Mês da Visibilidade Trans: tempo de celebrar e seguir na luta

Data foi criada para celebrar décadas de resistência e para evidenciar o quanto ainda é necessário avançar em direitos para a população transvestigênere.

Foto Catherine Coden SOMOS

Há 19 anos, no dia 29 de janeiro, era lançada a campanha Travesti e Respeito em Brasília. O ato aconteceu no Congresso Nacional e foi um o marco para a luta por direitos da população trans e contra a transfobia. E assim, foi instituído o Dia Nacional da Visibilidade Trans. 

A fim de celebrar e evidenciar a luta das pessoas trans e travestis por direitos, o primeiro mês do ano é considerado, também, o mês da visibilidade trans: Janeiro Lilás.

Para Lua Quinelatto, travesti e graduanda em Pedagogia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), a importância de se ter uma data como essa está justamente na memória. Não se pode esquecer de que 90% das pessoas trans seguem na prostituição como única possibilidade de trabalho, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

O acesso a educação – ou a permanência na escola – ainda é um ponto de atenção: cerca de 80% das mulheres travestis não conseguem terminar o Ensino Médio, conta a estudante. E isso impacta diretamente no acesso ao Ensino Superior:

O sistema de ensino é também uma engrenagem na manutenção das opressões e na manutenção das desigualdades. Não existem políticas de permanência para esses corpos [transvestigêneres] nas escolas. Como vão chegar nas universidades? É preciso pensar na reformulação desde a base, para que as próximas gerações de travestis e pessoas trans possam ocupar em peso a Universidade. 

Lua Quinelatto

+ Leia também: Manifesto Meninas Decidem: pelo direito à educação!

A luta nunca parou e não vai parar

O Brasil é extremamente perigoso para quem não é cisgênero. Ainda de acordo com a Antra, segue sendo o país que mais mata pessoas trans no mundo pelo 14º ano consecutivo. Em 2022, mais de 130 pessoas trans foram assassinadas no território nacional.

Com Bolsonaro, o conservadorismo avançou a passos largos e autorizou uma série de violências ainda maiores do que as já experienciadas pela população trans nos últimos anos. Para Lua, serviu também para escancarar como a sociedade brasileira é transfóbica.

No início de 2023, porém, com o novo Governo Lula, o país volta a acenar para uma agenda de retomada da garantia dos direitos humanos. É instituída a Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, sob o guarda-chuva do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania.

Para assumir a pasta, foi escolhida Simmy Larrat, “paraense, amazônida, travesti, militante pelos direitos humanos e pela causa das pessoas LGBTQIA+”. Simmy é a primeira travesti a assumir um cargo de segundo escalão no governo federal.

É preciso de comprometimento público com nossas demandas, mas, para além disso é preciso acabar com a instituição família – a família instituída pelo sistema capitalista para a reprodução do capital – que continua expulsando nossos corpos e assassinando diariamente.

Lua Quinelatto

É uma conquista para o movimento LGBTQIA+, sobretudo para a população trans. Porém, Lua Quinelatto reforça que a luta deve continuar, pois, ainda que no âmbito federal tenha tido avanços, o Executivo não governa sozinho e é preciso frear os retrocessos dos últimos anos.

Para conhecer e inspirar

A luta da população transvestigênere vem de longe. Muito está sendo feito por movimentos e coletivos em diversas partes do Brasil para garantir direitos, trazer visibilidade para a existência e denunciar violências.

A estudante Lua destaca três iniciativas de âmbito nacional para inspirar, são elas: a ANTRA, principal e mais antigo movimento de luta da população trans; o FONATRANS, que tem uma perspectiva racializada; e a Mães pela diversidade, organização não-governamental formada por mães e pais de pessoas LGBTQIA+.

O movimento organizado de travestis nasce na luta, se forja na luta. E é de extrema importância que continue na luta, porque não há outra solução senão a organização e a luta.

Lua Quinellato

Todos os anos, a ANTRA lança o Dossiê: Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras. O balanço traz um panorama sobre a realidade das violências sofridas e dos direitos humanos violados da população trans e travesti no país. O lançamento mais recente, com dados referentes ao ano de 2022, aconteceu no último dia 27 de janeiro na sede do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania.

+ Clique aqui e acesse o Dossiê: Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras de 2023

Governo Lula retira Brasil de aliança conservadora antigênero

"Consenso de Genebra" ia na contramão dos avanços de décadas para os direitos sexuais e reprodutivos. Em 2022, mais de cem organizações da sociedade civil se mobilizaram junto à equipe de transição pedindo que o novo governo tirasse o Brasil da aliança.

No dia 17 de janeiro, o Ministério das Relações Exteriores, o Ministério da Saúde, o Ministério das Mulheres e o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania emitiram uma nota conjunta para informar o desligamento do Brasil da Declaração do “Consenso de Genebra” sobre Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família.

Criado em 2020 por Donald Trump, o “Consenso de Genebra” tem como objetivo impedir avanços no que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos, além restringir e deslegitimar as várias formas de famílias. São signatários da aliança países como Polônia, Hungria, Arábia Saudita e Iraque.

De acordo com o governo, o “Consenso” tem um entendimento limitativo e que poderia impedir a plena implementação da legislação nacional a respeito desses direitos, incluindo os princípios do SUS. A nota ainda afirma que:

“O Governo reitera o firme compromisso de promover a garantia efetiva e abrangente da saúde da mulher, em linha com o que dispõem a legislação nacional e as políticas sanitárias em vigor sobre essa temática, bem como o pleno respeito às diferentes configurações familiares.”

Em 2021, diversas organizações da sociedade civil lançaram um balanço sobre as ofensivas antigênero no país de 2019 a 2021. O relatório traz um olhar especial para políticas de estado e iniciativas legislativas. A publicação serviu também como subsídio para que as organizações pressionassem a equipe de transição do novo governo em novembro de 2022.

Para Sonia Corrêa, pesquisadora associada da ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS) e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política (Sexuality Policy Watch), a medida dos Ministérios é importante de diversos sentidos. É uma demonstração de que o Brasil está retomando seus compromissos com os parâmetros definidos em Conferências dos anos 90, como a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD), realizada no Cairo em 1994, entre eles:

Matérias referentes à saúde reprodutiva incluída a definição do aborto como grave problema de saúde pública, e a recomendação do Art. 106-k da Plataforma da Ação de Pequim sobre a Mulher que recomenda a revisão de legislações punitivas, mas também a definição do Programa de Ação da CIPD sobre o reconhecimento das várias formas de família.

A pesquisadora vê com muita satisfação os resultados desta mobilização. O movimento foi criado em um esforço para disseminar informações para a sociedade brasileira sobre a aliança que feria a garantia plena dos direitos humanos e vinha na contramão da tradição diplomática brasileira.

+ Leia também: Relatório Ofensivas antigênero no Brasil: políticas de Estado, legislação, mobilização social