“Pequeno Dicionário” atualiza novos termos do debate político brasileiro

Segunda edição da publicação produzida por linguistas explica como “identitarismo”, “linguagem neutra”, “cidadão de bem” e “liberdade” foram cooptados pelas forças políticas brasileiras.

O que é “identitarismo” e por que é uma acusação? A “linguagem neutra” é um atentado à língua portuguesa? E a “família” tradicional é uma realidade ou um ideal brasileiro? Essas são algumas perguntas que a segunda edição da publicação “Termos ambíguos do debate político atual: pequeno dicionário que você não sabia que existia” pretende responder. 

A publicação, disponível no site do projeto, reúne alguns termos mais frequentes do atual debate político brasileiro – como “patriotismo”, “ideologia de gênero” e “politicamente correto” – e detalha os percursos que fizeram com que virassem presença quase obrigatória em nosso vocabulário político da última década. A primeira versão foi lançada em 2022 com oito verbetes, e a segunda edição traz seis adições: “globalismo”, “identitarismo”, “linguagem neutra”, “cidadão de bem”, “liberdade” e “família”. 

“O Pequeno Dicionário é um trabalho em constante construção, dado o dinamismo do próprio debate político e de novos termos que vão paulatinamente sendo inseridos no senso comum”, enfatiza Rodrigo Borba, professor de Linguística Aplicada na UFRJ e co-coordenador do projeto. 

Novos termos

Esta segunda edição traz, por exemplo, verbetes acionados nas duas campanhas presidenciais do ex-presidente Jair Bolsonaro: em 2018, “cidadão de bem”, e em 2022, “liberdade”. “O termo “cidadão de bem” se popularizou num contexto de programas policiais, servindo desde sempre como um demarcador de condutas entre supostos bandidos e a população geral. O acionamento e popularização desse termo foram parte fundamental do processo que levou a extrema-direita ao poder”, destaca Isabela Kalil, Coordenadora de Pós-Graduação em Antropologia da FESPSP e autora desse capítulo.

Já o autor de “Liberdade”, o sociólogo José Szwako, destaca a centralidade do termo nas mobilizações conservadoras do Brasil atual. “Hoje é difícil imaginar algum tópico ou objeto de relevância para o conservadorismo que não tenha a evocação da “liberdade” como central. E nessa evocação a liberdade é muitas coisas: liberdade para não se vacinar, para ofender, liberdade para linchar. Nesse contexto, o verbete discute as concepções sobre liberdade, os limites e, sobretudo, esse uso contemporâneo onde a liberdade passa a ter usos autoritários”, destaca. 

O “Pequeno Dicionário” é uma iniciativa do Observatório de Sexualidade e Política (SPW) em parceria com pesquisadores da área de linguística aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A publicação resgata a história das expressões selecionadas, destacando os momentos em que estas passam a ser usadas como acusação no debate público. O objetivo do projeto é que os leitores, conhecendo a história e o percurso desses termos, possam decidir de maneira informada se faz sentido manter ou incorporar essas expressões em seu vocabulário. 

“Os termos tratados neste pequeno dicionário foram sendo sorrateiramente absorvidos pelo senso comum desde o final dos anos 1990 e hoje fazem parte do vocabulário político  comum e corrente. É como se esses bordões sempre tivessem existido. Ninguém se pergunta de onde vieram, como foram criados e  a que se destinam. Recuperar essas trajetórias foi uma de nossas motivações, porque isso é vital para saber como melhor contestá-los”, diz Sonia Corrêa, ativista e pesquisadora feminista e co-coordenadora do SPW.  

Linguagem acessível e diferentes formatos

Uma das grandes preocupações dos realizadores do projeto é manter uma linguagem acessível, capaz de alcançar públicos fora da academia. Por isso, a publicação chega em duas versões: uma para leitoras e leitores com escolaridade de nível superior e outra dedicada a quem está no Ensino Médio. Todos os textos foram construídos sob conceitos de Línguística aplicada. “Na edição jovem, todos os verbetes ficaram ainda mais curtos e descomplicados, em um processo de condensação e simplificação textual realizado através de uma ferramenta que avalia o nível de dificuldade de um texto. Este é um processo chamado de ‘tradução intralinguística’, isto é, a tradução de um texto dentro da mesma língua, orientada por metas e públicos diferentes”, diz Janine Pimentel, associada ao Núcleo de Estudos da Tradução da UFRJ.

Além disso, todos os verbetes dos “Pequenos Dicionários” se iniciam com uma ilustração que sintetiza as ideias nele contidas. Carol Ito, jornalista, quadrinista e vencedora do Troféu Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos é quem assina os quadrinhos e a capa das publicações.

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Projetos de lei tentam proibir “linguagem neutra” em espaços educacionais. Entenda o que está em jogo

As línguas são fruto das práticas, trocas, conflitos sociais e da diversidade humana, incluindo as de gênero.

Imagem com seis mãos erguidas em punho. Cada mão é colorida por uma cor. Da esquerda para direita, as cores de cada mão são: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul escuro e lilás. A sequência de cores representam o simbolo LGBTQI+. Acima das mãos a uma série de letras e símbolos como u, e, x, @. A imagem é destaque de matéria sobre linguagem inclusiva, língua e binarismo

Olá todos, todas e todes, vcs tão lendo no cel ou no note? Esta frase interrogativa não segue as normas da língua portuguesa, mesmo assim você a compreendeu. Por quê? Porque aprendemos a decodificar mensagens transmitidas por meio de diferentes formas de comunicação, seja seguindo regras ou incorporando gírias surgidas em determinados contextos ou grupos sociais.

O todes contido na frase inicial, com a vogal temática e, tem sido adotado recentemente, especialmente por jovens, ativistas e integrantes de movimentos sociais engajadas na defesa dos direitos das mulheres e da população LGBTQIA+. Estes grupos têm questionado o binarismo presente na língua portuguesa e criado novas linguagens que incluam mulheres e pessoas não-binárias.

Variações linguísticas não são um fenômeno novo porque constituem todas as línguas, dado que historicamente as sociedades e suas práticas linguísticas, sejam elas formais ou informais, se implicam mutuamente.

O português que conhecemos hoje nasceu da combinação entre línguas e práticas indígenas e africanas com o português europeu, vindo das línguas latinas. Para a Doutoranda em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP), Monique Amaral de Freitas, “a mudança é inerente à lingua e sua mutabilidade vai acontecer, as pessoas queiram ou não. O discurso de que a língua é imutável é uma ficção absoluta, o português falado hoje não é igual ao dos nossos avós, muito menos dos bisavós e assim por diante”.

Essas mudanças podem ou não alterar regras, se consolidar socialmente, ficarem obsoletas – o chamado arcaísmo -, serem adotadas somente na oralidade ou ainda em um contexto social específico. Algumas dessas mudanças geram críticas e outras não. As variações consequentes de hábitos criados pela internet – presentes na abertura deste texto – aparentemente não mobilizam a criação de projetos de leis para sua proibição. Já o surgimento das linguagens neutra, não-binária e inclusiva têm incomodado bastante certos setores da sociedade. Por que?

Proibições são projeto político excludente

Desde 2020, têm surgido projetos de lei nas câmaras federal e estaduais que associam a linguagem neutra à “militância ideológica” de uma “minoria” e pretendem controlar o modo como se fala o português, além de proibir o uso de variações linguísticas nas escolas das redes pública e privada, assim como em materiais didáticos, concursos, atividades culturais e esportivas.

Ao pesquisarmos pelo termo linguagem neutra nos sites das casas legislativas, é possível localizar estes PLs e seus autores, em sua maioria homens que, em geral, se apresentam nas redes sociais como conservadores, religiosos, bolsonaristas, armamentistas etc. Curiosamente, a pesquisa evidencia a ausência de experiência deles no campo da educação.

Para a linguista Monique Amaral de Freitas, tais projetos seriam “filhos do movimento Escola Sem Partido e geram debates que não são muito diferentes do absurdo kit gay. São pretextos para perseguir e eliminar valores que eles condenam, ou seja, são projetos contrários à inclusão e à diversidade”.

Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou como inconstitucionais projetos de leis inspirados no Escola Sem Partido (ESP), ratificando que educadoras e educadores têm seu direito à liberdade de expressão assegurada pela Constituição, e que os debates sobre gênero e sexualidade em sala de aula são deveres da gestão pública da educação. Apesar desta derrota, conservadores com cadeiras políticas “estão procurando outros caminhos para implantar esse pânico moral”, afirma Fernanda Moura, Doutoranda em Educação (PUC-RJ) e integrante do coletivo Professores Contra o Escola Sem Partido.

Para a especialista, os PLs contra linguagem neutra seguem as mesmas lógicas de outros que defendem a militarização e a educação domiciliar (homeschooling), pois “apresentam a escola e os professores como inimigos”.

“Para eles, escola é um lugar de violência, de doutrinação, de sexualização. Mas, na verdade, a escola é um local onde as crianças estão seguras, aprendendo o que são situações de violência, a se proteger e a pedir ajuda. São pessoas alheias à escola que querem mudar a opinião da população sobre a educação como um direito.”

Fernanda afirma ainda que esses projetos “tiram o foco da má gestão e fazem com o que o presidente apareça, pois quando Bolsonaro diz que tirou a ‘ideologia de gênero’ e Paulo Freire da escola, quando um ministro diz que uma criança de 9 anos não está alfabetizada, mas sabe usar camisinha, eles estão acenando para sua base eleitoral de direita e fundamentalista”.

O que quer e o que pode esta língua?

“Quando você não tem o pronome você não tem voz”. Este é um dos sentimentos da população LGBTQIA+ em relação ao binarismo presente na língua segundo o Doutorando em Letras pela Universidade Federal do Paraná, Heliton Diego Lau, que, em suas pesquisas, entrevistou pessoas não-binárias que não se identificam com uma linguagem que divide o mundo entre masculino e feminino, excluindo pessoas com outras expressões de gênero. Desde o mestrado, Heliton adotou e se tornou fluente na linguagem não-binária para “mexer com o ‘cistema’ e mostrar que pessoas não-binárias existem e resistem”.

Além do binarismo, a banalização do masculino como genérico mesmo em situações em que as mulheres são maioria é um dos fatores que motiva estas mudanças linguísticas conforme explica Monique Amaral: “falamos os enfermeiros que estão trabalhando na pandemia, mesmo sendo uma profissão em que 87,4% são mulheres. É um efeito discursivo de apagamento delas. A linguagem inclusiva é um passo importante para discutir a relação entre língua, binarismo, androcentrismo e sexismo”.

Para ambos pesquisadores, no campo da linguística, “nada é neutro”, por este motivo evitam a expressão linguagem neutra e defendem o uso de linguagem não-binária e linguagem inclusiva para se referir a essas novas práticas presentes no Brasil e no mundo. Lau afirma que, independentemente das críticas e debates, estas mudanças vão se atualizar a cada tempo e “se hoje falamos todes e elus, não sabemos como será daqui a alguns anos, pois podem surgir outras formas de se representar as pessoas”.

Lau descata que, apesar de recente, a própria a linguagem inclusiva vem sofrendo variações. Anteriormente, para se opor ao binarismo, as pessoas substituíam as vogais o e a pelo x ou @, mas, segundo o pesquisador, esta prática tem sido abandonada, pois dificulta a fala da população em geral e a leitura das pessoas com deficiência visual, dado que os softwares leitores de tela não compreendem estas grafias. Esta transformação denota que esses grupos estão preocupados com as necessidades e os direitos de todas as pessoas, não só com as questões de gênero ou das ditas minorias.

Glossário

Androcentrismo

Ainda predominante mundialmente, é a noção de que os homens e as referências masculinas são ideais e norteadoras da vida social, excluindo as especificidades das experiências das mulheres.

Sexismo

É a discriminação baseada no sexo biológico ou no gênero. Dada a dimensão do machismo nas sociedades, comumente aplica-se o termo para designar especificamente o preconceito e a desvalorização das mulheres, e não contra os homens.