Mandado de segurança no STF questiona a ausência de participação da sociedade civil na definição do orçamento 2021

Coalizão Direitos Valem Mais cobra do Congresso Nacional a definição de processos participativos de discussão do orçamento, como a realização de audiências públicas sobre a Lei Orçamentária Anual, que deve ser apreciada pela Comissão Mista de Orçamento ainda essa semana.

Em colagem, é possível ver cinco punhos erguidos, um dos quais segura a Constituição Federal Brasileira de 1988

Em um contexto dramático de pandemia com crescimento acelerado da fome, da miséria, do desemprego e do desespero, que explicita a necessidade urgente de um Orçamento 2021 que proteja a população dos impactos negativos da pandemia e da crise econômica, a Coalizão Direitos Valem Mais deu entrada nesta quarta-feira (24/02) em um mandado de segurança no Supremo Tribunal Federal cobrando a participação da sociedade civil no processo de construção do Orçamento 2021.

Seis entidades da sociedade civil assinam o mandado em nome da Coalizão, são elas: Ação Educativa; Fian Brasil – pelo direito à alimentação e à nutrição; Congemas – Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social; Gestos Soropositividade Comunicação e Gênero; Associação Franciscana de Solidariedade; e Idisa – Instituto de Direito Sanitário Aplicado.

Criada em 2018, a Coalizão é um esforço intersetorial que atua por uma nova economia comprometida com os direitos humanos, com a sustentabilidade socioambiental e com a superação das profundas desigualdades do país. Para isso, reúne mais de duzentas entidades ligadas à gestão pública, organizações da sociedade civil, conselhos nacionais de direitos, movimentos sociais, entidades sindicais, associações de juristas e de economistas e instituições de pesquisa acadêmica.

A Coalizão critica as inúmeras indefinições por parte do Congresso Nacional que comprometeram o debate público e impuseram a apreciação aligeirada da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) no ano de 2020. Essas indefinições inviabilizaram a instalação da Comissão Mista de Orçamento (CMO) em 2020 e resultaram em uma discussão da LDO diretamente no plenário e com baixa participação social.

Agora, na apreciação da LOA, apesar de instalada a Comissão, foi impossibilitada a realização de audiências públicas e a implementação de outros mecanismos constitucionais de participação da sociedade civil.

“Prevista na Constituição, a participação da sociedade civil no debate orçamentário garante transparência e melhores escolhas de investimento. Neste momento de crise profunda que o país atravessa, constatamos o fechamento ainda maior do Congresso Nacional para a participação da sociedade civil, principalmente aquela comprometida com os direitos constitucionais”, afirma Eloisa Machado, professora de direito constitucional da Fundação Getúlio Vargas, que assina o Mandado de Segurança junto com a advogada Melissa Mestriner.

No documento, as entidades assinalam que a realização de audiências públicas com representantes públicas e da sociedade civil é prevista na Constituição “e que, portanto, é função da Comissão garantir que a sociedade seja ouvida e que as reivindicações sejam consideradas no momento de votação das emendas. “É através de intensa discussão e negociação de emendas que se concretiza a lei orçamentária enquanto instrumento legítimo de alocação de prioridades”, afirma o mandato.

O documento cita ainda recente medida liminar do Supremo em que a Corte afirma como “imprescindível a criação de condições a franquearem, no debate público, idêntica oportunidade a todos os cidadãos para influenciar e persuadir em contexto discursivo aberto, livre e igualitário” – o que não tem sido feito no atual debate orçamentário.

Piso emergencial no orçamento

As mais de duzentas associações e consórcios de gestores públicos; organizações, fóruns, redes, plataformas da sociedade civil; conselhos nacionais de direitos; entidades sindicais; associações de juristas e economistas e instituições de pesquisa acadêmica das várias áreas sociais que integram a Coalizão Direitos Valem Mais estão apresentando, esta semana, um conjunto de propostas que visam fortalecer a Lei Orçamentária Anual 2021. Dada a ausência de audiências públicas, as propostas da sociedade civil estão sendo levadas como sugestões de emendas, para que parlamentares possam apresentá-las no debate da LOA.

O conceito central que orienta as emendas é a previsão de Piso Mínimo Emergencial para Serviços Essenciais no orçamento federal, um instrumento para o enfrentamento da pandemia e de suas consequências nas condições de vida da população.

Formulado em nota técnica, o Piso é uma referência de valor para as áreas de saúde, educação, assistência social e segurança alimentar que deve interromper a deterioração orçamentária acelerada que essa políticas vem sofrendo desde 2015.

A cifra prevista na proposta do governo federal para essas áreas totaliza R$ 374,5 bilhões, o que corresponde apenas a 58% do Piso Mínimo Emergencial para a garantia desses direitos essenciais

O que o piso emergencial vai garantir

Segundo especialistas da Coalizão, o Piso permitirá interromper o processo de desfinanciamento acelerado dos serviços sociais e garantir condições melhores para que:

  • O Sistema Único de Saúde (SUS) enfrente o contexto da pandemia e do pós-pandemia, com a aquisição de medicamentos e vacinas; que considere os efeitos crônicos de saúde gerados pela Covid-19; responda à demanda reprimida por saúde de 2020, decorrente do adiamento de cirurgias eletivas e exames de maior complexidade, bem como da interrupção no tratamento de doenças crônicas.
  • A política de educação se organize para a retomada das escolas com menor número de alunos por turma (segundo a OCDE, o Brasil é um dos países com o maior numero de estudantes por turma), maior número de profissionais de educação, adequação das escolas para o cumprimento de protocolos de segurança e proteção, ampliação da cobertura de acesso à internet de banda larga para os estudantes da educação básica e ensino superior no país, retomada dos programas de assistência e permanência estudantil na educação básica e no ensino superior. Na elaboração da nota, considerou-se também o aumento da complementação da União ao Fundeb de 10% para 12% prevista da Emenda Constitucional 108, aprovada pelo Congresso Nacional em agosto, o aumento do montante destinado ao PDDE – Programa Dinheiro Direito na Escola para adequação das escolas às medidas de segurança e a migração de estudantes de escolas privadas para a educação pública, decorrente da perda de poder aquisitivo das famílias de classe média diante do aumento do desemprego e da crise econômica.
  • Retomada das condições de manutenção dos serviços e a ampliação da cobertura do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) para atender a demanda gerada pela pandemia, aumento do desemprego e de diversas violações de direitos, bem como garantir maior efetividade do programa Bolsa Família por meio de uma rede de serviços integrados. O desfinanciamento progressivo e a insegurança nos repasses federais de recursos ordinários ao SUAS comprometem o atendimento de mais 40 milhões de famílias referenciadas e os mais de 21 milhões de atendimento realizados anualmente, nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) de pessoas e famílias afetadas pelo desemprego, fome, fragilidade nos vínculos familiares e iminência de violência doméstica; diminuição dos atendimentos a pessoas em situação de rua, migrantes e idosos; e a drástica redução do atendimento a crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil ou em exploração sexual nos serviços especializados.
  • Enfrentamento do crescimento acelerado da fome e da desnutrição no país por meio da retomada das condições de financiamento do Programa Aquisição de Alimentos (PAA), que fornece alimentos saudáveis por meio da agricultura familiar, beneficiando aproximadamente 185 mil famílias de agricultores familiares e milhões de famílias em situação de vulnerabilidade social que recebem esses alimentos por meio de uma rede de 24 mil organizações socioassistenciais; do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) que atende cerca de 41 milhões de estudantes no país; da ampliação do acesso à água para abastecimento humano e produção de alimentos com cisternas no semiárido brasileiro para uma população de 1,8 milhão de famílias; de recursos federais para a manutenção de 152 restaurantes populares no país, que fornecem alimentação para famílias de alta vulnerabilidade social. Atualmente, o país possui uma rede de restaurantes populares construída pelo governo federal que se encontra subutilizada em decorrência da falta de recursos municipais para a sua manutenção.

A proposta do Piso Emergencial no Orçamento 2021 é resumida em uma animação de apenas três minutos:

Piso Emergencial no Orçamento de 2021

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Mobilização em defesa do auxílio emergencial e contra a desvinculação de recursos da saúde e educação é destaque no Twitter

Hashtag #AuxilioSimDesmonteNao alcançou o segundo lugar entre os assuntos do Twitter e acumulou mais de 18 mil mensagens nas redes sociais. Como resultado da mobilização, votação da PEC Emergencial foi adiada para a próxima semana.

Em colagem, é possível ver montagem com uma lupa, um globo terrestre, umão mão segurando uma seringa, um frasco de vacina e duas máscaras de proteção.

Uma mobilização nacional, articulada por várias redes, organizações e movimentos sociais, pela garantia do auxílio emergencial com a manutenção do investimento obrigatório em saúde e educação alcançou os “trend topics” do Twitter. Entre 10h e 11h, o tuitaço com mais de 18 mil tweets fez o tema chegar ao segundo posto da lista dos assuntos mais falados do dia.

A mobilização protestava contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 186. Apelidada de “PEC Emergencial”, a medida condiciona a prorrogação do auxílio emergencial ao fim da vinculação constitucional de recursos em saúde e educação.

“A vinculação é o investimento de um percentual mínimo obrigatório que União, os estados e municípios devem destinar para a saúde e a educação. O Brasil só perdeu a vinculação de recursos duas vezes na história, no Estado Novo e na ditadura militar.  Ausente apenas em períodos autoritários, a vinculação é fundamental para que não haja retrocesso nessas áreas, que já convivem com o subfinanciamento histórico”, afirma Denise Carreira, da coordenação executiva da Plataforma Dhesca e da Coalizão Direitos Valem Mais – pelo fim do Teto de Gastos e por uma nova economia. Composta por duzentas organizações e redes da sociedade civil, a Coalizão foi uma das redes que convocaram a mobilização nacional. 

Depois da mobilização nas redes, a votação da PEC foi adiada para a próxima terça-feira (2).

“É importante nos mantermos alertas. A PEC não caiu, sua votação foi apenas adiada, então a pressão precisa continuar. O texto da PEC contém várias armadilhas contra direitos sociais para além da ameaça à vinculação constitucional”

O risco de colocar o equilíbrio fiscal acima dos direitos sociais

Além do corte em saúde e educação, a PEC186 ameaça também os demais direitos sociais. Ela determina uma alteração no artigo 6º da Constituição Federal, constitucionalizando a manutenção do equilíbrio fiscal como uma prioridade acima da garantia de direitos.

“Os direitos continuam lá, mas deixam de ser efetivos ou ficam subordinados a uma figura abstrata chamada ‘equilíbrio fiscal intergeracional’. Com isto, o cumprimento dos direitos fica subordinado a uma avaliação econômica. Essa avaliação pode ser, por exemplo, a de que o déficit é grande e a dívida é alta ou crescente e portanto, justifica-se o não cumprimento dos direitos”, analisa Pedro Rossi, professor de economia da Unicamp e integrante da Coalizão Direitos Valem Mais.

No lugar da PEC186, a Coalizão Direitos Valem Mais defende a prorrogação do Auxílio Emergencial via garantia do Piso Mínimo para Serviços Essenciais na Lei Orçamentária Anual 2021. O Piso é um referencial de valor para saúde, educação, assistência social e segurança alimentar de forma a interromper a deterioração orçamentária acelerada que essas áreas têm enfrentado desde 2015. O montante do piso é de 300 bilhões a mais do que a cifra prevista pelo governo para essas áreas.

Uma pequena animação que tem circulado pela internet resume a proposta e apresenta os serviços que ela vai garantir: 

O Piso representa a garantia de demandas urgentes como a vacinação da população, a prorrogação do auxílio emergencial, a segurança para o retorno às aulas e o enfrentamento da fome, que tem crescido em disparada no país. 

Sobre a Coalizão Direitos Valem Mais

Criada em 2018, a Coalizão é um esforço intersetorial que atua por uma nova economia comprometida com os direitos humanos, com a sustentabilidade socioambiental e com a superação das profundas desigualdades do país. Atualmente, mais de 200 reúne associações e consórcios de gestores públicos; organizações, fóruns, redes, plataformas da sociedade civil; conselhos nacionais de direitos; entidades sindicais; associações de juristas e economistas e instituições de pesquisa acadêmica.

Uma das agendas centrais da Coalizão é o fim do Teto de Gastos (EC95/16), emenda constitucional que restringiu os recursos das áreas sociais por 20 anos. A EC95/16 é definida pela ONU como a medida econômica mais drástica contra direitos sociais do planeta. Atualmente, duas propostas de emenda revogatória da EC 95 tramitam no Congresso Nacional: a PEC 54/2019 e a PEC 36/2020. 

Site da Coalizão: www.direitosvalemmais.org.br

#FundebÉPúblico: acompanhe a votação ao vivo no Senado.

Senadores analisam hoje o Projeto de Lei 4.372/2020, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). Especialistas avaliam que a proposta é inconstitucional.

Em colagem, é possível ver punho de criança escrevendo em caderno.

Hoje (15), às 16h, o Plenário do Senado Federal irá votar o Projeto de Lei 4.372/2020 que regulamenta o repasse de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) para o ano de 2021.

O texto, aprovado na última quinta-feira (10), na Câmara dos Deputados, apresenta pontos controversos e que são um ataque à educação pública. A alteração pelos parlamentares autoriza o uso dos recursos do Fundeb pelo setor privado – escolas filantrópicas, comunitárias, confessionais e o Sistema S (Senac, Sesi e Senai).

Em nota técnica, a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação e a Fineduca apontam que “o Projeto de Lei nº 4.372/2020, aprovado em plenário no dia 10 de dezembro de 2020, é um retrocesso, não respeita a Constituição Federal de 1988 e o pacto democrático pelo direito à educação. Ele contém determinações que afrontam, além da EC nº 108/2020, outras normas, da própria Constituição da República e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996)”.

Perda de 15,9 bilhões

Ainda em nota, a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação e a Fineduca explicam que, caso o texto da Câmara seja aprovado no Senado, serão 15,9 bilhões a menos para a educação pública. Entenda esse montante:

  • equivale a 2,4% a mais do que toda a complementação da União realizada em 2019 ao Fundeb (que foi de R$ 15,6 bilhões);
  • representa 9,5% do total do fundo em 2019 (R$ 168,5 bilhões, considerando as contribuições de estados, municípios, DF e União);
  • corresponde a 80,4% do que seria o novo aporte da União ao Fundeb aprovado pela EC 108/2020 que, no sexto ano, será de 23% (em valores de 2019, representaria novo aporte de R$ 19,9 bilhões);

é resultado:

  • Emenda 10 – 10% no EF e EM  + R$ 10,2 bi para o setor privado
  • Emenda 7 – contraturno  + R$ 4,4 bi para o setor privado
  • Emenda 40 – Sistema S + R$ 546 mi para o setor privado
  • Art. 7º Inciso I alínea c – pré-escola + R$ 764 mi para o setor privado

impactaria em perda, por regiões:

  • NORTE – R$ 1,8 bilhão para as redes públicas
  • NORDESTE – R$ 4 bilhões para as redes públicas
  • SUDESTE – R$ 6,4 bilhões para as redes públicas
  • SUL – 2,5 bilhões para as redes públicas
  • CENTRO-OESTE – 1,3 bilhão para as redes públicas

impactaria em perda, por redes:

  • Redes estaduais e DF – R$ 7,7 bilhões (-6,8%)
  • Capitais – R$ 1,5 bilhão
  • Municípios de 20 mil até 500 mil habitantes – R$ 5,2 bilhões

Veja a nota técnica completa: Educação pública poderá perder R$ 15,9 bilhões caso Senado Federal não salve o Fundeb

Acompanhe a votação:

Sessão deliberativa semipresencial – Regulamentação do Fundeb – 15/12/2020

Edital Igualdade de Gênero na Educação Básica: data do resultado adiada

Devido ao alto número de propostas recebidas, a divulgação do resultado foi adiada para fevereiro de 2021. A data será confirmada em breve!

Em colagem, é possível ver mulher negra observando atentamente um celular.

Mesmo em um contexto desafiador, docentes, ativistas, pesquisadoras/es mostraram que é possível continuar sonhando e buscando uma educação menos desigual. Ao longo do mês de novembro, o Edital Igualdade de Gênero na Educação Básica recebeu mais de 250 inscrições e agora, irá selecionar propostas de planos de aula/planos de atividade por campo de experiência, projetos interdisciplinares e sequências didáticas comprometidas com o combate a desigualdade de gênero nas escolas. Serão valorizadas propostas que articulem gênero, raça e diversidade sexual em uma perspectiva interseccional.

Diante do grande número de propostas a serem analisadas, o lançamento do resultado do Edital foi adiado para fevereiro de 2021. A data exata da divulgação de classificação será publicada, em breve, no site Gênero e Educação.

Premiação

As propostas aprovadas vão compor um banco de aulas online que ficará disponível para todas as escolas do Brasil. Além disso, constarão em um e-book, que poderá ser baixado gratuitamente no site do projeto Gênero e Educação. As dez mais criativas e engajadoras receberão uma declaração de reconhecimento público em cerimônia virtual com representante do Fundo Malala, um leitor digital e uma bolsa de estudos para um curso à escolha no Centro de Formação da Ação Educativa.

Para mais informações: generoeeducacao@acaoeducativa.org.br

Mulheres de diferentes tradições religiosas e culturas manifestam apoio à igualdade de gênero nas escolas

Iniciativa integra ação que pede que o STF recoloque em pauta julgamento das últimas cinco ações que tratam de leis inspiradas no Movimento Escola sem Partido, reafirmando decisões da Corte contrárias à censura nas escolas.

Em colagem, é possível ver monumento A Justiça ao centro e fundo de papel pardo.

Enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF) nesta quarta-feira (02) e lançado publicamente nesta quinta (03), um vídeo com a participação de mulheres de diferentes tradições religiosas e culturas manifesta apoio à Corte em suas decisões pela abordagem de gênero nas escolas e pela a inconstitucionalidade das leis inspiradas no movimento Escola Sem Partido. 

“Nós, mulheres de diferentes tradições religiosas e culturas, apoiamos o STF em suas decisões por uma escola de qualidade, que garanta o direito a todos ao conhecimento libertador: sem preconceito, sem intolerância e sem ódio”

– afirma a pastora luterana e secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), Romi Márcia Bencke, na abertura do vídeo.

“Defendemos a laicidade do Estado. Isso significa que o Estado deve respeitar todas as tradições religiosas e não deve se orientar por doutrinas, dogmas e verdades religiosas”

– completa Eliad Dias dos Santos, pastora da Igreja Metodista da Luz.

O vídeo foi enviado junto a uma carta, em que mais de trinta organizações e redes de sociedade civil com atuação de destaque na promoção dos direitos humanos solicitam que o Tribunal retome urgentemente o julgamento da ADI 5668 e das ADPFs  462, 522 e 578.

A ADI 5568 demanda que o Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014) seja interpretado conforme a Constituição Federal, reconhecendo o dever das escolas públicas e particulares de prevenir e coibir discriminações por gênero, identidade de gênero e orientação sexual, bem como de respeitar a identidade de crianças e adolescentes LGBT no ambiente escolar. Já as ADPFs 462, 552 e 578 tratam de legislações inspiradas no Escola Sem Partido nos municípios de Blumenau, Petrolina e Garanhuns e Santa Cruz de Monte Castelo, respectivamente.

O julgamento estava previsto para 11 de novembro e foi retirado de pauta pelo Presidente Ministro Luiz Fux, após críticas contra o STF por parte de grupos ultraconservadores disseminadas nas redes sociais no contexto da disputa eleitoral.

Abordar gênero na escola é um dever do Estado

Ao longo deste ano, uma série de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) invalidou legislações que proibiam a abordagem da temática de gênero e orientação sexual nas escolas. Até o momento, sete legislações municipais (ADPF 526 – Foz do Iguaçu, ADPF 467 – Ipatinga, ADPF 460 – Cascavel, ADPF 457 – Novo Gama, ADPF 461 – Paranaguá, ADPF 600 – Londrina, ADPF 465 – Palmas) e uma estadual (ADIs 5537, 5580, 6038 – Alagoas) foram analisadas.

Em todas as decisões, a Corte reafirmou princípios constitucionais como a liberdade de expressão e o combate às desigualdades e determinou que abordar gênero e sexualidade em escolas é um dever do Estado brasileiro como forma de proteger crianças, adolescentes, jovens e adultos da violência, como previsto no Estatuto da Criança e Adolescente (ECA/1990) e na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2016).

Essas decisões têm caráter vinculante, isto é, valem não apenas para os municípios em específico dos quais tratavam as ações, como também mostram o posicionamento da corte mais alta do país em relação a todas as leis similares inspiradas no movimento Escola Sem Partido.

Participam do vídeo as instituições religiosas:

Aliança de Batistas do Brasil
Bancada Evangélica Popular
Campanha Tire os Fundamentalismos do Caminho
Coletivo de Mulheres das Organizações Religiosas do Distrito Federal
Coletivo Vozes Maria
Coordenadoria Ecumênica de Serviço
Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil
EIG – Evangélica pela Igualdade de Gênero
Fórum Ecumênico ACT Brasil
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil
Koinonia Presença Ecumênica e Serviço
Ordem Iniciática do Cruzeiro Divino no Distrito Federal
OSC Diaconia Act Alliance
Movimento Social de Mulheres Evangélicas do Brasil
Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde

Além delas, o vídeo tem apoio de:

Ação Educativa
Artigo 19
Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (ABRAFH)
Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT)
Associação Mães pela Diversidade
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED)
Associação Nacional de Política e Administração de Educação
Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED)
Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB)
Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA)
Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI (ANAJUDH)
Campanha Nacional pelo Direito à Educação
Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA Ceará)
Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES)
Cidade Escola Aprendiz
Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM Brasil)
Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA)
Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (CEPIA)
Conectas Direitos Humanos, Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE)
Confederação Nacional dos Trabalhadores dos Estabelecimentos em Educação (CONTEE)
Conselho Nacional de Igrejas Cristãs
Frente Nacional Escola Sem Mordaça
Geledés – Instituto da Mulher Negra
Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS)
Instituto Alana, Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM)
Movimento Educação Democrática
Open Society Justice Initiative
Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil
Projeto Liberdade
Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde (RENAFRO)
Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições do Ensino Superior (ANDES-SN)
THEMIS – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero
União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME)
Associação TAMO JUNTAS – Assessoria Jurídica Gratuita para Mulheres Vítimas de Violência

Regulamentação do Fundeb: Relatório de Projeto é apresentado na Câmara

Deputado Felipe Rigoni apresentou relatório baseado no PL 4372, de Professora Dorinha. Entenda o que diz o texto e o que está sendo debatido desde a promulgação do novo Fundeb.

Em colagem, é possível ver criança desenhando um sol

Na terça-feira, 16/11, o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES) apresentou o relatório do projeto de regulamentação do novo Fundeb aos líderes da Câmara dos Deputados. O relatório refere-se ao projeto de Lei 4372/2020, da deputada Professora Dorinha (DEM-TO) e traz alterações em relação ao original. De acordo com Rigoni, o governo posiciona-se majoritariamente a favor do novo texto, com poucas ressalvas. Também segundo o relator, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), quer dar prioridade à matéria. Caso a regulamentação seja aprovada ainda este ano, as regras do novo Fundeb começam a valer em 2021. 

Entenda o que diz o texto do relator em alguns dos pontos cruciais e mais debatidos desde a promulgação do novo Fundeb:

Recursos públicos para escolas públicas 

O repasse de recursos do Fundeb para instituições sem fins lucrativos, como entidades filatrópicas ou religiosas, foi um dos pontos mais controversos e debatidos das últimas semanas. O governo de Jair Bolsonaro fez intensa pressão para que escolas religiosas sem fins lucrativos pudessem acessar recursos do Fundo em todos os níveis de ensino – atualmente o repasse é permitido apenas na educação infantil, especial e do campo, que têm problemas de acesso. A regra é mantida no PL 4372, mas era rejeitada no PL 4519, do Senador Randolfe Rodrigues, que propunha o fim gradual deste repasse, priorizando o uso de recursos públicos em escolas públicas. 

Já o relatório apresentado por Felipe Rigoni faz alterações no PL da deputada Professora Dorinha, embora não na medida que queria o governo. O texto apresentado no dia 16 permite o repasse para instituições privadas sem fins lucrativos também no ensino técnico e profissional, mas continua vetando no ensino fundamental e médio comum. Em coletiva de imprensa, Rigoni alegou um argumento redistributivo: a brecha beneficiaria municípios mais ricos, pois é onde estão a maioria das matrículas em escolas conveniadas de EF. “Mas isso foi conversado com o governo e até segunda ordem está tudo certo”, disse ele. O relator não entrou no debate da laicidade do ensino, limitando-se a dizer que “existem argumentos favoráveis e contrários por diferentes motivos”. 

Referenciais para distribuição e vinculação a resultados

O novo Fundeb prevê que a complementação da União salte de 10 para de 23%. Desta quantia, 2.5% deve estar  vinculada a indicadores de aprendizagem que garantam equidade, e é na regulação que se delimita o que se considera nesta avaliação. Neste sentido, havia uma disputa para que outros indicadores além dos resultados em avaliações externas de larga escala fossem considerados. O Sinaeb, previsto no texto constitucionalizado, amplia o conceito de qualidade na educação para além das avaliações externas de larga escala (como o Ideb), que tendem a marginalizar ainda mais algumas redes, como as indígenas e quilombolas. 

O texto de Felipe Rigoni menciona o caráter equitativo deste repasse de 2.5% (VAAR), mas o mantém vinculado apenas ao desempenho escolar. Segundo o relatório, a avaliação deve contemplar resultados anuais da aprendizagem em Língua Portuguesa e Matemática e, a partir deles, definir os níveis de aprendizagem para o cálculo da medida de equidade da aprendizagem. Nesse modelo, redes que partirem dos menores índices e evoluírem nos mesmos terão maior peso na distribuição. Assim, levam mais recursos as redes de ensino que conseguirem reduzir a desigualdade no aprendizado e melhorarem suas próprias notas. “Educação é aprendizado”, disse o deputado em coletiva de imprensa na tarde desta segunda-feira. 

CAQ 

O Custo Aluno-Qualidade (CAQ) não é mencionado no relatório de Felipe Rigoni – assim como não era no projeto da Deputada Professora Dorinha. De acordo com o relator, o CAQ constará apenas na regulamentação do Sistema Nacional de Educação (SNE). Essa é uma lei complementar necessária para operacionalizar todo o Fundeb, principalmente por conta do Custo Aluno-Qualidade (CAQ). Isso porque o SNE estabelece e implementa a coordenação entre diferentes níveis de governo. 

Fatores de ponderação 

Outra discussão importante é a dos fatores de ponderação, que determinam “pesos” no repasse para as diferentes etapas e modalidades. Seguindo o PL 4372, o texto de Felipe Rigoni indica que em 2021 eles permaneçam os mesmos do atual modelo, pois acredita que “ainda faltam estudos” que embasem mudanças nessas ponderações. Nos anos seguintes, após mais discussão, eles seriam alterados. O PL do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) alterava algumas etapas e modalidades, como educação infantil, indígena e quilombola, já em 2021, aumentando o repasse para elas. 
Constitucionalizado em agosto, dois projetos de lei de regulamentação do Fundeb tinham sido apresentados: um pela deputada Professora Dorinha (DEM-TO) e um pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) – entenda as diferenças entre eles neste link.

Reportagem: De Olho nos Planos

Edição: Marcelle Matias

Por uma ciência antirracista: bate-bola com Anna Benite

O trabalho da química Anna Benite para transformar a educação e a trajetória de alunos e alunas negros em Goiás.

Em colagem, é possível ver ao centro foto da cientista Anna Benite e, ao fundo, formas orgânicas que remetem a moléculas

“A Química me autoriza a falar de tudo porque como ciência da transformação da vida ela não foi feita por uma única sociedade branca”. Esse pensamento que tem ecoado nos espaços acadêmicos e nas escolas básicas goianas é de Anna M. Canavarro Benite. Química e Professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), Anna Benite tem transformado a realidade de estudantes e docentes, professores e professoras do ensino fundamental, médio e universitário, questionando a centralidade da produção de saberes brancos e ocidentais, e divulgando o conhecimento produzido pelos negros e negras no Brasil e no mundo. Fundadora do Coletivo Negro (a) CIATA do Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão (LPEQI) da UFG, coordenadora do projeto Investiga Menina e Militante do Grupo de Mulheres Negras Dandara no Cerrado, nossa entrevistada fala sobre sua trajetória, os desafios da profissão e sua luta antirracista.

[Gênero e Educação] Professora, conte um pouco sobre sua origem e sobre como a Química surgiu na sua vida.

Anna Benite – Somos de Taquara em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. É um lugar difícil, sem trabalho, tem que ir para Central do Brasil [centro do Rio de Janeiro] para trabalhar. A minha mãe, uma mulher negra com potencial transformador, transformava a penúria em que vivíamos todos os dias. Não estou falando só de miséria, mas de um lugar que não tem água de rua nem esgoto. Então eu tinha dois caminhos: a escola ou continuar vivendo do subemprego e no lugar de ausência. Eu não tive uma predileção pela Química, fiz o que era possível para uma pessoa negra. Fui parar em um curso de licenciatura noturno. Ali percebi que a Química me autoriza a falar de tudo porque como ciência da transformação da vida ela não foi feita por uma única sociedade branca. Todas as sociedades, das consideradas primitivas às lidas como modernas, se organizaram por processos de transformação da matéria. Na academia, entendi que aquela ciência não me contemplava. Por isso, decidi trabalhar com e por uma ciência que refletisse quem eu era de fato, ou seja, a mãe, professora, militante, mulher negra, sou todas essas pessoas. Mas foi um caminho sem muitos louros, pois ao mesmo tempo em que apareço na mídia não tenho grana de projeto há uns quatro anos, porque para o desgoverno do nosso país esses temas não são importantes.

[Gênero e Educação] Você é referência no campo da educação voltada para a “descolonização” do saber. O que significa este termo e por que essa corrente é importante?

Anna Benite – O termo descolonização, na verdade, não é bom, porque se a colonização tivesse acontecido de fato, eu não estaria falando com você. A gente não teria resgatado a nossa história, mas a gente está contando a nossa história, não só eu, mas as mulheres antes de mim e outras que virão. Esse termo não é bom porque os referenciais teóricos são os homens brancos, mas as pessoas reproduzem porque são treinadas na academia branca e continuam lendo as mesmas coisas.

Precisamos de uma ciência mais diversa, pois essa monocromática está falida. A universidade e a ciência se desconectaram da dimensão concreta da vida das pessoas, elas precisam se comunicar com quem somos, um país de maioria autodeclarada negra, de pretos e pardos.

Quando alguém diz para mim “ah, você nem parece cientista com esse turbante na cabeça”, isso não é só um comportamento tosco, perverso, isso é um projeto de poder que é estrutural, cruel e que produz tantas ausências que as pessoas têm dificuldade de se identificar, de saber que seus ancestrais produziram tecnologia

Para entrar nesse debate sobre “descolonização” e ocupar o meu lugar na ciência, precisei dominar as ferramentas desse sujeito do poder. É um artifício, falamos no consenso e depois o deslocamos, portanto, para mim, o termo correto é “deslocamento epistêmico”.

Anna Benite

[Gênero e Educação] Como promover esse “deslocamento epistêmico” na educação básica?

Anna Benite Quando você é um menino ou menina negra, você entra na escola experimentando confrontos culturais e simbologias que não te pertencem. Você é apresentado para este lugar a partir de um único referencial que é de um homem branco. Ninguém te apresenta um livro de uma mulher negra, uma descoberta de uma cientista negra.

Houve mudanças, mas insuficientes para nosso contingente de população negra. Somos o segundo maior país em população negra no mundo, atrás só da Nigéria, na África. Chega a ser dolorido falar disso. Eu tenho uma filha de 10 anos que liga a TV todos os dias e diz: “mãe, olha como a Maju tá linda hoje”. Isso é um exemplo fácil para entendermos o que acontece na escola.

Perdemos essas crianças porque não damos a elas uma chance de descobrirem que têm um passado de glória

Anna Benite

Contamos histórias a partir de um lugar que não é nosso. A gente não diz “olha, tem um outro caminho, tem uma pessoa que fez uma coisa bacana e que se parece com você”. Tem um monte de gente fazendo coisa legal e é gente preta. Precisamos conhecer essas pessoas porque elas existem, sempre existiram.

[Gênero e Educação] Qual sua avaliação sobre a revisão curricular para uma educação antirracista?

Anna BeniteNo Brasil, a população negra não pode fazer o que quer e o discurso da meritocracia de que basta você se esforçar é uma mentira. A necessária revisão curricular não vai acontecer por um instrumento efetivo somente, pois isso demora. Por isso trabalhamos com formação de professores e todos os alunos ligados ao grupo que eu coordeno trabalham com o conceito de “deslocamento epistêmico” em atividades com crianças desde a tenra idade até a pós-graduação. Quanto mais cedo começamos, mais cedo plantamos para termos cientistas negros e negras no futuro.

Eu e minha corrente de pesquisadores não esperamos leis. A gente vai na escola, com currículo engessado mesmo, com 45 minutos de tempo de aula etc. e deslocamos o conhecimento. Ao invés de contar a história pela matemática, a gente dá aula a partir dos adinkras. Gente, Aristóteles ficou nos elementos terra, fogo, ar e água durante 2 mil anos, mas os africanos falavam disso antes, basta estudar os processos de mumificação e escarificação. A gente mostra que há outras ciências e indicamos onde elas estão.

[Gênero e Educação] Qual são os objetivos do Coletivo Negro (a) CIATA que você fundou?

Anna Benite – É um grupo de estudos que reúne estudantes negros e negras para discutir coisas da natureza que não estão no conhecimento da Química, pois a Química estuda moléculas e a gente queria estudar gente. Questionamos nosso papel como cientistas porque a ciência autorizou o racismo e a escravidão, dizendo que negros podiam ser explorados porque não teriam alma, não seriam humanos. Nos questionamos: “Somos químicos, tudo isso foi legitimado na história a partir de processo químico, o que fazemos para mudar isso?”. Então fomos estudar sociologia, psicologia, filosofia para saber quem éramos nessa história e hoje somos um grupo de cientistas pela luta antirracista. Fomos atrás de referências fora do mundo ocidental, pesquisamos quem fazia e faz química na África, por exemplo, buscamos outras fontes para contar para todo mundo que essa gente existe.

[Gênero e Educação] Como funciona o projeto Investiga Menina?

Anna Benite – Eu era uma mulher negra, integrante de um grupo de negras, mas não estávamos contando para os estudantes negros o que fazíamos, então não existíamos. Por isso fomos para a escola nas periferias. Trabalhamos desde o 9º ano do fundamental até o fim do ensino médio. Fazemos o acompanhamento pedagógico, ensinamos química, física, biologia, matemática no horário regular, porque aluno pobre e negro não vai voltar à tarde na escola. Ele vai tomar conta dos irmãos, trabalhar, não dá para fazer fora do horário, tem que ser no horário de aula, com a participação dos professores. Ensinamos a ciência a partir do um olhar do povo da diáspora. Uma vez por mês levamos cientistas negras na escola.

Inicialmente, as estudantes queriam saber quem eram aquelas cientistas, as origens delas, as dificuldades que enfrentaram. Com o tempo, entenderam que aquelas mulheres tinham uma história próxima de superação e ausência. Assim, o foco do nosso desafio mudou e passamos a explicar o que aquelas cientistas faziam, atribuindo significado daquela ciência na vida dos e das estudantes.

Escolas do campo, indígenas e quilombolas enfrentam desafios pela falta de políticas públicas

Iniciativa De Olho Nos Planos ouviu comunidades escolares em todas as regiões do país e atesta que falta água, saneamento e internet em muitas escolas.

Em colagem, é possível ver menina lendo apostila escolar

A falta de pessoal faz com que seja comum que os professores das escolas quilombolas em Salvaterra (PA), sejam os responsáveis pela merenda e outras tarefas de manutenção. Do outro lado do país, em Cascavel (PR), os moradores do assentamento Valmir Mota de Oliveira não puderam esperar o Estado e eles mesmos construíram sua escola. 

Uma parede de gesso separava duas salas de aula de um Colégio Estadual Indígena em Rodelas (BA). A divisória, improvisada para comportar as turmas da escola, não era suficiente para impedir o isolamento acústico, e os docentes precisavam negociar com antecedência as atividades envolvendo audiovisual ou mesmo debates. A 77km de distância, no município de Glória (BA), os alunos de outro Colégio Indígena não têm refeitório e comem sua merenda no chão, não raro cercados pelos animais que invadem o perímetro da escola. 

Em todo o Brasil, outras escolas do campo, indígenas e quilombolas enfrentam desafios parecidos, consequência do abandono histórico destas modalidades por parte de governos e pela ausência de políticas públicas. Estes desafios tornam-se especialmente relevantes no contexto da pandemia de Covid-19 e do novo Fundeb, que garantiu mais recursos para a educação pública. No processo de regulamentação do novo fundo, que precisa ser iniciado com urgência em 2020 para valer já em 2021, ainda serão definidas importantes diretrizes de financiamento para estas três modalidades. Por isso, a iniciativa De Olho Nos Planos ouviu as comunidades escolares. 

No mês de outubro de 2020, foram realizadas 12 entrevistas telefônicas com diferentes atores da educação escolar quilombola, indígena e da educação do campo para entender melhor sobre suas atuais condições de ensino e aprendizagem, mapeando seus desafios para assegurar uma Educação de qualidade. Foram ouvidas professoras, diretoras e diretores, alunas e alunos, ativistas, familiares e um gestor. As entrevistas mostraram que, em maior ou menor grau, as escolas ainda não contam com insumos mínimos como bibliotecas, laboratórios ou mesmo acesso a água e saneamento básico. O que já têm é, em grande medida, fruto de anos de mobilização e iniciativas comunitárias que tentam suprir a demora do Estado em garantir o direito à educação destas populações.

A seguir, alguns dos problemas mais comuns identificados:

Água, saneamento básico e energia elétrica

Em grande parte das escolas mapeadas, as escolas aproveitavam soluções pensadas pela própria comunidade, como fossas sépticas e cisternas, não havendo um sistema específico para as unidades de ensino. Para se ter uma dimensão do problema, há 3.574 escolas rurais sem acesso a água no país – quase um terço delas (964) no estado do Maranhão. E 4.166 sem acesso a energia elétrica. Em outras 2.919, as aulas não acontecem em um prédio escolar. Os dados são de um levantamento de 2019 produzido por diferentes entidades de Educação no Campo. 

Em entrevistas, foram frequentes os relatos de banheiros interditados. Em escolas mais afastadas, como anexos de escolas indígenas e quilombolas, sequer há banheiro e muitas vezes o acesso à água depende de carros-pipa. Quando este não chega, as aulas precisam ser interrompidas. Se o cenário já era grave antes da pandemia, agora é imperativo proporcionar condições sanitárias adequadas para que a volta das aulas presenciais não ponha a comunidade escolar em risco. 

A gente sonha muita coisa…eu gostaria de um banheiro separado para professores e crianças. Nesse exato momento a descarga está quebrada, então tem que pegar água em um balde para poder jogar na privada. São coisas básicas, mínimas, mas que fariam muita diferença para a gente hoje.

(Diretora de escola indígena – Glória-BA)

A escola tem um laboratório de informática, mas na prática não tem, porque a energia elétrica não comporta ligar todas as máquinas ao mesmo tempo.

(Professora de escola quilombola, Salgueiro-PE) 

A reforma da escola incluiu novos banheiros, mas houve um problema com o encanamento e ele teve que ser interditado, agora só há um banheiro masculino e um feminino. Se usarmos esse banheiro, o esgoto fica onde a gente vai passar. É muito nojento. Basicamente o banheiro abriu e já teve que fechar, mas estão buscando solucionar. A água vem de um poço artesiano bem antigo, mas é muito ruim. Um aluno numa feira de ciências analisou e viu que o pH estava inadequado. A reforma teoricamente também pensou em acessibilidade, então o banheiro foi feito pra ser acessível: mais espaçado, tem corrimão, cabine exclusiva e tudo mais. Mas para entrar, é com degrau. Não adianta dentro ser acessível e o acesso não.

(Aluno de escola do campo, 3° ano EM, Espera Feliz-MG). 

Nosso maior problema é a fiação, temos medo de pegar fogo a qualquer momento e estarmos dentro da escola. É muito velha, eu acho que nunca teve manutenção. Fica ainda pior quando chove. E na aldeia sempre falta energia, então às vezes não tem como ter aula de noite. (…) O banheiro adaptado não sei se quebrou, mas desde que eu me lembre ele sempre foi uma dispensa (…) banheiro masculino (…) quebrou e ficou só o feminino, que fica interditado

(Aluna de escola indígena, 2° ano EM, Rodelas-BA) . 

Um dos anexos funciona com energia solar, o que é bastante incomum. Mas reivindicamos uma placa mais potente que consiga sustentar uma geladeira, porque atualmente não conseguimos mandar todos os produtos da merenda para o anexo porque eles estragam. Verdura e carnes estragam, não tem como conservar. A falta de água também nos impediu de dar continuidade ao projeto da horta. Isso dificulta o trabalho  junto aos alunos de trazer uma vivência maior com a terra para o dia a dia da escola.

(Diretora de escola indígena – Glória-BA)

Merenda e transporte escolar

Na maior parte das escolas, o transporte – em geral, terceirizado – não consegue atender os alunos ao longo de todo o ano letivo. Seja porque apresenta problemas de manutenção ou, principalmente, pelas más condições das estradas, que alagam ou são de difícil acesso. É frequente que, em épocas de chuva, os alunos não consigam chegar à unidade de ensino. Quanto às merendas, a maior parte das escolas consegue ter acesso a ingredientes frescos e condizentes com suas culturas, exceto quando há problemas com os equipamentos de armazenamento. No entanto, reclamam de pouca verba disponível para a merenda, o que faz com que ela se atenha a ingredientes básicos e pouco variados e se limite a apenas uma refeição, mesmo quando os alunos fazem longos trajetos. 

A verba da merenda é de apenas 64 centavos por dia por aluno, é muito pouco. Então a gente acaba comprando o grosso: feijão, arroz, macarrão, frango. Não dá pra comprar outro tipo de carne. Também relacionado a isso, algo que eu sinto muita falta é um refeitório pras crianças, porque a gente só tem uma cozinha. Eles pegam a merenda e vão sentar no chão ou vão para as salas de aula comer. As vezes tem cachorros que entram na escola e se misturam, o que sabemos que não é higiênico. Gostaria de um refeitório com mesas e cadeiras para que as crianças pudessem sentar e fazer suas refeições todo dia, direitinho.

(Diretora de escola indígena – Glória-BA)

A merenda que chega dá para no máximo 15 dias, o que os gestores fazem para isso durar o mês é revezar: em um dia tem merenda, no outro não tem. E a maioria das escolas não dispõe de lugar para armazenar alimentos frescos, então muitas vezes não vem. Só alimento com conservante. O transporte escolar é precário, os ônibus geralmente estão superlotados, com alunos viajando em pé e é frequente quebrar no meio do caminho, porque são velhos. O que vinha para o quilombo não tinha nem farol. Se quebra, os alunos da tarde só conseguem chegar em casa 9 ou 10 da noite. Além disso, durante o inverno as vias ficam intransitáveis, no ano passado o transporte ficou 2 meses sem conseguir passar por alguns trechos. Estamos denunciando essa situação junto ao poder público. 

(Técnica em educação e liderança quilombola, Salvaterra-PA)

O transporte escolar é de péssima qualidade, a merenda deveria ter mais recursos. Muitos alunos vêm de longe e não podem tomar um café da manhã antes da aula, seria bom se pudéssemos contar com um desjejum.

(Coordenadora pedagógica de escola quilombola, Nossa Senhora do Livramento-MT).

O transporte não é exclusivo para alunos, então todo dia convivemos com passageiros comuns para ir para a escola. A gente já se deparou com diversas cenas, já me ofereceram droga na volta da escola, já vimos brigas, pessoas bêbadas.. E em zona rural às vezes o transporte não tem como passar. Em época de chuva tem estudante que fica sem ir na escola. 

(Aluno de escola do campo, 3° ano EM, Espera Feliz-MG). 

Salas multisseriadas, ausência de bibliotecas, laboratórios e internet

Nenhuma das escolas tinha laboratório de ciências ativo e apenas uma tinha quadra poliesportiva coberta. Exceção também é a escola que possui laboratório de informática à disposição de seus alunos. Em geral, os espaços de lazer misturam-se aos da comunidade em que a escola está inserida, inclusive porque muitas escolas são abertas. 

Salas multisseriadas já foram uma realidade em praticamente todas as escolas, e em muitas continua sendo, especialmente em unidades anexas e em etapas iniciais do ensino fundamental. A justificativa é o baixo número de matrículas por turma, uma característica compartilhada pela educação rural, indígena e quilombola.

As bibliotecas também deixam a desejar: nem todas as escolas conseguem garantir um espaço como este, com livros além dos que são trabalhados em sala de aula. Há uma queixa frequente dos materiais didáticos e livros disponíveis não conversarem com as realidades dos estudantes e das comunidades. 

Minha escola passou por muitas reformas, a maioria de iniciativa da comunidade escolar mesmo ou algumas parcerias. As salas até que se encontram em boas condições, mas sinto falta de tecnologia dentro da sala: TV, projetor.  A reclamação dos professores é falta de acesso a internet dentro das salas, porque agora tudo depende de internet, inclusive a anotação de presença. Muitas vezes a chamada é na sala dos professores, depois da aula, pois lá pega internet.

(Aluno de escola do campo, 3° ano EM, Espera Feliz-MG)

Nos anos iniciais do ensino fundamental temos multissérie, por conta do número de alunos. E vimos que tem defasagem quando chega no sexto ano. Até 4 anos atrás não era multissérie, e aí vimos a diferença. O professor dos anos iniciais é a base. 

Diretora de escola do campo, Santa Maria d’Oeste-PR

Nós conseguimos manter um número reduzido de estudantes por turma porque a nossa estrutura não comporta mais: as salas não dão condições de aglomeração, no frio faz muito frio e no verão faz muito calor. No fim do ano, quando solicitamos as turmas ao Estado, é sempre uma briga. Precisamos justificar o baixo número de matrículas por turma. Em geral, quando eles veem as fotos da escola, acabam aceitando. E é melhor para o trabalho dos professores.

(Diretor de escola do campo, Cascavel-PR).

Cheguei a ter aulas de informática, mas tiraram os computadores, não sei ao certo o porquê. No Ensino Fundamental tem aula de educação digital até hoje, mas como nem todo mundo tem notebook para levar, a aula é mais por folha [de papel]. Dão arquivo impresso ou o professor leva notebook e usa datashow ou apostila. No meu caso particular, eu gosto muito de conhecer as coisas, de pesquisar e aprender coisas novas, então não ter mais esses computadores faz muita falta.  E os professores já falaram que sentem falta de laboratório de ciências, queriam ter acesso e mostrar pra gente. Mostrar, por exemplo, uma água não potável no microscópio. E na aula de inglês não usamos muito o livro, seria melhor se tivéssemos livro. O único que eu usei era bem desatualizado. 

(Aluna de escola indígena, 2° ano EM, Rodelas-BA)

(…) Nenhuma escola do município tem internet banda larga. Quando tem, professor ou gestor está pagando do próprio salário para conseguir trabalhar. Ofertada pelo poder público, não tem. 

(Técnica em educação  e liderança quilombola, Salvaterra-PA)

O material enviado pela Seduc não é específico para a comunidade, nós começamos a produzir nossos próprios materiais por causa disso, mas precisamos de mais recursos para aumentar a quantidade e qualidade.

(Coordenadora pedagógica de escola quilombola, Nossa Senhora do Livramento-MT).

Os livros que chegam para a gente trazem mais a realidade do Sudeste, Sul e Norte do país. Nada voltado pro nosso Nordeste, conseguimos acompanhar muito pouco. Por isso, nos últimos 5 anos temos nos amparado no projeto Saberes Indígenas na Escola. Fazemos atividades continuadas, trabalhamos leitura e escrita, produção de material didático, etc. Assim, conseguimos desenvolver um material didático nosso. Mas nós não formamos os alunos apenas para a comunidade e sim para o mundo, então não podemos deixar de trabalhar outros conteúdos – mas sentimos muita falta de um livro mais adequado, que fale bem das populações indígenas, do nordeste, que valorize mais nossa cultura, tradição e história. Na EJA, por exemplo, não há nada específico para eles. Na Educação Infantil, os professores têm que sempre buscar na internet.

(Diretora de escola indígena, Glória-BA).

(DES)valorização das professoras e profissionais da educação

A maioria das professoras e dos professores de escolas do campo, quilombolas e indígenas trabalha sob um contrato precarizado e com pouca ou nenhuma estabilidade. Na Educação no Campo, entidades da área apontaram 138.416 professores temporários no país em 2019.

Em todas as modalidades abordadas pelo mapeamento, foram comuns relatos de atrasos em pagamentos e de prejuízo ao ensino por conta da precarização dos contratos, já que sua curta duração implica em alta rotatividade de professores, impedindo projetos e formações a longo prazo. Ainda, houve relatos de atrasos no início do ano letivo pela demora na regularização dos contratos. Os concursos são raros, não havendo perspectiva de mudança deste cenário. 

O fato da maioria dos professores serem contratados – e não concursados – faz com que muitos aceitem condições indignas de trabalho. Eles se submetem porque precisam sobreviver, mas o contrato lhes tira direitos. Uma outra reclamação é a ausência de material didático para trabalhar questões do currículo elaborado e proposto.

(Técnica em educação  e liderança quilombola, Salvaterra-PA). 

Há anos não existe formação continuada específica oferecida pelo Estado na modalidade de Educação do Campo. Sempre que podemos e há disponibilidade de educadores participamos de formações oferecidas pelo Movimento [dos Sem Terra].

Diretora de escola do campo, Santa Maria d’Oeste-PR 

Na nossa escola eu gostaria de ter mais condições de trabalhar nossa proposta pedagógica. O governo estadual engessou demais a autonomia da escola, as propostas são padronizadas no estado inteiro como se todas as regiões fossem iguais. Sinto dificuldade na formação e na autonomia para liberdade pedagógica. Nossas escolas não aceitam ser um forno de cidadãos dóceis, são espaços de formação coletiva e para a  liberdade e autonomia.

(Diretor de escola do campo, Lapa-PR). 

Mobilização comunitária

O Estado não tem garantido insumos básicos para a efetivação do direito à educação nas escolas participantes do mapeamento. Pelo contrário, comunidades quilombolas, aldeias indígenas e assentamentos são protagonistas nas mudanças e melhorias de suas escolas. São professoras e profissionais que usam o fim de semana para reparar a rede elétrica, comunidade que desenvolve tecnologia de tratamento de água ou que, literalmente, levanta a escola do zero. O trabalho coletivo é acompanhado de diálogo com o poder público e com constantes reivindicações, mas as questões mais emergenciais tendem a ser resolvidas internamente. 

Todo ano a gente faz o arraiá da escola, com as barraquinhas de comida. Fizemos rifa e usamos o dinheiro da venda para comprar ar condicionado para as salas, porque não tinha em todas.

(Aluna de escola indígena, 2° ano EM, Rodelas-BA) 

Com muita luta, a comunidade conseguiu fazer com que a seleção para professoras e professores fosse específica para a comunidade. Quer dizer, apenas docentes daqui podem dar aula em nossas escolas. Assim, geramos mais renda e emprego para a comunidade e motivamos a juventude a continuar estudando, porque eles sabem que vai haver uma forma de trabalhar por aqui. Na escola, armamos os estudantes com nossas histórias, tradições e ancestralidade. Quem melhor para fazer isso do que o próprio povo? 

(Professora de escola quilombola, Salgueiro-PE)

Nossa estrutura é precária, mas antes era ainda pior, não tinha sequer energia. Vem melhorando com recursos que vêm do Estado: as salas são de madeira com piso bruto, tem energia elétrica, mas ainda não tem forração. As portas e janelas são de madeira e construídas pela comunidade, temos laboratório de informática, embora os computadores não sejam novos. Para quem não tinha nada, foi uma evolução. Mas nada veio de reconhecimento do governo e sim de muita luta e enfrentamento. É uma luta diária, mas não dá pra desistir, porque se não tivéssemos lutado não teríamos conquistado o que temos hoje. Para o governo talvez fosse mais fácil botar todos os estudantes dentro de um ônibus e ir para a cidade, mas não é o que a comunidade quer e isso descaracteriza o estudante do campo. Nossa luta é pela manutenção da escola do e no campo.

(Diretor de escola do campo, Cascavel-PR).

Em Salvaterra há 12 escolas dentro dos territórios quilombolas, e conseguimos renomear todas como escolas quilombolas. E desde 2012 lutamos para implementar  as diretrizes para educação escolar quilombola. Conseguimos inserir no Plano Municipal de Educação o currículo para educação escolar quilombola. É uma história de muita luta, diálogo, do movimento sempre se articulando fortemente.

Técnica em educação  e liderança quilombola, Salvaterra-PA

Reportagem: Nana Soares | Edição: Claudia Bandeira

Imagem: Marcello Casal Jr / Agência Brasil | Edição: Marcelle Matias

Igualdade de Gênero na Educação Básica: mais de 50 entidades lançam edital público

Edital Público Igualdade de Gênero na Educação Básica recebe propostas de planos de aula, projetos interdisciplinares e sequências didáticas até 29/11.

Ilustração de mulher negra com megafone, de onde saem ícones por igualdade de gênero.

Edital Público Igualdade de Gênero na Educação Básica recebe propostas de planos de aula/planos de atividade por campo de experiência, projetos interdisciplinares e sequências didáticas até 29/11. As dez mais criativas e engajadoras serão reconhecidas publicamente em cerimônia com o Fundo Malala.

Até o dia 29 de novembro estarão abertas as inscrições para o Edital Público Igualdade de Gênero na Educação Básica: prevenindo violências, enfrentando desigualdades e promovendo direitos. Escolas, universidades, organizações da sociedade civil, coletivos juvenis, movimentos sociais e profissionais de educação estão convidadas/os a apresentarem propostas de planos de aula, projetos interdisciplinares e sequências didáticas. Serão valorizadas propostas que articulem gênero, raça e diversidade sexual em uma perspectiva interseccional.

As propostas aprovadas serão reconhecidas publicamente em evento virtual e vão compor um banco de aulas público, disponível para todas as escolas do Brasil. As dez mais criativas e engajadoras receberão um leitor digital e uma bolsa de estudos para um curso à escolha no Centro de Formação Educação Popular, Cultura e Direitos Humanos da Ação Educativa.

ACESSE O EDITAL COMPLETO

Promovido por diversas instituições e redes comprometidas com a luta pelo direito humano à educação de qualidade, pela democracia e pelos direitos das crianças e dos adolescentes, das mulheres, da população negra e da população LGBTQI+, o Edital Público visa reconhecer as iniciativas e os acúmulos de educadoras, educadores e comunidades escolares; promover intercâmbios; inspirar novas experiências e reagir à imposição de censura e autocensura por parte de movimentos ultraconservadores que atuam em uma perspectiva anticiência e contra direitos conquistados pela sociedade brasileira nas últimas décadas.

Reafirmando os marcos legais que dão base à promoção da igualdade de gênero nas escolas, as decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) em julgamentos históricos, ocorridos ao longo de 2020, definiram como inconstitucional a atuação autoritária desses movimentos que defendem a proibição do debate de gênero nas instituições de ensino. Além disso, o STF determinou como dever do Estado brasileiro a abordagem de gênero na escola como forma de prevenir a violência e o abuso sexuais sofridos por crianças, adolescentes, mulheres e a população LGBTQI+ em geral. Por meio de suas decisões, o STF reafirmou os princípios constitucionais da liberdade de cátedra do professorado, da pluralidade pedagógica, da liberdade de ensinar e aprender e o direito de estudantes acessarem conteúdos escolares e conhecimentos científicos ainda que estes contrariem as crenças e doutrinas de suas famílias.

Para Denise Carreira, coordenadora institucional da Ação Educativa e ativista da Rede Internacional Gulmakai, fundada por Malala Yousafzai (Prêmio Nobel da Paz), a abordagem da igualdade de gênero nas escolas é fundamental para a construção de uma cultura democrática no Brasil.

“Não tratar de gênero gera e alimenta diversos problemas sociais: o abuso sexual de crianças e adolescentes, a violência contra mulheres, a violência contra a população LGBT, o genocídio da juventude negra, a discriminação sofrida por mulheres negras e tanta outras desigualdades. Precisamos promover a igualdade de gênero nas escolas como parte do direito à educação de qualidade, do direito ao acesso ao conhecimento científico e combater toda a desinformação, preconceito e pânico moral”, afirma.

Com o apoio do Fundo Malala, a promoção do Edital conta com as seguintes organizações, redes e núcleos de pesquisa: Ação Educativa; ABEH – Associação Brasileira de Ensino de História; ABGLT – Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos; ABIA- Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS; ABLBTI – Associação Brasileira de Mulheres Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Intersexo; AMNB – Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras; Anaí – Associação Nacional de Ação Indigenista; ANAJUDH-LGBTI – Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBT; ANDES – Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior; Anis – Instituto de Bioética; ANPED – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação; ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais; Artigo 19; Campanha Nacional pelo Direito à Educação; Cedeca CE – Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará; CFemea – Centro Feminista de Estudos e Assessoria; Cidade Escola Aprendiz; CLADEM Brasil – Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher; CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação; CONAQ – Coletivo Nacional de Educação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas; CONIC – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil; CONTEE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino; De Olho nos Planos; Defensoria Pública do Estado de São Paulo – Núcleo de Defesa e Promoção dos Direitos das Mulheres; DIVERSIAS – Grupo de Estudos em Diversidade, Educação e Controvérsias da PUC-Rio; ECOS – Comunicação e Sexualidade; EdGES – Gênero, Educação e Cultura Sexual da FEUSP-CNPq; FOPIR – Fórum Permanente de Igualdade Racial; GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero; GEERGE Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero da Faculdade de Educação UFRGS; Geledés – Instituto da Mulher Negra; GEPCEB – Grupo de Estudos e Pesquisa: Conservadorismo e Educação Brasileira da UFF; GPTEC- Grupo de Pesquisa em Tecnologia Educação e Cultura da IFRJ; IDDH – Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos; Instituto Patrícia Galvão – Midia e Direitos; Justiça Global; LAEDH – Laboratório de Educação em Direitos Humanos do Colégio Pedro II; MMM-SP – Marcha Mundial de Mulheres; Movimento Educação Democrática; Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte; NOSSAS – Rede de Ativismos; NOSSAS – Rede de Ativismos; Odara – Instituto da Mulher Negra; OLÉ – Observatório da Laicidade na Educação; PCESP- Professores contra o Escola sem Partido; Plataforma Dhesca; Portal Catarinas; REPU – Rede Escola Pública e Universidade; SBEnBio – Associação Brasileira de Ensino de Biologia; SPW – Observatório de Sexualidade e Política; Terra de Direitos; UNCME – União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação.

Escolas abertas ao debate sobre gênero e raça protegem mais as crianças

A vulnerabilidade das crianças e adolescentes a violências e violações de seus direitos está diretamente ligada à disponibilidade da escola em tratar de gênero e raça de forma transparente.

Em colagem, é possível ver duas meninas desenhando

As questões relacionadas ao gênero e à raça estão presentes em nossas vidas desde que nascemos, constituem o que somos, assim como nossas relações sociais. Conhecer esses conceitos é fundamental para a compreensão, a prevenção e o combate às desigualdades, violências e violações de gênero e de raça, cujas principais vítimas são as populações feminina, negra e LGBTIQA+. Infelizmente, o Brasil lidera os rankings internacionais de violências contra esses grupos e para reverter este quadro lamentável é preciso educação.

As tentativas de dificultar ou censurar uma educação sobre tais temáticas prejudicam o combate às desigualdades e violências de gênero e raça no país e, no contexto escolar, se configuram como uma violação dos direitos das crianças e adolescentes, como apontam especialistas em matéria recente do Gênero e Educação. Além disso, tais censuras seriam inúteis porque, cotidianamente, meninos e meninas pensam, falam e vivem experiências positivas ou negativas decorrentes destes universos. É o que afirmam as entrevistadas Bárbara Barboza e Mayara Pan.

Meninos e meninas têm necessidade de falar sobre gênero

Professora de Sociologia em uma escola pública de ensino médio na cidade de São Paulo, Mayara Pan conta que decidiu criar um projeto para debater gênero na instituição em que leciona quando, no contexto de uma aula, uma aluna revelou ter sofrido abuso sexual. Na ocasião, a jovem afirmou que contava com o apoio de sua família e vinha sendo acompanhada por profissionais de saúde, mas o impacto da revelação inesperada, fez a professora organizar – com a ajuda de outro professor – uma palestra sobre violência contra as mulheres com uma especialista em direito.

A palestra foi bem recebida pelos estudantes e desencadeou outras ações relacionadas com o apoio da gestão, como conta Mayara: “Os alunos e alunas estavam com tanta necessidade de falar sobre o tema que se abriram muito, conversaram sobre violência doméstica, sobre suas próprias vivências. Foi importante para termos uma dimensão do que isso significava para eles. Entendemos que a gente precisava pensar de fato as questões de gênero, e aí organizamos rodas de conversa sobre masculinidade com os meninos e sobre feminilidade com as meninas, de todos os anos do ensino médio”.

A professora relata que, inicialmente, ela e seus colegas tinham receio de que os meninos não participassem das atividades, mas foram surpreendidos positivamente e os encontros se mantiveram regulares e com boa adesão nos últimos dois anos, especialmente as rodas das meninas que, segundo Mayara, demonstravam maior interesse, conexão e conhecimento prévio sobre as temáticas: “muitas contam que aprenderam muitas coisas por meio do YouTube, das redes sociais, dos influenciadores digitais”

Apesar da interrupção das atividades com a pandemia, as meninas organizaram autonomamente encontros virtuais para continuar debatendo as questões de gênero. “Algumas meninas já têm clareza da distinção entre gênero, sexo, sexualidade, orientação sexual, questões que não são simples. Outras desconhecem ou não dominam esses conceitos. De qualquer forma, é evidente que elas são muito engajadas e o fato de terem organizado essas atividades sozinhas, com meninas de outras escolas que elas sequer conheciam, no meio da pandemia, é resultado do nosso trabalho”, afirma Mayara.

Cada experiência é única e impõe distintos desafios às escolas

A experiência relatada pela professora de Sociologia ratifica a importância do debate sobre gênero nas escolas que, neste caso, foi motivado por uma situação de violência grave vivida por uma aluna. Mas e se esta aluna tivesse dito para a professora que ninguém mais sabia do abuso? E se tivesse dito que não tinha nenhum suporte emocional, familiar ou de saúde física e mental? A professora deveria tomar as mesmas atitudes? Ou deveria agir de outra forma? Essas e outras dúvidas afligem qualquer educadora que se depara com situações semelhantes a essa, pois as questões e problemas relacionados ao gênero ou à raça são complexos e exigem conhecimento e experiência profissional.

Para a Educadora Popular e Cientista Política, Bárbara Barboza, os caminhos mais eficientes para lidar com situações semelhantes são: ouvir cuidadosamente esses meninos e meninas, para entender o foco do problema e sem expô-los; e, em seguida, deve-se acionar a rede de proteção, mas, para tanto, é preciso um trabalho prévio de planejamento, organização e criação de metodologias próprias a serem adotadas pelas escolas públicas. 

“É um processo, não tem receita pronta, mas temos alguns pontos de luz para fortalecer as ações das escolas, nas escolas ou com as escolas. Sabe-se que, quando o assunto é gênero e raça, quanto mais aberta a escola for menos vulnerável ela e os alunos ficam. Quando a escola está fechada as vulnerabilidades, violências e violações estão ali como em uma panela de pressão e acabam implodindo. Isso é um grande problema. A escola não tem como resolver isso sozinha, ela pode ser o lugar que, como dizem as pessoas, ‘recebeu o B.O.’, mas se ela fizer parte de uma rede de proteção, as coisas se encaminham”, afirma a Bárbara.

A Educadora reforça que a criação e o fomento de uma rede de proteção para crianças e adolescentes a partir da escola seria um trabalho preventivo que exige comprometimento individual e coletivo, que deve ser contínuo e atualizado constantemente nas oportunidades de planejamento interno e nos encontros com familiares. 

Bárbara Barboza afirma ainda que toda experiência escolar bem sucedida em uma rede de proteção pode servir de exemplo para outras instituições, mas nunca replicada integralmente, uma vez que cada território contém atores sociais e realidades distintas. Portanto, cada escola deve mapear seus territórios, identificar seus aliados, dentro e fora das instituições públicas, estabelecer formas de comunicação, diálogo, de documentação etc. Com o passar do tempo e as práticas, seus protocolos próprios para acolher as crianças e adolescentes vão se consolidando e se tornando mais seguros e assertivos. Tudo isso só funciona com uma gestão escolar democrática.

“Tudo é metodologia. Precisa mapear qual é o Conselho Tutelar mais aliado, por exemplo. Na ausência de um, procure aliados na Defensoria Pública. Não tem naquele território? Então vá para a ONG, e por aí vai. É preciso identificar qual política pública chega no território da escola e das famílias. As reuniões de planejamento, de conselho escolar ou com as famílias não precisam ser chatas e só informativas. Nelas você pode perguntar para a família: ‘qual é o serviço público que você acessa?’. A UBS? O CRAS? O ponto de cultura? Precisa ter escuta para identificar os personagens do território que vão ajudar a enfrentar as questões de gênero e raça dentro da escola. Nunca a escola sozinha”, defende Bárbara.

Uma escola que se abre para pensar, se envolver ou criar uma rede de proteção também precisa do apoio de instâncias governamentais como diretorias e secretarias de educação. A cidade de São Paulo é referência nesse quesito graças à criação, em 2014, do Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem (Naapa), uma iniciativa da Secretaria Municipal de Educação cujos objetivos são: articular e fortalecer redes de proteção locais; apoiar e acompanhar docentes e gestoras.

Outro ponto essencial neste processo seria uma formação continuada e o envolvimento dos professores, professoras, gestores e demais funcionários da escola nos conselhos ou espaços internos criados especificamente para a rede de proteção. “Se um menino tem uma relação afetiva e se identifica mais com a merendeira e conta para ela que foi abusado, e a escola for fechada e sem uma gestão democrática? O que vai acontecer? Provavelmente, o caso vai ficar personalizado, vai ficar um peso sobre a merendeira, e a chance desse menino ser violentado novamente é altíssima porque a escola falhou no acolhimento e no encaminhamento. Agora, se a escola for aberta, essa merendeira será considerada uma educadora também, fazendo parte dos espaços de diálogo, e não terá medo de compartilhar com a instituição o problema. Assim, essa denúncia será institucionalizada, no melhor dos sentidos, e levada para a rede de proteção da qual essa escola participa”, aponta Bárbara.

A negação do racismo ainda é um obstáculo

Além das questões de gênero, a rede de proteção deve, concomitantemente, mirar nas pautas e práticas antirracistas, dado que as violências cotidianas sofridas por meninas e meninos negros ainda são negligenciada em todos os espaços compartilhados na sociedade brasileira, inclusive nas escolas que, segundo a Educadora Popular Bárbara Barboza, “ainda não assumiram o racismo”.

De acordo com Bárbara, “as questões de gênero estão dadas e são assumidas pela sociedade, mesmo que alguns não queiram debatê-las na escola. Porém, o racismo ainda não foi aceito pela sociedade. A gente ainda está discutindo democracia racial. Veja, por exemplo, as desigualdades que existem nos cargos da escola. Os cargos mais precarizados são ocupados por pessoas negras e pobres, enquanto os diretores, gestores e professores são mais antigos, brancos e de classe média. Essa desigualdade social está atrelada ao racismo estrutural. Se a escola e a sociedade não assumem o racismo como enfrentá-lo?”.

Àqueles interessados em criar uma rede de proteção a partir de suas escolas, recomendamos a leitura do Guia a escola na rede de proteção dos direitos de crianças e adolescentes. Produzido pela Ação Educativa, em 2018, o guia traz referências sobre como realizar diagnósticos, mobilizar a comunidade escolar e criar procedimentos operacionais e de comunicação capazes de contribuir com o acolhimento de alunos e alunas, assim como para o encaminhamento a instituições competentes em casos de violência ou violações de direitos.