Como o ultraconservadorismo afeta a abordagem da história e cultura africana e afro-brasileira?
Mesmo 20 anos depois de sua promulgação, Lei 10.639/03 tem problemas de implementação, que se intensificaram pelo avanço de políticas ultraconservadoras como a militarização e racismo religioso
Quando a lei 10.639/03 entrou em vigor, logo no início de 2003, fruto de décadas de atuação dos movimentos negros, a abordagem da história e cultura africana e afro-brasileira tornou-se obrigatória no currículo escolar. Na época da promulgação, a expectativa era que a nova lei começasse a desmontar um currículo historicamente racista, guiado por um viés branco e eurocêntrico. Vinte anos depois, quando toda uma geração já poderia ter sido impactada pela lei, ela permanece tendo alcance e sucesso limitado. Entre outros motivos, pelo avanço do ultraconservadorismo no Brasil, cuja ideologia – traduzida em leis e políticas – vai na direção contrária do que prevê a 10.639/03.
A lei
A 10.639/03 foi promulgada no dia 9 de janeiro de 2003 e alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que regulamenta a organização e o funcionamento da educação no Brasil. A lei incluiu o artigo 26-A, que tornou obrigatório o ensino sobre história e cultura africana e afro-brasileira em todos os estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Para Ednéia Gonçalves, socióloga, educadora e coordenadora executiva da Ação Educativa, a mudança na LDB trazida pela lei 10.639/03 foi “sobretudo um movimento de afirmarmos, enquanto nação, a existência do racismo – e de reconhecer que ele é um problema do presente e não só do passado, e que portanto precisamos enfrentá-lo para que as desigualdades que dele decorrem não se perpetuem ainda mais”.
O objetivo geral da 10.639/03 é resgatar a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à história do Brasil. Não através da criação de uma disciplina específica, mas sim demandando que o conteúdo esteja presente em todas as disciplinas do currículo escolar. Cinco anos depois, em 2008, a lei 11.645 também incluiu no currículo escolar o ensino da história e cultura dos povos indígenas.
O caminho até a promulgação da Lei 10.639/03 foi longo, sendo precedida por vários outros marcos importantes. O vídeo abaixo, iniciativa do Projeto Seta – Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista, ilustra este processo em menos de 2 minutos:
20 anos de desafios
Mesmo vinte anos depois de sua promulgação, apenas 29% das secretarias municipais de ensino intencionalmente desenvolvem ações para aplicar a 10.639, segundo a pesquisa “Lei 10.639/03: a atuação das Secretarias Municipais no ensino de história e cultura africana e afro-brasileira”, realizada pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra e pelo Instituto Alana. O levantamento mostra ainda que as ações e iniciativas estão concentradas em datas comemorativas, e não de forma perene ao longo do ano letivo. Ou nem isso, já que 18% dos municípios declararam não realizar nenhum tipo de ação para assegurar a aplicação da lei.
“Isso é muito sério porque a 10.639 é LDB, então isso significa que há uma porcentagem muito pequena de municípios cumprindo a legislação educacional”
Ednéia Gonçalves
Os desafios para a implementação são muitos, e incluem a formação de educadoras e educadores, desconhecimento de como aplicar a lei, a [falta de] destinação orçamentária, de apoio de gestores ou de comprometimento político – desafios que são comuns a outras políticas públicas no Brasil. Mas além dos desafios padrão, há ainda desinteresse ou mesmo resistência na aplicação desta lei em específico já que ela evidencia as estruturas racistas e desiguais da sociedade e da formação escolar. Um dos dados mais interessantes da pesquisa realizada pelo Geledés e pelo Instituto Alana é que não apenas a implementação da lei é baixa, mas os temas mais difíceis ficam de fora. Enquanto a diversidade cultural foi o tema citado por 60% dos gestores como o mais importante de ser trabalhado nas escolas, temas relacionados a construções de privilégios históricos e letramento sobre questões raciais foram citados por somente 3%. “Ou seja, ainda se escolhe refletir a educação para relações étnico-raciais sem que se pretenda rever a construção e manutenção de privilégios”, conclui a pesquisa.
Em meio a tantos desafios de implementação, o cenário político do país mudou consideravelmente, e intensificaram-se processos como os ataques à laicidade, a militarização das escolas, e a censura, perseguição ou mesmo criminalização de debates sobre gênero, raça e sexualidade no ambiente escolar. Todos estes são avanços ultraconservadores na Educação e impactam diretamente a lei 10.639/03.
O ultraconservadorismo e seus impactos na educação
Como o nome indica, conservadorismo [e ultraconservadorismo] são visões de mundo que pretendem manter certas estruturas [ou retroceder a estruturas passadas. Na educação brasileira, o projeto ultraconservador reúne diversas agendas – como educação domiciliar, Escola sem Partido, criminalização de debates sobre gênero e sexualidade, militarização das escolas e combate à “ideologia de gênero”. Todas essas pautas ganharam força no Brasil na última década, ameaçando a laicidade da educação, a democratização e participação social, a construção de visões críticas e questionadoras e a liberdade de aprender e ensinar. Estes movimentos não são novos, e um marco importante da história recente foi a construção do Plano Nacional de Educação (PNE), em 2013, quando o termo “gênero” esteve sob ataque e acabou suprimido do texto final.
É verdade que as dificuldades de implementação da lei 10.639/03 vêm de antes das recentes políticas ultraconservadoras. Isto é, que não é apenas no ultraconservadorismo que há resistências ou desafios para fazer valer essa legislação. No entanto, se não é apenas no ultraconservadorismo que a lei tem dificuldade para avançar, impor obstáculos a ela é parte fundamental deste projeto, que também é um projeto racial. “[O ultraconservadorismo] vai contra a igualdade racial, contra tudo que foi bravamente conquistado nas últimas décadas”, define Flavia Rios, diretora do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Flavia explica que, enquanto as lutas dos movimentos negros partem do pressuposto que há desigualdades e racismo no Brasil e de que é preciso enfrentá-las para conquistar a igualdade efetiva, o discurso ultraconservador “acredita em um mito de democracia racial, defendendo a ideia de um povo único e homogêneo. Nega a escravidão, o preconceito racial, as desigualdades; deslegitima movimentos sociais e, por consequência, suas conquistas”. Ou seja, implementar a lei 10.639/03 é ir no sentido contrário do que prega esta ideologia.
“[O ultraconservadorismo] vai contra a igualdade racial, contra tudo que foi bravamente conquistado nos últimas décadas”
Flávia Rios
Ednéia Gonçalves, educadora e socióloga, destaca que, ao negar as opressões, o campo ultraconservador “nega a existência de uma narrativa da resistência” – e por isso a efetivação da lei 10.639/03 é tão fundamental. “Defendemos a necessidade de reparação, o que passa pelo reconhecimento dos nossos saberes, conhecimentos e de nossas narrativas contra as opressões. Esse movimento age contra o movimento de repensar a história do país”, diz.
É também esta a avaliação de Catarina de Almeida Santos, professora da Universidade de Brasília (UnB), que defende que a 10.639/03 em si é uma lei contra o conservadorismo – entendido como uma política de conservar uma cultura patriarcal, racista e classista.
“O desafio no Brasil, e isso não só em relação a esta lei, é fazer o marco legal se transformar em realidade, porque assim que ele é estabelecido os ultraconservadores desenvolvem ações e ocupam espaços para impedir os avanços necessários – seja em ações diretas de perseguição ou em ofensivas como as curriculares”
Catarina de Almeida Santos
Um exemplo de ofensiva curricular foram as intervenções nos livros didáticos que chegam aos cerca de 50 milhões de estudantes da rede básica brasileira. Em 2021, o edital do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) foi alterado, com supressão dos temas de gênero, raça e sexualidade e da nomeação das violências baseadas nessas características. Pelo edital, a violação de direitos humanos também deixou de ser um critério eliminatório. Foi só em maio de 2023 que essa decisão foi revertida por meio de uma ação da sociedade civil. Mas ainda há outros fenômenos em curso que dificultam o ensino da história africana e afro-brasileira nas escolas, como os ataques à laicidade e a crescente militarização da educação.
Ataques à laicidade e racismo religioso
A Constituição de 1988 determina que vivemos em um Estado laico – isto é, sem religião oficial e com a obrigação de acolher e proteger todas as crenças, inclusive a não religião. Mas este sempre foi um desafio. Por exemplo, apenas cinco anos depois da promulgação da lei 10.639/03, em 2008, o Brasil assinou um acordo com o Vaticano que previa, entre outros pontos, o ensino religioso confessional “católico e de outras religiões” em escolas públicas. A assinatura deste acordo, que foi muito combatida pela sociedade civil e por movimentos comprometidos com a educação pública e laica, foi apenas uma das iniciativas dos anos seguintes que atentaram contra a laicidade da educação.
No Brasil, o enfraquecimento da laicidade no ensino está diretamente relacionado à intolerância e discriminações contra as religiões de matrizes africanas, o que acarreta racismo religioso. E sendo a valorização da cultura africana e afro-brasileira (o que inclui a religião) um dos pontos da lei 10.639/03, aumenta a resistência em aplicá-la nas salas de aula. “Falar da África, um continente diverso, é também falar de religião – mas não só. E a lei obriga a considerar que existe uma cosmovisão que é parte desse continente”, resume Ednéia Gonçalves. “Mas a realidade é que nos deparamos com a negação da liberdade religiosa e da laicidade, e com a tentativa de imposição de só uma visão de mundo, que é cristã e que é preponderante no Brasil”, acrescenta a educadora e socióloga. A socióloga e professora da UFF Flavia Rios destaca a estratégia explícita do campo ultraconservador de penetrar no mundo educacional, enfatizando que, no Brasil, o discurso homogeneizador e ultranacionalista é focado apenas nas religiões cristãs, “o que afeta a [lei] 10.639 na medida que é uma legislação que versa sobre diversidade cultural, étnica e religiosa”.
Edneia Gonçalves também destaca o avanço destes projetos de poder nas escolas, identificadas como espaço privilegiado também pelo campo ultraconservador. “Eles viram no ambiente escolar a possibilidade de reafirmar uma hierarquia com relação ao sagrado, o que é extremamente violento, uma das piores e mais violentas manifestações do racismo”, diz.
Um caso recente ocorrido na cidade de São Paulo evidencia a escalada dessa violência: um estudante negro foi cercado e espancado por outros sete estudantes, que proferiram ofensas racistas e homofóbicas a ele. A provocação iniciou-se justamente após a mãe do estudante ser citada em sala de aula como referência na defesa dos direitos das religiões de matriz africana. Os ataques verbais ao aluno e sua mãe duraram alguns dias e culminaram em violência física.
Apesar de casos como esse, é possível trabalhar o assunto nas escolas. A pesquisa “Educação, Valores e Direitos”, realizada em 2022 pelo Centro de Estudos em Opinião Pública (Cesop/Unicamp) e coordenada pela Ação Educativa e pelo CENPEC, mostrou que, na verdade, a população brasileira apoia a discussão sobre gênero, raça e sexualidade na escola, bem como tem opiniões progressistas em relação à militarização das escolas e à educação religiosa. Não apenas a abordagem das questões raciais nas escolas tem grande apoio entre a população (mais de 90%), como a grande maioria defende que a escola deve ser um ambiente de tolerância religiosa, inclusive para adeptos de religiões de matriz africana (candomblé, umbanda etc.) e para aqueles que não professam religiões.
Militarização
A pesquisa também aponta que, para grande parte dos entrevistados, professores são mais confiáveis do que militares no ambiente escolar. Uma constatação importante em um Brasil com a educação cada vez mais militarizada – agenda que acelerou após a criação do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM), de 2019 e que segue em vigor.
Para Catarina de Almeida Santos, professora da UnB e referência na temática de militarização no Brasil, a relação é direta: militarização e implementação da lei 10.639/03 são incompatíveis. Isso porque todo o esforço por trás da lei 10.639/03 é fazer com que a escola seja de todos e todas, que todas as narrativas, histórias e saberes tenham voz, ao passo que as escolas militarizadas operam por uma lógica de padronização. “O sujeito da lei 10.639/03 não cabe nessa escola: o cabelo não cabe, a cor não cabe, a condição social não cabe, nada cabe”, resume Catarina, que defende que a padronização – de cabelos, aparência, de ideias – têm como efeito a negação dos sujeitos que ali estão.
Alguns exemplos dessa negação das identidades mostram mesmo que os alvos são os grupos já historicamente silenciados ou invisibilizados, como a população negra, as mulheres e pessoas LGBTQIA+. Em março de 2022, uma estudante baiana negra foi impedida de entrar em sua escola [militarizada] por conta do cabelo crespo, recebendo a ordem de alisá-lo. No mesmo mês, em Santa Catarina, alunas receberam advertência por levar uma bandeira LGBT para a escola. Ou seja, enquanto a lei 10.639/03 exige a valorização da contribuição e da cultura afro-brasileira e africana, as escolas militarizadas trabalham com um padrão baseado em ideais brancos e heteronormativos.
Fortalecer a resistência
A realidade mostra os muitos desafios para que o ensino da história africana e afro-brasileira se concretize em todas as escolas do país, ainda que mais de duas décadas após a aprovação da lei correspondente. Mas também não faltam exemplos de resistência e de pessoas trabalhando para que isso aconteça. Para Ednéia Gonçalves, socióloga e educadora, valorizar e fortalecer estes casos é o caminho para começar a mudar o cenário de baixa implementação da 10.639/03. “O estrago nos últimos anos só não foi maior porque dentro das escolas estudantes, professoras e professores e profissionais da gestão escolar resistiram. Isso também é parte do aprendizado da luta antirracista”, diz.
Na mesma linha, a professora da UnB Catarina de Almeida Santos enfatiza que “não há nenhuma outra forma de fazer com que [a lei] se concretize a não ser continuar lutando, debatendo com a comunidade, com a juventude, ocupar o debate nas ações cotidianas”. Leis como a 10.639/03 e a 11.645/08 fortalecidas e consolidadas na sociedade, talvez sejam algumas das melhores ferramentas para evitar que uma nova onda conservadora possa ganhar tanto espaço na educação e no país, ameaçando legislações duramente conquistadas ao longo de décadas.
Acesse e baixe gratuitamente o material “Indicadores da Qualidade na Educação – Relações Raciais na Escola” para auxiliar na avaliação da implementação da lei 10.639/03 em sua escola.