Projeto ultraconservador para a educação inclui a criminalização de debates sobre direitos humanos, gênero, raça, sexualidade e ataques à laicidade
Projeto de desmonte da Educação pública é uma aliança entre grupos que defendem o seu desfinanciamento pelo Estado e os que criminalizam profissionais da educação, comunidades escolares e contribuem com o aumento da violência.
A educação pública, gratuita e de qualidade está há anos sob ataque: a Emenda Constitucional 95, de 2016, inviabilizou o cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE) ao proibir o aumento dos gastos em áreas sociais. No governo Temer, também a participação da sociedade civil foi drasticamente reduzida a partir do desmonte das instâncias de monitoramento e de controle social da política educacional. Isso piorou com Bolsonaro, quando a Educação sofreu os maiores cortes orçamentários – apesar do novo Fundeb, que aumentou a participação da União no financiamento da Educação. Mas os ataques ao direito à educação de qualidade para todas e todos não se dão apenas através do desfinanciamento. Também há investidas contra a laicidade da educação, a democratização e participação social, contra a construção de visões críticas e questionadoras e contra a liberdade de aprender e ensinar. Estas agendas em geral são agrupadas sob o nome de “projeto ultraconservador”.
Este projeto reúne diversas agendas – como a educação domiciliar, Escola sem Partido, criminalização de debates sobre gênero e sexualidade, militarização das escolas, combate à “ideologia de gênero”, etc – e embora esteja alinhado e tenha se intensificado com a gestão Bolsonaro, não começou nela. Em 2013, quando se debatia a construção do PNE, o “gênero” já estava sob ataque e acabou suprimido do texto final.
Para Fernando Cássio, professor de políticas educacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC) e membro da Rede Escola Pública e Universidade (REPU), esse projeto é mais do que conservador: é reacionário, e tem como alvo as escolas porque é na Educação que muitos avanços foram construídos nos últimos anos. “É claro que é um projeto conservador, mas este é um campo amplo, composto também por entidades empresariais da educação que, por exemplo, se eximem de discussões de gênero e sexualidade. Já os reacionários visam reverter as conquistas sociais. Na educação tivemos avanços inegáveis, como no currículo e no reconhecimento de diversas diferenças, então a escola se torna um grande bastião de resistência a esse projeto”, diz. Cássio diferencia a “barbárie gerencial” da ultraconservadora ou reacionária. Enquanto a primeira disputa a escola a partir de fora, nos debates de políticas e gestões educacionais, a segunda disputa pequenas lutas do cotidiano, ou a escola “por dentro”: o currículo, o conteúdo passado pelos professores, a relação de confiança entre os atores escolares. “Em suma, visam transformar a escola em um ambiente hostil”, resume.
Para alcançar seus objetivos, os defensores deste projeto frequentemente se aliam com os chamados “ultraliberais” – isto é, que querem o enfraquecimento do Estado e do setor público. Um artigo recente de Cássio em parceria com Fernanda Moura e Salomão Ximenes ilustrou como essa aliança se deu nos debates de regulamentação do Fundeb, em 2020. O Fundeb, maior mecanismo de financiamento da Educação Pública brasileira, teoricamente não seria uma agenda de interesse dos ultraconservadores, mas todos os parlamentares que se opuseram ao novo Fundeb têm ligação com o movimento Escola Sem Partido. E, na tramitação da regulamentação, trabalharam arduamente pelo maior repasse de recursos a instituições privadas, ganhando a adesão de vários deputados e deputadas. Os autores destacam ainda que a atuação dos mais de 100 parlamentares que defenderam essa agenda privatista está muito mais voltada para pautas conservadoras, como de segurança pública e punitivismo, do que para pautas de Educação ou direitos humanos.
“Tais encontros mostram uma confluência de interesses entre o discurso antilaico e o privatista”, ressalta Cássio. Quem também reforça o conservadorismo em um aspecto amplo é Catarina de Almeida Santos, professora da Universidade de Brasília (UNB). “O objetivo é conservar as bases da sociedade brasileira: racismo, machismo, patriarcado, desigualdade social e econômica. No fundo é a mesma lógica escravocrata e colonizadora que o país sempre teve”, diz.
No governo Bolsonaro, avançam várias agendas ultraconservadoras – ou reacionárias -, como a educação domiciliar, a militarização das escolas e a criminalização dos debates de gênero e sexualidade. Para Benilda Brito, ativista da Rede Malala no Brasil e integrante da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras, o principal objetivo deste projeto é continuar delimitando quem são “os indesejáveis sociais. E tirá-los de todos os cenários, inclusive da escola pública”..
Escola Sem Partido
O Movimento Escola Sem Partido (MESP) foi fundado em 2004 e ganhou destaque nos debates públicos brasileiros na década passada. O movimento, através da acusação de “doutrinação ideológica”, criminaliza a docência e o ensino. Tentou se impor no legislativo, com a aprovação de dezenas de projetos de lei proibindo essa suposta doutrinação, mas os projetos foram derrotados após o Supremo Tribunal Federal (STF) decidir que é inconstitucional proibir ou criminalizar tais debates na escola. O pesquisador Luis Felipe Miguel, em artigo que reconta a história do MESP, destaca que o Escola Sem Partido tem como princípio a primazia da família sobre a escola e enxerga docentes como ameaça em potencial. Ele reforça que o movimento só ganhou corpo e relevância nacional quando passou a atacar a chamada “ideologia de gênero”, ou as discussões sobre gênero e sexualidade na escola que desnaturalizam desigualdades e opressões.
O MESP posicionou-se contra o novo Fundeb, argumentando que mais recursos para a educação básica seria “mais dinheiro para ser torrado em roda de conversa sobre ‘fascismo’ e identidade de gênero”. Na visão do movimento, “a escola sem partido só pode ser a escola sem financiamento”, como resumiram os pesquisadores Fernando Cássio e Fernanda Moura. Cássio, professor de políticas educacionais na UFABC, acredita que o MESP hoje é irrelevante enquanto movimento, o que não quer dizer que não afete o cotidiano escolar e nem que as forças ultraconservadoras não estão agindo na educação. “O movimento reacionário vai muito além do Escola Sem Partido, que teve suas teses invisibilizadas judicialmente e rompeu com Bolsonaro. Mas o projeto é mais antigo e é contra ele que lutamos”, defende o professor e ativista. “Além disso, o reacionarismo não depende muito de uma lei aprovada. A expectativa da aprovação ou o projeto de lei bastam para criar um ambiente escolar hostil e de ameaça”, reforça.
E a resistência a projetos como o MESP também é articulada e coletiva. Por exemplo, em 2022, mais de 80 entidades de educação e direitos humanos lançaram a segunda versão do Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas. O manual, que pode ser baixado gratuitamente no site do projeto, foi construído em resposta às intimidações, ameaças e notificações dirigidas a docentes e escolas e à escalada do autoritarismo no país. Apresenta estratégias de como responder a novos tipos de ameaças que têm sido promovidas por movimentos e grupos ultraconservadores contra comunidades escolares. Além disso, esmiuça as alterações recentes de normativas nacionais e internacionais de direitos humanos, além de novas possibilidades no campo das estratégias jurídicas, políticas e pedagógicas de enfrentamento ao acirramento do autoritarismo na educação.
Militarização das escolas
Autoritarismo, obediência e hierarquia são também marcas de uma outra agenda conservadora: a militarização das escolas, ou a transferência da gestão das escolas civis públicas para a Polícia Militar. Esse processo se intensificou no governo Bolsonaro após a criação, em 2019, do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim). Nesse modelo, o estado ou o município assinam termo de cooperação com o MEC e policiais militares ou das Forças Armadas podem atuar dentro das escolas, com função pedagógica, administrativa e disciplinar.
Não há números exatos das escolas militarizadas no país, já que esse processo não se dá de uma única maneira, mas elas já passam de 500 e seguem em crescimento vertiginoso. Por exemplo, o Paraná em 2020 anunciou a adesão de 216 escolas da rede estadualde uma só vez. Estados como Goiás, Amazonas e Bahia também vêm investindo na modalidade, tanto a nível estadual como municipal. Para a professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UNB) e coordenadora do Comitê-DF da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação, Catarina de Almeida Santos, insistir nesse projeto é, ainda que inconscientemente, criminalizar a comunidade escolar. “Em nosso imaginário, a polícia cuida de marginais. Levar a polícia para a escola é uma autodeclaração que são essas pessoas que estão na escola, porque é com quem a polícia teoricamente lida”, diz.
As escolas militarizadas prezam, como o nome indica, por uma lógica militar, ou o que Catarina chama de “pedagogia do quartel”. Ou seja, privilegia a hierarquia e relações verticais, a obediência pelo medo, a padronização de corpos e comportamentos. Valores que se opõem à uma visão de escolas e processos educativos plurais, participativos, com relações mais horizontais e orientadas à convivência com diferenças, ao pensamento crítico e à desnaturalização de desigualdades. “É uma contraofensiva para que a base da sociedade não mude”, diz Catarina em relação ao avanço desse processo no Brasil. “Como trabalhar machismo e racismo em uma escola militarizada? Tirar o acesso à formação que desnaturaliza essas opressões garante a manutenção dos privilégios”, acrescenta ela.
Um caso emblemático da padronização e da punição de tudo que é “diferente” aconteceu em Joinville-SC em março deste ano, quando alunos de uma escola cívico-militar foram advertidos por estarem com bandeiras LGBT dentro da escola (que foram confiscadas). É por isso que a professora da UNB considera que militarizar a escola é negar o direito à educação, uma vez que se nega o desenvolvimento pleno dos sujeitos, que não são preparados para viver em uma sociedade diversa. E as escolas militarizadas também são excludentes ao manter uma lógica de resultados que privilegia estudantes que já estão em melhores condições. Isto é, priorizam quem cumpre os requisitos e se adequa ao projeto. “Em geral, o perfil das escolas muda depois da militarização: embranquecem, atendem pessoas com mais condições financeiras, passam a ter congestionamento de carros”, descreve a pesquisadora.
Ainda assim, a militarização parece uma opção atraente para milhares de famílias no país ao evocar ideias como disciplina e combate à violência – ao menos, a um tipo delas. É, nas palavras de Catarina de Almeida Santos, uma lógica invertida, uma vez que o trabalho das forças de segurança pública é zelar pela segurança fora da escola. “É contraditório militarizar a escola com o discurso de garantir segurança colocando dentro dela exatamente quem não garante a segurança fora, especialmente para quem é pobre e negro. É porque a sociedade está insegura que a escola também está, e não o contrário. Chamar os responsáveis por essa falha para resolvê-la não resolve nada”.
Educação domiciliar ou homeschooling
Se a militarização busca controlar corpos e comportamentos dentro da escola, a educação domiciliar exerce esse controle retirando estudantes da instituição. Esta é uma das principais pautas do governo Bolsonaro na Educação, que vem trabalhando incessantemente para regulamentar essa modalidade, proibida no Brasil por decisão de 2018 do STF.
Em maio de 2022, foi aprovado na Câmara o projeto de lei que autoriza o homeschooling no país. Segundo este projeto, a ou o estudante deve estar matriculado em uma instituição de ensino e submeter-se a provas regulares. E ao menos um dos responsáveis deve ter ensino superior, o que demonstra que o projeto, além de conservador, atende a uma elite econômica. O projeto altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) para admitir o ensino domiciliar na educação básica. No entanto, não há apelo popular. Uma pesquisa do DataFolha, também de maio de 2022, atestou que a maioria da população brasileira – 8 em cada 10 entrevistados – apoia a educação na escola. Para virar lei, ainda precisa ser aprovado pelo Senado e de sanção presidencial.
A educação domiciliar retrocede em inúmeros direitos, em diversas áreas. Não à toa, é uma pauta tão importante para o projeto ultraconservador. “É uma estratégia que retrocede muitas políticas sociais que já tinham avançado e que pensava-se estarem consolidadas”, resume Benilda Brito, ativista da Rede Malala no Brasil e integrante da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras. Assim como a militarização, compromete o direito de crianças e adolescentes à convivência social e ao acesso a conhecimentos científicos e diferentes visões de mundo. Mas também oculta violências doméstica e sexual, frequentemente denunciadas através da escola; aumenta a insegurança alimentar; rompe com a política de educação especial na perspectiva da educação inclusiva; aprofunda desigualdades educacionais; estimula a evasão escolar; e enfraquece os investimentos em educação e nas escolas públicas.“É um retrocesso do que está expresso na Constituição sobre o direito à educação. Mas não é isolado e tem um efeito dominó em várias políticas, com o objetivo de garantir que a mesma elite branca, heterossexual e católica se mantenha”, diz ela.
Como Benilda faz questão de enfatizar, a educação domiciliar já aconteceu em outros momentos da história brasileira, mas em momentos em que a população não tinha acesso à educação. Hoje esse é um direito constitucional, além de estar em várias convenções internacionais das quais o Brasil é signatário. “Por isso entendo esse projeto como do governo Bolsonaro sim, e que aliado a pautas como militarização e Escola Sem Partido complementa outras agendas, como o armamento, a destruição de política de cotas, entre outras. Pode não ser a principal política de Bolsonaro, mas tem a função óbvia de manter o conservadorismo e os privilégios da elite brasileira”, resume Benilda.
+ Saiba mais em: Mais de 400 entidades lançam manifesto contra os projetos de homeschooling que tramitam no Congresso Nacional
Outras searas de disputa: PNLD e Disque 100
Embora essas sejam descritas como as grandes pautas de um projeto conservador na educação, não são as únicas. Há outras ofensivas recentes de cunho conservador, excludente e reacionário, como os ataques ao Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), a perseguição a docentes através do Disque 100 e tentativas de criminalização da linguagem neutra.
O PNLD, por exemplo, que atinge quase 50 milhões de estudantes, teve mudanças importantes no seu último edital: a violação de direitos humanos deixou de ser um critério eliminatório e a alfabetização pelo método fônico foi priorizada, apesar da diversidade de metodologias existentes e aplicadas no Brasil. Essas alterações estão inseridas no contexto de ataques aos direitos humanos na Educação sob o argumento da “neutralidade ideológica”. Também são esses argumentos os utilizados por autores de projetos de lei que têm surgido desde 2020 no país para criminalizar a linguagem neutra. Eles associam a estratégia à “militância ideológica” de uma “minoria” e pretendem proibir o uso de variações linguísticas nas escolas, em materiais didáticos, concursos, atividades culturais e esportivas.
Em 2021, a censura e perseguição a professoras e professores atingiu um novo patamar quando o governo federal passou a incluir “ideologia de gênero” como uma categoria de denúncia no Disque 100, a central de recebimento de violações de direitos humanos. Nos estados da Bahia e do Rio de Janeiro, membros das comunidades escolares foram denunciados sob essa acusação. Tal ofensiva fez com que a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) entrasse com ação no STF questionando o uso do Dique 100 para perseguição política de comunidades escolares que discutem gênero, raça e sexualidade nas unidades educacionais. Agendas que, assim como a educação na escola, são defendidas em massa pela população brasileira, como também atestam pesquisas recentes.
A quantidade de ações, programas e projetos de lei que buscam retroceder nas discussões sobre raça, gênero, sexualidade, direitos humanos e democracia deixam evidente que tais pautas não são secundárias para a gestão Bolsonaro, embora não tenham nascido em seu governo. As conquistas por uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade para todas e todos levaram a uma contraofensiva organizada que encontra espaço na atual gestão, que simultaneamente também age para drenar recursos públicos das escolas públicas. Mas esses movimentos encontram resistência na ação da sociedade civil, que já conseguiu imprimir derrotas importantes por vias judiciais. E que agora se articula para derrubar o projeto ultraconservador também nas urnas.