na Educação
  • Plataforma Dhesca Brasil
  • Professores contra o Escola sem Partido
  • Projeto Mandacaru Malala
  • QuatroV
  • Rede Brasileira de História Pública
  • Rede Liberdade
  • REPU – Rede Escola Pública e Universidade
  • SBEnBio – Associação Brasileira de Ensino de Biologia
  • SBEnQ – Sociedade Brasileira de Ensino de Química
  • Sinpeem – Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo
  • Sinpro Guarulhos – Sindicato dos Professores e Professoras de Guarulhos
  • Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos
  • SPW – Observatório de Sexualidade e Política
  • Terra de Direitos
  • UNCME – União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação
  • Undime – União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação
  • UPES – União Paranaense dos Estudantes Secundaristas

Ação no STF questiona uso do Disque 100 para perseguição política

Governo Federal instrumentalizou o canal para recebimento de denúncias sobre abordagem de gênero nas escolas e exigência de comprovante de vacina, em desrespeito a decisões do STF.

Imagem de destaque de matéria sobre instrumentalização do Disque 100

Governo Federal instrumentalizou o canal para recebimento de denúncias sobre abordagem de gênero nas escolas e exigência de comprovante de vacina, em desrespeito a decisões do STF

“Conceitos de direitos humanos vêm sendo subvertidos de forma a permitir a execução de uma política de vigilância, perseguição, discriminação e repressão, sobretudo nos campos da Educação e da Saúde”. É o que afirma uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), protocolada nesta terça-feira (8) pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS) em articulação com ativistas e operadores de direito que atuam na defesa dos direitos humanos. 

A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 942 aponta que o governo federal, em total desacordo com a jurisprudência do STF, vem usando o Disque 100 – canal de denúncias de violações de direitos humanos – para constranger profissionais de educação, profissionais de saúde, demais cidadãos e instituições com perspectivas diferentes às do governo federal em questões como vacinação, identidade de gênero e orientação sexual. 

O que é o Disque 100 e como ele tem sido usado?

Criado em 1997 como iniciativa de organizações da sociedade civil, o Disque 100 é um serviço público vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) que tem a função de receber, analisar e encaminhar denúncias de violações de direitos. Além disso, a sistematização das denúncias recebidas é um instrumento para que gestores públicos, sociedade civil e pesquisadores possam monitorar a situação dos direitos humanos no país.

No entanto, o canal foi reformulado no governo Bolsonaro. Uma das mudanças foi a inclusão da expressão “ideologia de gênero” como motivação para violação de direitos humanos, como forma de estimular denúncias contra profissionais de educação que abordem a questão nas escolas. 

Em decisões recentes, o Supremo considerou inconstitucionais leis municipais e estaduais que proibiam a abordagem de conteúdos ligados a gênero e sexualidade nas escolas, que se apoiavam na categoria “ideologia de gênero”. O STF também determinou ser dever do Estado brasileiro abordar a igualdade de gênero na escola como forma de prevenir a violência doméstica e o abuso sexual de crianças e adolescentes. Discurso criado nos anos de 1990 por setores conservadores da Igreja Católica, a chamada “ideologia de gênero” se constituiu em resposta reacionária contra o avanço dos direitos das mulheres e da população LGBTQIA+ no plano internacional.

Uma das preocupações das entidades proponentes da ADPF é com o acionamento de órgãos policiais a partir das informações recebidas pelo Disque 100 contra profissionais de educação da saúde. Isso aconteceu em dezembro de 2021 no município de Resende (RJ), onde a direção da Escola Municipal Getúlio Vargas recebeu intimação da Polícia Civil devido a uma denúncia anônima por supostamente expor os alunos a “conceitos comunistas” e a “ideologia de gênero”. A ação do governo acarretou ainda no baixo índice da vacinação infantil contra a Covid-19, apesar da alta capacidade do sistema de saúde do país. Segundo dados dos veículos da imprensa obtidos com as secretarias estaduais, apenas 18,8% das crianças de 5 a 11 anos no Brasil receberam a primeira dose do imunizante.

Outro caso envolveu uma professora de filosofia da escola estadual Thales de Azevedo em Salvador (BA) por abordar questões de gênero, racismo e sexualidade. Mais recentemente, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos disponibilizou o Disque 100 para recebimento de denúncias relativas à exigência de certificado de vacina de Covid-19 para acesso a locais públicos ou privados, contribuindo para situações de constrangimento e agressões contra profissionais da saúde e comprometendo diretrizes de saúde pública em contexto pandêmico.

“O Disque 100 foi instrumentalizado para burlar jurisprudências estabelecidas pelo STF, tanto em relação à abordagem de gênero na educação como em relação à vacinação. Para piorar, essas denúncias são enviadas a órgãos policiais sem que se decline o crime que se deve apurar. Com isso, o aparato policial é utilizado para gerar medo e inibição de práticas absolutamente legais e constitucionais, endossadas por esse Supremo Tribunal Federal”, afirma a advogada e ex-Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat, uma das representantes das entidades na ADPF, que conta também com a representação do grupo de advogados da Rede Liberdade, liderado pela advogada Juliana Vieira dos Santos.

Outro problema apontado é que o funcionamento atual do Disque 100 invisibiliza os dados de violências contra pessoas LGBTQIA+. “Da forma como está estruturado, fica impossível obter dados sobre violência motivada por homofobia e transfobia. Essas informações são essenciais para que os estados e municípios elaborem políticas de enfrentamento a esses casos”, explica Marco Aurélio Máximo Prado, professor da UFMG e coautor de um estudo sobre as mudanças no serviço. 

Mudanças no Disque 100

Em abril de 2021, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos divulgou o Manual de Taxonomia de Direitos Humanos, com a função de classificar as notificações recebidas pelo Disque 100. Nesse documento, foi incluída entre os indicadores de motivação das violações o item “Em razão da orientação sexual / ideologia de gênero”. Segundo estudo realizado por pesquisadores da UFMG, o Manual promove um apagamento das violências de caráter homofóbico e transfóbico, devido ao termo vago “orientação sexual” e por dividir espaço com a questionada categoria “ideologia de gênero”. 

O caso Disque 100 constitui mais uma das medidas adotadas pelo governo Bolsonaro que atacam ações e políticas comprometidas com a igualdade de gênero e a diversidade sexual no país, realidade abordada pelo Relatório Ofensivas Antigênero no Brasil: políticas de Estado, legislação e mobilização social, publicado em outubro de 2021 e submetido ao Mandato do Perito Independente das Nações Unidas sobre Orientação Sexual e Identidades de gênero e Direitos Humanos por um conjunto de organizações da sociedade civil brasileira. 

O MMFDH também editou uma nota técnica em que afirma ser uma violação de direitos humanos a exigência de comprovante de vacina para acesso a locais públicos ou privados. O Disque 100 foi disponibilizado para recebimento desse tipo de denúncias, em mais uma ação de combate às medidas de contenção da pandemia de Covid-19. Mais uma vez, a instrumentalização do Disque 100 desrespeita decisão do Supremo, que afirmou a legalidade de restrições indiretas para ampliação da cobertura vacinal no país. 

Pedidos ao STF

As proponentes da ADPF solicitam que o STF urgentemente determine a remoção da expressão “ideologia de gênero” do Manual de Taxonomia de Direitos Humanos e do Painel de Dados do Disque 100; a inclusão da categoria identidade de gênero e de indicadores de violações de direitos contra a população LGBTQIA+; a suspensão da nota técnica do MMFDH que questiona a obrigatoriedade do Certificado Nacional da Vacina e da vacinação infantil; e a exigência de que o encaminhamento de denúncias do Disque 100 aos órgãos policiais só aconteça na hipótese de crime tipificado em lei, constando o tipo penal específico.