O olhar interseccional por uma escola mais acolhedora

Reconhecer as diferenças é passo fundamental para acolher a diversidade e enfrentar as desigualdades na educação

Gênero e Educação e Interseccionalidade - O olhar interseccional por uma escola mais acolhedora. Imagem feita a partir de fotos de Mídia NINJA

Você já deve ter ouvido a palavra interseccionalidade por aí. Nos últimos anos, o debate sobre o conceito e sua aplicação no dia a dia tem ganhado espaço. Mas, afinal, o que seria essa tal interseccionalidade? E o que ela tem a ver com educação?

A interseccionalidade apareceu como um conceito, pela primeira vez, no final da década de 1980. Kimberlé Crenshaw, defensora de direitos civis estadunidense e uma das principais referências da teoria crítica de raça, apresentou o conceito em um artigo em que discute o caso de Emma DeGraffenreid, uma mulher negra que processou uma fábrica por não querer empregá-la. A motivação, segundo Emma, era pelo fato de ser uma mulher e negra. No entanto, o juiz não acatou sua denúncia, pois, havia empregados negros e empregadas mulheres na fábrica. Creensahw identificou, então, que Emma estava sofrendo com uma dupla violência: a de raça e a de gênero, de forma interseccional.

Em documento elaborado para um encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero na III Conferência Mundial contra o Racismo, em 2002, Crensaw traz que a interseccionalidade “trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento”.

A ideia desse intercruzamento de opressões está presente nos debates propostos por outras feministas negras, também aqui no Brasil, como é o caso de Lélia Gonzalez. A intelectual e ativista brasileira discutia como o racismo e o sexismo operam na vida das mulheres negras de formas bem peculiares.

No entanto, o olhar da interseccionalidade não é restrito apenas a raça e gênero. Ele contempla diversas formas de opressão que, como afirma Crenshaw, “se sobrepõem e criam múltiplos níveis de injustiça social”. Orientação sexual, classe social, religião, nacionalidade, ter algum tipo de deficiência, entre outros marcadores devem ser observados quando se propõe uma discussão interseccional no combate às desigualdades.

Interseccionalidade e a escola como espaço para combate às desigualdades

Paula Ferreira, pedagoga e antirracista integrante do Comitê Pernambuco da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação e Ativista Pela Educação do Fundo Malala no Brasil, acredita na “interseccionalidade como um instrumento político, analítico e também teórico metodológico que questiona as opressões – contra mulheres negras em especial – em função do patriarcado, do capitalismo, do racismo que são estruturantes  e que geram desigualdades”. 

E isso está profundamente relacionado à educação. Por ser um espaço que reúne diversas bagagens, diversos corpos, vivências e formas de se relacionar e de estar no mundo, a escola é terreno fértil para propor discussões e ações para enfrentar as desigualdades que estão postas.

Para o projeto Gênero & Educação, a educação deve prezar pelo diálogo, liberdade de aprender e ensinar, pluralidade pedagógica e pela construção de uma cultura democrática. Neste sentido, valorizar as diferenças e enfrentar qualquer forma de discriminação é tarefa coletiva e permanente de educadoras, estudantes, gestores seja no dia a dia da escola, seja nas práticas pedagógicas.

Edital Igualdade de Gênero na Educação 2023: inscrições abertas até 02 de maio!

O Edital Igualdade de Gênero na Educação Básica 2023: enfrentando o sexismo, racismo e a LGBTQIAfobiaestá com inscrições abertas. A iniciativa é realizada pela Ação Educativa por meio do projeto Gênero e Educação, em aliança com ampla rede de parceiras e com apoio do Fundo Malala.

+ Saiba mais sobre o Edital aqui!

Nos 20 anos da Lei 10.639/2003, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, tornando obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, o 3º Edital Igualdade de Gênero na Educação Básica está recebendo propostas de planos de atividades e práticas cotidianas, planos de aula, sequências didáticas e relatos de experiências que contribuam para a efetiva implementação da lei 10.639/03 assim como a 11.645/08, em uma perspectiva interseccional

O edital visa valorizar o conhecimento e a experiência de educadoras de creches, pré-escolas, escolas e universidades e ecoar decisões do STF, de 2020, que estabeleceram como dever do Estado brasileiro a abordagem de igualdade de gênero em escolas.

Militarização e cultura de ódio: pesquisadoras refletem sobre o aumento da violência nas escolas

Casos de violência nas escolas exigem análises profundas sobre o fenômeno ultraconservador na educação. Medidas de perseguição e militarização da educação são caminhos perigosos e impulsionam violações de direitos e crimes de ódio.

Militarização e cultura de ódio: pesquisadoras refletem sobre o aumento da violência nas escolas

Ao longo dos últimos anos, temos vivenciado o avanço do ultraconservadorismo no país, e, consequentemente, ataques diversos nas instituições democráticas e nos princípios que regem a Constituição do Brasil. No campo da educação, não tem sido diferente: perseguições, censura e assédio nas escolas promovidos por movimentos autoritários têm gerado clima de desconfiança, medo e ameaça.

Na última semana, a tragédia na Escola Estadual Thomazia Montoro, em São Paulo, tomou a todos por um grande luto e pesar. E é momento de refletir sobre o ataque que não foi um caso isolado na história recente do país. Para a professora da UnB, Catarina de Almeida Santos, “os ataques contra as escolas constituem-se crime de ódio contra mulheres, pessoas negras, pessoas com deficiência, LGBTQIAPN+, ou seja, ódio contra a diversidade. Assim, o racismo, o machismo, a heteronormatividade, os supremacismos e os discursos de ódio, alimentam o extremismo e consequentemente os ataques. O vigilantismo, em todas as suas formas, não será a solução, ao contrário, pois o cerceamento do diálogo resulta em mais ódio”.

A Campanha Nacional pelo Direito à Educação emitiu uma nota de pesar e convida a todos a uma reflexão crítica sobre a relação da intolerância e de ações extremistas com o aumento da violência contra as escolas e, consequentemente, contra a sociedade.  “É importante ressaltar que o aumento de ideias e comportamentos fascistas, de extrema direita entre a população, de uma cultura de ódio, xenofobia e intolerância em suas mais variadas formas, contribuem diretamente para um cenário propício a atitudes cada vez mais violentas na sociedade, seja nas escolas, ou fora delas”. 

A organização alerta que, após tragédias como a da escola Thomazia Montoro, ascendem narrativas sobre a falta de segurança e a violência nas escolas e ressalta que  é preciso analisar a questão de forma mais profunda. O debate não pode se limitar a uma questão de segurança pública e deve passar “pela discussão sobre o fim da militarização das escolas, sobre o desarmamento da sociedade, sobre a ausência do Estado na promoção de uma cultura de paz, de políticas públicas da saúde mental para sua população e, fundamentalmente, é preciso uma resposta firme contra ações e discursos fascistas”. Leia a nota na íntegra aqui!

Renata Aquino, professora de história, pesquisadora da censura na educação e de humanidades digitais, acredita que “esse cenário é maior que a escola. Nós estamos perdendo direitos no campo da educação, do bem estar social, da saúde, etc., e esses ataques são sintomas mórbidos desse tecido social se desfazendo em meio a uma crise violenta. A escola é importante para tratar isso, mas ela é só uma parte”.

 “A polícia na escola ou a militarização das instituições escolares e suas normas hierarquizadas, com a padronização de vestimentas, corpos e comportamentos, negam as diferenças e os sujeitos. A imposição dos princípios da área de segurança em detrimento dos da educação impedem o diálogo, os estudos e debates sobre os temas que alimentam o extremismo”, alerta a professora Catarina. 

O processo de militarização das escolas viola liberdades de expressão, de organização e de associação sindical dos professores, e não tem qualquer amparo legal seja na Constituição Federal, seja na Lei de Diretrizes e Bases e seja no Plano Nacional de Educação. Há registros de que escolas militarizadas já são alvo de denúncias de assédio moral e sexual e de abusos, não são mais seguras e ainda promovem violações de direitos e violências.

Ver mais em: Projeto ultraconservador para a educação inclui a criminalização de debates sobre direitos humanos, gênero, raça, sexualidade e ataques à laicidade

Neste momento de retomada de um diálogo democrático na sociedade brasileira, é urgente que se estabeleça um esforço coletivo para debater tais questões, como uma responsabilidade conjunta de toda a sociedade e a via não é pela militarização. “As escolas que não podem ser responsabilizadas pelo extremismo, são parte da solução, mas para isso, precisam ser instituições educativas com condições objetivas de desenvolver a formação de sujeitos e não de soldados, que é o que objetiva a pedagogia do quartel”, finaliza Catarina.