Projetos de lei tentam proibir “linguagem neutra” em espaços educacionais. Entenda o que está em jogo

As línguas são fruto das práticas, trocas, conflitos sociais e da diversidade humana, incluindo as de gênero.

Imagem com seis mãos erguidas em punho. Cada mão é colorida por uma cor. Da esquerda para direita, as cores de cada mão são: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul escuro e lilás. A sequência de cores representam o simbolo LGBTQI+. Acima das mãos a uma série de letras e símbolos como u, e, x, @. A imagem é destaque de matéria sobre linguagem inclusiva, língua e binarismo

Olá todos, todas e todes, vcs tão lendo no cel ou no note? Esta frase interrogativa não segue as normas da língua portuguesa, mesmo assim você a compreendeu. Por quê? Porque aprendemos a decodificar mensagens transmitidas por meio de diferentes formas de comunicação, seja seguindo regras ou incorporando gírias surgidas em determinados contextos ou grupos sociais.

O todes contido na frase inicial, com a vogal temática e, tem sido adotado recentemente, especialmente por jovens, ativistas e integrantes de movimentos sociais engajadas na defesa dos direitos das mulheres e da população LGBTQIA+. Estes grupos têm questionado o binarismo presente na língua portuguesa e criado novas linguagens que incluam mulheres e pessoas não-binárias.

Variações linguísticas não são um fenômeno novo porque constituem todas as línguas, dado que historicamente as sociedades e suas práticas linguísticas, sejam elas formais ou informais, se implicam mutuamente.

O português que conhecemos hoje nasceu da combinação entre línguas e práticas indígenas e africanas com o português europeu, vindo das línguas latinas. Para a Doutoranda em Linguística pela Universidade de São Paulo (USP), Monique Amaral de Freitas, “a mudança é inerente à lingua e sua mutabilidade vai acontecer, as pessoas queiram ou não. O discurso de que a língua é imutável é uma ficção absoluta, o português falado hoje não é igual ao dos nossos avós, muito menos dos bisavós e assim por diante”.

Essas mudanças podem ou não alterar regras, se consolidar socialmente, ficarem obsoletas – o chamado arcaísmo -, serem adotadas somente na oralidade ou ainda em um contexto social específico. Algumas dessas mudanças geram críticas e outras não. As variações consequentes de hábitos criados pela internet – presentes na abertura deste texto – aparentemente não mobilizam a criação de projetos de leis para sua proibição. Já o surgimento das linguagens neutra, não-binária e inclusiva têm incomodado bastante certos setores da sociedade. Por que?

Proibições são projeto político excludente

Desde 2020, têm surgido projetos de lei nas câmaras federal e estaduais que associam a linguagem neutra à “militância ideológica” de uma “minoria” e pretendem controlar o modo como se fala o português, além de proibir o uso de variações linguísticas nas escolas das redes pública e privada, assim como em materiais didáticos, concursos, atividades culturais e esportivas.

Ao pesquisarmos pelo termo linguagem neutra nos sites das casas legislativas, é possível localizar estes PLs e seus autores, em sua maioria homens que, em geral, se apresentam nas redes sociais como conservadores, religiosos, bolsonaristas, armamentistas etc. Curiosamente, a pesquisa evidencia a ausência de experiência deles no campo da educação.

Para a linguista Monique Amaral de Freitas, tais projetos seriam “filhos do movimento Escola Sem Partido e geram debates que não são muito diferentes do absurdo kit gay. São pretextos para perseguir e eliminar valores que eles condenam, ou seja, são projetos contrários à inclusão e à diversidade”.

Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou como inconstitucionais projetos de leis inspirados no Escola Sem Partido (ESP), ratificando que educadoras e educadores têm seu direito à liberdade de expressão assegurada pela Constituição, e que os debates sobre gênero e sexualidade em sala de aula são deveres da gestão pública da educação. Apesar desta derrota, conservadores com cadeiras políticas “estão procurando outros caminhos para implantar esse pânico moral”, afirma Fernanda Moura, Doutoranda em Educação (PUC-RJ) e integrante do coletivo Professores Contra o Escola Sem Partido.

Para a especialista, os PLs contra linguagem neutra seguem as mesmas lógicas de outros que defendem a militarização e a educação domiciliar (homeschooling), pois “apresentam a escola e os professores como inimigos”.

“Para eles, escola é um lugar de violência, de doutrinação, de sexualização. Mas, na verdade, a escola é um local onde as crianças estão seguras, aprendendo o que são situações de violência, a se proteger e a pedir ajuda. São pessoas alheias à escola que querem mudar a opinião da população sobre a educação como um direito.”

Fernanda afirma ainda que esses projetos “tiram o foco da má gestão e fazem com o que o presidente apareça, pois quando Bolsonaro diz que tirou a ‘ideologia de gênero’ e Paulo Freire da escola, quando um ministro diz que uma criança de 9 anos não está alfabetizada, mas sabe usar camisinha, eles estão acenando para sua base eleitoral de direita e fundamentalista”.

O que quer e o que pode esta língua?

“Quando você não tem o pronome você não tem voz”. Este é um dos sentimentos da população LGBTQIA+ em relação ao binarismo presente na língua segundo o Doutorando em Letras pela Universidade Federal do Paraná, Heliton Diego Lau, que, em suas pesquisas, entrevistou pessoas não-binárias que não se identificam com uma linguagem que divide o mundo entre masculino e feminino, excluindo pessoas com outras expressões de gênero. Desde o mestrado, Heliton adotou e se tornou fluente na linguagem não-binária para “mexer com o ‘cistema’ e mostrar que pessoas não-binárias existem e resistem”.

Além do binarismo, a banalização do masculino como genérico mesmo em situações em que as mulheres são maioria é um dos fatores que motiva estas mudanças linguísticas conforme explica Monique Amaral: “falamos os enfermeiros que estão trabalhando na pandemia, mesmo sendo uma profissão em que 87,4% são mulheres. É um efeito discursivo de apagamento delas. A linguagem inclusiva é um passo importante para discutir a relação entre língua, binarismo, androcentrismo e sexismo”.

Para ambos pesquisadores, no campo da linguística, “nada é neutro”, por este motivo evitam a expressão linguagem neutra e defendem o uso de linguagem não-binária e linguagem inclusiva para se referir a essas novas práticas presentes no Brasil e no mundo. Lau afirma que, independentemente das críticas e debates, estas mudanças vão se atualizar a cada tempo e “se hoje falamos todes e elus, não sabemos como será daqui a alguns anos, pois podem surgir outras formas de se representar as pessoas”.

Lau descata que, apesar de recente, a própria a linguagem inclusiva vem sofrendo variações. Anteriormente, para se opor ao binarismo, as pessoas substituíam as vogais o e a pelo x ou @, mas, segundo o pesquisador, esta prática tem sido abandonada, pois dificulta a fala da população em geral e a leitura das pessoas com deficiência visual, dado que os softwares leitores de tela não compreendem estas grafias. Esta transformação denota que esses grupos estão preocupados com as necessidades e os direitos de todas as pessoas, não só com as questões de gênero ou das ditas minorias.

Glossário

Androcentrismo

Ainda predominante mundialmente, é a noção de que os homens e as referências masculinas são ideais e norteadoras da vida social, excluindo as especificidades das experiências das mulheres.

Sexismo

É a discriminação baseada no sexo biológico ou no gênero. Dada a dimensão do machismo nas sociedades, comumente aplica-se o termo para designar especificamente o preconceito e a desvalorização das mulheres, e não contra os homens.