A educação antirracista diante do novo ensino médio e da militarização das escolas

Políticas têm sido aprovadas sem atender demandas de estudantes e população negra é a mais prejudicada pelas reformas educacionais

A educação antirracista diante do novo ensino médio e da militarização das escolas

Nos últimos anos, estudantes e escolas de todo país foram impactadas/os por várias mudanças em seu dia a dia: a aprovação do Novo Ensino Médio (Lei 13.415/17), a explosão de escolas cívico-militares, o fechamento das escolas com a pandemia de Covid-19 – nem sempre apoiado por ações que assegurassem a continuidade dos estudos de forma remota – e as várias alterações na lei do Novo Ensino Médio, nunca acompanhadas de aumento de investimento financeiro. Essas várias mudanças tiveram ao menos uma característica em comum: foram construídas e implementadas “de cima para baixo”, sem atender as demandas das e dos jovens, especialmente estudantes negras e negros das periferias, população que é a mais prejudicada pelas reformas educacionais em curso. 

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2023 mostram que cerca de sete em cada 10 jovens que abandonam a escola no Ensino Médio são negras e negros, sendo a necessidade de trabalhar o principal motivo. Apesar da aprovação de uma nova Política para o Ensino Médio em 2024, seguem os desafios com relação ao atendimento educacional de jovens que trabalham, principalmente daquelas e daqueles que abandonaram a escola. E os impactos das reformas educacionais para o Ensino Médio ainda afetam de forma negativa esses/as estudantes. 

Para ser bem sincera, depois da reforma eu dei até uma desanimada da escola, principalmente por causa da parte digital. Sinto que não aprendo tanto só com a tela de celular, é diferente de ter professor explicando. (…) Os mais afetados somos nós que moramos na periferia e, em maior escala, pretos e periféricos. A gente olha mais de fora e vê que quem tem condições melhores, tipo as escolas particulares, não tem o Novo Ensino Médio como a gente. Estou tendo que fazer cursinho popular por fora, e vou concorrer à mesma vaga, com as mesmas exigências, mesmo não tendo o mesmo estudo. Estou indo para a escola para terminar o Ensino Médio, mas dizer que realmente estou aprendendo alguma coisa, eu não estou.

Rebeca*, estudante do 3º ano do EM

Sendo preta e periférica, acho que muitos alunos da minha cor, a gente tem dificuldade de até mesmo seguir com essas plataformas [digitais]. Tá sendo horrível, porque a gente acaba não tendo tempo pra fazer as lições gerais dentro da sala de aula, os professores acabam tendo que fazer um trabalho que não é deles, e isso dificulta muito o ensino. 

Lara, estudante do 3º ano do EM 

Nós queremos ensino médio de qualidade, que a gente possa passar no vestibular, porque projeto de vida não vai me ajudar a passar na Fuvest. Quero que foque exatamente naquilo que a gente precisa pra gente ocupar o lugar que é nosso por direito, porque essa coisa do [novo] ensino médio só foi pra afastar mais e mais a periferia da faculdade. Porque vem aquela coisa “preciso trabalhar”. E dando demandas que a gente não precisa, como projeto de vida, empreendedorismo, afastando a gente mais e mais de uma faculdade pública, a pessoa trabalha mais e mais pra poder pagar uma faculdade particular. 

Bianca, estudante do 3º ano do EM

* Nomes fictícios para os depoimentos das jovens e dos jovens que contribuíram com a reportagem.

Mas o que há de novo no “Novo Ensino Médio”?

Outro fenômeno em franco crescimento em todo o Brasil, e em especial no estado de São Paulo, é a militarização das escolas. Um processo de caráter racista, machista, LGBTfóbico e excludente com estudantes mais vulneráveis, já que a militarização prega pela obediência e pela padronização – que é baseada em ideais brancos, heteronormativos e que privilegia apenas um tipo de masculinidade e feminilidade. 

Por exemplo: em março de 2022, uma estudante baiana negra foi impedida de entrar em sua escola por conta do cabelo crespo, recebendo a ordem de alisá-lo. No mesmo mês, em Santa Catarina, alunas receberam advertência por levar uma bandeira LGBT para a escola. Como destacou Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP e integrante da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação, a militarização “põe a escola a serviço de uma lógica racista de perseguição, de vigilância permanente e de contenção da juventude negra compreendida como uma ameaça à sociedade”. Isso se dá através da imposição de comportamentos rígidos e do silenciamento dos espaços de crítica ao modelo disciplinar militar, além do esvaziamento da gestão democrática e repressão à atuação de coletivos juvenis.

E os dados mostram a urgência de se debater e combater o racismo nas escolas: segundo a pesquisa Percepções do Racismo no Brasil, esse é o tema mais importante a ser debatido, com 69% das pessoas considerando-o prioritário. E cerca de 2 em cada 3 estudantes apontam justamente a escola como o ambiente onde mais o experienciam.

Um dos discursos utilizados para vender o modelo militarizado é de que essas escolas seriam “melhores”. Mas o que os dados mostram é que elas recebem muito mais investimento e que, na verdade, elas já tinham infraestrutura e nota do Ideb acima da média antes de serem militarizadas. E se a adesão à militarização não mudou substantivamente a “qualidade” do ensino nessas unidades, serviu para deixá-las mais excludentes. Isso porque, para aderir ao Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), as escolas tiveram que cumprir requisitos como fechar turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e de ensino noturno – caracterizadas por receberem estudantes trabalhadoras e trabalhadores. 

“Em geral, o perfil das escolas muda depois da militarização: embranquecem, atendem pessoas com mais condições financeiras, passam a ter congestionamento de carros”, descreve Catarina Almeida dos Santos, professora da UnB e especialista em militarização. Catarina ainda pontua o paradoxo de, por questões de segurança, se cogitar ou implementar um modelo liderado pelas mesmas forças responsáveis pela repressão à juventude negra: “É contraditório militarizar a escola com o discurso de garantir segurança e colocar dentro dela exatamente quem não garante a segurança do lado de fora, especialmente para quem é pobre e negro. É porque a sociedade está insegura que a escola também está, e não o contrário. Chamar os responsáveis por essa falha para resolvê-la não resolve nada”. A professora da Unifesp e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), Débora Goulart, complementa: “o que significa para um estudante negro, que tem medo da polícia na rua, tê-la na escola? Sendo a escola esse ambiente que, com todos seus problemas, em geral é onde os jovens conseguem se expressar, se coletivizar e expressar suas identidades. A figura militarizada na escola enfraquece a possibilidade desses grupos se fortalecerem”.

Na minha escola, em comunidade, não ia dar certo. Os alunos estariam em risco. 

Giovana, estudante do 1º ano do EM. 

A militarização nas escolas afeta o jovem negro acho que não só na parte estudantil, mas também o psicológico. Porque querendo ou não essas escolas querem que nós sejamos moldados ao que eles querem, na vestimenta, no cabelo. Então essas escolas são voltadas para que as pessoas percam a capacidade de pensar contra o sistema, entende? Porque pensando contra o sistema vem a revolução e eles não querem a revolução. Com essas escolas eles moldam os alunos pretos e periféricos pra que eles comecem a pensar exatamente da forma que eles querem que a gente pense. E com toda essa revolta contra a militarização isso pra eles está causando uma revolta do caramba, porque pra eles não deveria ser assim, preto não deveria ter voz. Periférico não tem voz. Como assim você tá indo contra o que eu tô falando?  

Bianca, estudante do 3º ano do EM

Ano passado trabalhei com mais pessoas da minha escola para ela não virar cívico-militar nem PEI, por conta da estrutura dela e da própria comunidade que está. Não seria bom para a escola e nem para os professores. E ficaram insistindo para virar, mandaram alguns alunos para outras unidades ver para como eram. Mas na nossa realidade não funciona. Eu agora no pré-exército já estou vendo que se você prestar atenção percebe que é um ambiente muito controlador, tem que seguir tudo à risca, querem bonequinhos. Ou segue à risca ou é humilhado, tem a voz calada.

Leandro, estudante do 3º ano do EM

Acho que seria difícil [se a escola se militarizasse], porque a gente já tem que seguir regras, às vezes a gente não tem muito a oportunidade de dar nossas opiniões, expressar o que a gente pensa, fala, sente. Acho que isso ficaria muito difícil. Acaba tendo muita regra e são pessoas que deveriam proteger nosso povo, nossa periferia, mas acabam prejudicando muito. Acho que isso não funcionaria muito nas escolas. tanto pra nós como pretos ou como qualquer pessoa em geral, LGBTs…acho que não funcionaria muito bem. 

Lara, estudante do 3º ano do EM 

Apostas e caminhos

As juventudes, especialmente as negras, periféricas e LGBTQIA+, sempre encontraram muitas formas de se expressar e de resistir aos sucessivos desmontes. E seguem resistindo à imposição do Novo Ensino Médio, das escolas militarizadas e de políticas que as afetam diretamente. Seguem lutando por uma educação de qualidade, que abra caminhos e oportunidades para o futuro e que as/os escute – por que uma educação antirracista é uma educação que interrompe e corrige desigualdades históricas, o que também inclui assegurar a gestão democrática e a participação efetiva de estudantes

Vai ser a gente pela gente pra tentar mudar a realidade. Se a gente não fizer nada, pra eles tá bom. Então os próprios estudantes que têm que se mover de alguma forma pra mudar a realidade.

Rebeca, estudante do 3º ano do EM

O adolescente negro tá na base, tentando ainda entender os assuntos. E desde que me entendo por gente não vejo recompensa por debater, muitas vezes as escolas não querem que você pense e conheça seu próprio país. Isso é muito frustrante, ir colocando na cabeça das pessoas que se você é de classe baixa, pobre, negro, não pode ser ouvido. Acho que as pessoas deveriam ter mais compaixão, isso ir escalando para quem tem cargos públicos, porque ninguém é melhor do que ninguém, isso foi colocado para a gente seguir regras e ter medo de mudar, de ter um pingo de esperança.

Leandro, estudante do 3º ano do EM

Acho que a gente deveria se unir mais. Com tudo isso que está acontecendo é mais um direito pra gente se unir e dizer que nós temos vozes, que nós temos direito de fazer o que a gente quer na escola porque nós somos os alunos, temos o direito de expor nossa opinião e falar o que a gente sente.

Lara, estudante do 3º ano do EM

O que a gente pode fazer enquanto estudante periférico é ir pras ruas mesmo. Por que a gente é movimento social né? Pretos e periféricos são movimento social sim, vão pra rua, vão alcançar. Eu e você aqui fazendo reclamação não vai ter voz nenhuma, mas junta um monte de pessoas e vai pra Paulista pra você ver. Vai ter atenção, e quanto mais atenção melhor. Acho que a gente como estudante tem que sim reivindicar nosso direito e ir atrás porque aquela faculdade pública é nossa por direito.  (…) Encontros como o de hoje [dos Projetos SETA e Tô No Rumo] ajudam os jovens a pensar. Todo mundo já pensa nisso, mas ajuda a formular o que tá pensando, sabe? Vai juntando ideias que talvez uma pessoa só não consiga pensar. Todo mundo quer a mesma coisa, uma melhoria, mas só como um todo podemos fazer diferença.

Bianca, estudante do 3º ano do EM

Educação antirracista e o papel da escola: entrevista com Luana Tolentino

Em seu novo livro, Luana Tolentino convida escolas a refletirem sobre as violências de raça e gênero e se comprometerem por uma educação antirracista

Educação antirracista e o papel da escola: entrevista com Luana Tolentino

Ter uma educação ativamente antirracista e antissexista é fundamental para garantir o direito à cidadania plena para crianças, adolescentes e jovens. É disso que trata o novo livro da educadora e escritora Luana Tolentino. Sobrevivendo ao racismo: Memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil (editora Papirus 7 Mares) reúne textos publicados na revista Carta Capital que abordam vivências da própria Luana e notícias recentes, buscando sensibilizar quem lê para se engajar na transformação da realidade. 

Com uma longa trajetória na educação, Luana Tolentino atualmente tem se dedicado à formação inicial e continuada de professores. Ela compõe o novo comitê de seleção do Edital Igualdade de Gênero na Educação Básica 2023, promovido pelo projeto Gênero e Educação, da Ação Educativa. Em sua terceira edição, o Edital celebra os 20 anos da alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação pela Lei n. 10.639/2003, que instituiu a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira. Dessa forma, o edital irá valorizar propostas que articulem as dimensões de gênero e raça.

Conversamos com Luana sobre seu novo livro e o lançamento em São Paulo, que será realizado no dia 20 de junho, às 19h, na Livraria da Travessa (Rua dos Pinheiros, 513). 

Você pode contar um pouco sobre seu novo livro, Sobrevivendo ao racismo? Como foi o processo de organizar memórias e situações mais recentes sobre o impacto do racismo para a experiência de estudantes negras/os?

Os textos que compõem o livro foram escritos entre 2017 e 2022 e foram publicados na coluna que eu mantenho na Carta Capital. Eu queria lançar um livro novo e, garimpando que livro seria esse, me veio que eu tinha muitos textos falando sobre a questão racial e os impactos do racismo na educação. São textos, especialmente, em que eu aparecia muito – trazendo a questão da memória, trazendo a Luana menina, para pensar a questão do racismo. E a partir dessas memórias, é fazer com que as pessoas possam refletir a respeito dos impactos do racismo na trajetória de crianças e adolescentes negras, principalmente no contexto escolar, no espaço educacional.

Estamos num momento muito singular da luta racial, pela promoção da educação antirracista. Nós percebemos, sobretudo por parte dos educadores que estão no chão da escola, todo um trabalho de implementação da Lei n.10.639, que tornou obrigatório em 2003 o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira em instituições públicas e privadas. E esse engajamento e compromisso vem acompanhado também de muitas denúncias de racismo no contexto escolar, de violências, negligências, equívocos, de questões racistas na promoção de práticas pedagógicas.

Trazendo para o livro, eu trato de transformar em crônica esses episódios que têm circulado muito na mídia e nas redes sociais, de modo a fazer com que as pessoas reflitam sobre isso, sobre de que maneira nós vamos enfrentar e de trabalhar para que fatos como os que eu cito não se repitam. Tem as minhas histórias, que se cruzam com esses fatos, e reflexões sobre esses fatos. É uma escrita muito ocupada, muito pensada para sensibilizar os leitores – sejam educadores ou de outras esferas profissionais –, com o sentimento e o desejo de que as pessoas assumam um compromisso com o combate ao racismo.

Como você vê a articulação entre as dimensões de gênero e raça no cotidiano escolar?

Tem duas autoras, que inclusive eu cito no livro: a escritora afro-americana Toni Morrison e a Viola Davis, por quem eu sou perdidamente apaixonada. Toni Morrison diz que a menina negra é a mais vulnerável das criaturas. Já a Viola Davis diz que a soma de pobreza e racismo é brutal para essas meninas. Então não é possível pensar a questão de gênero sem fazer um recorte, um atravessamento de raça, quando se trata do contexto educacional, já que as meninas fazem parte do grupo mais vulnerável no espaço escolar.

Se sobre os meninos negros incide a violência física, sobre as meninas pesa a violência física, a violência simbólica e a invisibilidade. Ao se pensar o enfrentamento do racismo e as políticas públicas de promoção da equidade racial no contexto educacional, é preciso fazer essa interseccionalidade de gênero e raça, já que esse grupo tem ficado para trás no contexto educacional e nas políticas públicas. 

Como a sociedade pode se engajar para que estudantes não apenas sobrevivam ao racismo, mas tenham acesso a uma educação que de fato enfrente as desigualdades raciais?

Há uma grande diferença entre sobreviver e viver. E a nós negros têm sido negado o direito de viver em plenitude, já que ainda tem sido negado o direito à educação a nós: o direito de ingressar, permanecer e ter uma trajetória exitosa nos espaços escolares. Tem sido negado o direito à saúde, à moradia, ao trabalho. Tem sido negada ainda a nossa condição de gente, tem sido negada diariamente a nossa humanidade.

É fundamental que toda a sociedade se engaje para que a trajetória da população negra não seja apenas uma trajetória de sobrevivência, mas que seja garantido a esse grupo o direito à vida e cidadania plena. E a escola tem um papel fundamental nesse processo, ela precisa ser o espaço de reconhecimento e de valorização da diversidade étnico-racial, da comunidade negra e das contribuições da população negra para a construção desse país. Ao fazer isso, a escola estará se colocando no lugar de garantir o direito à vida a pessoas como eu, a crianças, a jovens, a adolescentes negros e negras desse país.

Estudantes demandam discussões sobre gênero, raça e sexualidade na escola

Projetos elaborados por estudantes comprometidos com um Ensino Médio de qualidade reforçam a necessidade da abordagem das agendas, apesar de resistências da comunidade escolar

Ilustração: Dillasete

Se desde 2013, nas discussões sobre o atual Plano Nacional de Educação (PNE), setores conservadores tentam retirar a discussão de gênero das escolas, as comunidades escolares, especialmente estudantes, nunca deixaram de pautar e reivindicar as agendas que consideram primordiais no ambiente escolar, ainda que encontrem resistência. Prova disso são as formações de redes contra a censura na educação e as muitas iniciativas estudantis que seguem demandando discussões sobre gênero, raça e sexualidade para promover o respeito com todas as pessoas, prevenir violências e avançar na melhoria da qualidade educacional. 

Algumas dessas iniciativas se inscreveram e foram contempladas pelo Edital “EM LUTA – Estudantes por um Ensino Médio de Qualidade!”, promovido pelo projeto Tô no Rumo, da Ação Educativa, em 2022. Nelas, estudantes da grande São Paulo receberam apoio para levar suas demandas para a escola pública: organizaram palestras, oficinas, slams e debates, muitas vezes sem o apoio da diretoria ou coordenação pedagógica. E reafirmaram que escola é sim um espaço para combater o racismo, sexismo e a LGBTfobia.  

O projeto “Lute como uma garota” é um exemplo da persistência das estudantes. Duas alunas do terceiro ano do Ensino Médio, com base em experiências pessoais e de outras meninas dentro da escola, viram a urgência de debater e combater o assédio sexual e moral, principalmente contra jovens negras. Em 2022, conseguiram organizar 3 dias de palestras sobre gênero, raça e sexualidade, realizadas por uma facilitadora externa, além de fazer intervenções pela escola (no Jardim Varginha/SP) com informações sobre legislação e sobre como procurar ajuda em caso de violência, inclusive psicológica. 

“Dar início ao projeto foi bem difícil, e acabamos atrasando porque a direção, apesar de formalmente apoiar o projeto, resistiu muito. Nós apresentamos o projeto em todas as reuniões com os professores, além da direção, e o diretor não estava presente para apoiar. Mas depois que conseguimos realizar a primeira palestra correu com mais facilidade”, relata Bianca*, de 18 anos, uma das idealizadoras do “Lute como uma garota”. 

Em contrapartida, tanto as alunas e alunos impactados pela iniciativa como o corpo docente demonstraram grande aceitação. “A resistência veio justamente daqueles que praticavam assédio, mas foi uma minoria”, conta Bianca. Os três dias de oficina, segundo ela, fomentaram e muito a discussão sobre assédio na escola – um problema que partia de professores ou funcionários contra alunas, mas também de alunos contra professoras. A questão era tão presente na escola que até mesmo alunos do ensino fundamental fizeram parte do projeto (as conversas com esse público tiveram linguagem e conteúdo adaptado para a faixa etária e etapa). Uma intervenção que se mostrou tão necessária que mesmo que as idealizadoras do projeto tenham concluído o Ensino Médio em 2022, a comunidade escolar se movimenta para dar seguimento ao “Lute como uma garota”. 

Já em uma escola estadual de Sumaré, quatro estudantes do segundo ano do EM interviram para trazer discussões de autoconhecimento e educação sexual para os colegas. “Percebia que a falta de autoconhecimento e de conhecimento sobre essas questões estava atrapalhando as relações sociais dentro da escola. Notamos que no local onde mais temos interações sociais, éramos reprimidos”, lembra Julia*, que idealizou o projeto “Em busca do seu eu”. A iniciativa tinha o objetivo de falar abertamente sobre raça, igualdade de gênero, orientação sexual, capacitismo e temas correlatos, a fim de acolher estudantes, trabalhar a autoestima e incentivar uma cultura de respeito e de combate a preconceitos e discriminações. 

Neste caso, planejar foi a parte fácil. Difícil foi vencer a resistência de pais e responsáveis em tocar no assunto. Foram, por exemplo, veementemente contra a distribuição de um kit de prevenção a ISTs e gravidez, e conseguiram vetar a iniciativa. Ou melhor, a própria escola achou melhor vetar com medo das represálias. “Tivemos que ter esse cuidado por conta da resistência da comunidade escolar, que não permitiu que fizéssemos tudo que estava originalmente previsto”, conta Julia. Ela, que inscreveu mais de um projeto no Edital, conta que o “Em busca de seu eu”, por tratar de temas tabus, era sempre visto com algum medo, desconfiança ou “pé atrás”. Mas ainda foi possível concretizar várias ações: levaram uma psicóloga para falar com as/os/es estudantes, fizeram gincanas de autoconhecimento, trabalharam as emoções, realizaram uma intervenção artística e distribuíram a cartilha “Por que discutir gênero na escola?”. 

“A palestra da psicóloga foi muito boa, especialmente porque fazia tempo, por conta da pandemia, que não tínhamos essa atividade presencial. No fim, tanto estudantes como familiares gostaram. A apresentação da artista Lila May foi muito interativa, e foi seguida por uma roda de conversa sobre como as mulheres são tratadas na sociedade e na escola”, relembra Julia. A estudante, agora no último ano do Ensino Médio, avalia que o projeto foi bem-sucedido com base no retorno das/dos/des jovens e também da equipe da escola, que, segundo ela, começou a tocar mais nestes assuntos. O professor de biologia do Ensino Médio, por exemplo, viu na iniciativa a deixa perfeita para falar de educação sexual e prevenção a ISTs nas aulas. “Mostramos que dá para abordar um assunto ‘pesado’ para a comunidade escolar. Faltava alguém colocar a ideia na mesa para as pessoas abraçarem”, resume a estudante. 

Essa conclusão vai inteiramente ao encontro do que mostrou a pesquisa “Educação, Valores e Direitos”, realizada em 2022 pelo Centro de Estudos em Opinião Pública (Cesop/Unicamp) e coordenada pela Ação Educativa e pelo CENPEC. Os resultados deste amplo estudo, que ouviu mais de 2.000 pessoas de 16 anos ou mais em todas as regiões do país, mostram que, na verdade, a população brasileira apoia a discussão sobre gênero, raça e sexualidade na escola, bem como tem opiniões progressistas em relação à militarização das escolas e à educação religiosa. Por exemplo, sete em cada dez entrevistados acreditam que a escola está mais preparada que os pais para explicar temas como puberdade e sexualidade, e nove em cada dez concordam que a discriminação racial deve ser debatida pelos professores. Quase 90% de quem respondeu à pesquisa concorda com a discussão sobre desigualdades entre homens e mulheres e quase 80% concorda que os pais não devem ter o direito de tirar seus filhos da escola e ensiná-los em casa. E o apoio da população à abordagem da igualdade de gênero e da educação sexual se torna ainda maior quando esse termo é concretizado em questões como o enfrentamento ao abuso sexual contra crianças e adolescentes e a violência contra mulheres.

“Uma das grandes contribuições da pesquisa é evidenciar o poder da vivência cotidiana para tensionar e, muitas vezes, desmontar discursos conservadores”, ressalta Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP/SP que coordenou a pesquisa pela ONG Ação Educativa e integrante da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala. “Na perspectiva da educação popular, constatamos que quando aterrissamos o debate em experiências das pessoas em suas famílias e comunidades, as posições muitas vezes mudam. Posições contrárias às agendas de direitos humanos são repensadas quando se ativa casos concretos que mostram como, por exemplo, a educação sexual integral tem um papel decisivo na prevenção de casos de abuso sexual de crianças e adolescentes. Há complexidade, contradições e brechas que favorecem a retomada e o fortalecimento de uma agenda comprometida com a educação em direitos humanos, uma educação em prol da igualdade de gênero, raça e sexualidade, que estimule uma perspectiva crítica frente às nossas profundas desigualdades e à história autoritária e violenta do país”, completa. 

O projeto “Diversidade e inclusão na prática: educação igualitária e de qualidade para todos”, executado em uma escola em Poá/SP, é ilustrativo dessa complexidade. Proposto pelo coordenador pedagógico em parceria com alunas do segundo ano do ensino médio, tinha como objetivo promover a reflexão da comunidade escolar sobre temas urgentes como racismo, homofobia, diversidade de gênero, inclusão, violência, intimidação, saúde mental e qualidade da educação, especialmente considerando o contexto de retorno às aulas presenciais pós pandemia de COVID-19 e da reforma do Ensino Médio. Mais uma vez, familiares e responsáveis se opuseram à iniciativa, que tinha boa aceitação entre os corpos docente e discente. A tentativa de coação chegou a tal ponto que o projeto foi “denunciado” para o mandato da deputada Carla Zambelli, que enviou um e-mail para a escola acusando-a de “ideologia de gênero” e de tentar “doutrinar” estudantes. Felizmente, a escola não embarcou na tentativa de represália e o projeto seguiu mesmo assim. 

“Nós pensamos no projeto para tentar abrir a cabeça dos alunos, para ter uma visão mais abrangente sobre o que é viver em sociedade”, define Patrícia*, uma das idealizadoras do projeto. “Tínhamos muitas denúncias de brincadeiras de mau gosto ou ações violentas contra alunos da comunidade LGBTQ, por exemplo. E achamos que um dos motivos disso é a falta de informação ou de iniciativa da escola de ensinar sobre isso”, explica ela, que ressalta que nenhuma dessas agendas constava na nova grade da escola de acordo com o Novo Ensino Médio. “Esse modelo está sendo horrível. O que vemos é só uma sobrecarga dos professores, isso quando há professores. Eu escolhi o percurso de artes, mas não tive uma única aula de artes no ano porque não havia professores. Tentaram colocar mais coisa onde não se tem o básico”, critica. 

Neste contexto, as ferramentas encontradas pelo projeto para suscitar o debate foram a realização de palestras participativas, uma excursão até a USP e uma batalha de slam – com participação de uma slammer LGBT convidada para disparar a reflexão, intervenção que deu tão certo que não se encerrou com o projeto. As denúncias de agressão dentro da escola diminuíram, alguns alunos pediram desculpas por comportamentos passados e, segundo Patrícia, algumas “piadas” ou “brincadeiras” pararam. 

Ou seja, mesmo em contextos adversos é possível pensar em soluções e iniciativas para discutir temas urgentes na escola – e as estudantes mostram que querem falar sobre isso. E que tais intervenções podem sim fazer a diferença. Como ressalta Denise Carreira, da FEUSP e rede Malala, “os coletivos e movimentos juvenis têm sido decisivos por alimentar esse debate no cotidiano escolar, pressionando às escolas, às universidades e às políticas educacionais a transformarem seus currículos. Têm sido decisivos por empurrar estas agendas pra frente em um contexto adverso, caracterizado por ataques diversos à laicidade de Estado e pela censura e grande autocensura nas escolas. Precisamos que a política educacional reconheça as demandas, as propostas e acúmulos juvenis e estudantis, em articulação com o estímulo e a valorização de experiências promovidas por coletivos docentes, com a urgente retomada de políticas de formação para profissionais de educação sobre essas agendas. A política educacional precisa enfrentar a atmosfera de medo e insegurança nas escolas, decorrente da ação de grupos ultraconservadores, afirmando a necessidade fundamental da retomada e fortalecimento do debate sobre gênero, raça e sexualidade em creches e escolas”.

*Os nomes das estudantes foram alterados para sua proteção. 

Texto publicado originalmente em: De Olho Nos Planos