Tramitando no Congresso Nacional, texto do novo PNE ainda não assegura agendas de gênero e sexualidade

Apesar de centenas de emendas pela inclusão, últimas versões não explicitam essas agendas nem nomeiam discriminações a serem combatidas

O novo Plano Nacional de Educação (PNE), atualmente em tramitação no Congresso (PL 2.614/2024), é o projeto de lei (PL) que mais recebeu emendas na história. Foram 3070 propostas de alteração no texto enviado pelo Governo, expressão das disputas em torno do projeto. No último dia 14 de outubro, o deputado Moses Rodrigues (MDB-CE), relator da matéria, apresentou a nova versão do texto após a incorporação ou rejeição das emendas recebidas. Ponto em comum entre ambas as versões é a ausência das agendas de gênero e sexualidade, apesar de terem sido validadas pela sociedade na Conferência Nacional de Educação (CONAE) de 2024 e das centenas de emendas que tocavam no assunto.

“Gênero” no PNE: histórico 

O PNE atualmente em vigor (lei 13.005/2014) também não contempla essas agendas de modo explícito, resultado de intensa pressão de setores ultraconservadores que marcou a tramitação do Plano. O texto que chegou à Câmara em 2014 expressava que o PNE tinha como diretriz “a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. Ao final, prevaleceu um texto que retirava essas ênfases, expressando apenas a necessidade da “erradicação de todas as formas de discriminação”. Um “conteúdo genérico, suficientemente inclusivo”, como avaliaram, em artigo, os pesquisadores Salomão Ximenes, Fernanda Vick e Márcio Alan Menezes Moreira. 

“A supressão deste tema no último PNE é um importante capítulo na disputa em torno das políticas educacionais e, por tabela, do projeto de cidadania brasileira. As cruzadas antigênero encontraram no espaço escolar um terreno fértil para sua disseminação, ancorada muitas vezes na lógica de uma suposta proteção da infância e da família aliada à propagação de pânicos morais”, diz Dayanna Louise, Secretária de Educação da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). A ausência se traduziu em uma década de disputas em diferentes âmbitos: nas escolas, onde aumentou a censura e a cultura do medo; no Legislativo, durante a elaboração dos planos estaduais e municipais, além das centenas de projetos de lei sobre gênero e educação; no Judiciário, que desde 2020 vem reconhecendo em diversas ocasiões não apenas a legitimidade mas também o dever constitucional de abordar discussões sobre gênero e sexualidade na escola. Uma das mais importantes foi o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5668 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que interpretou que a “erradicação de todas as formas de discriminação” presente no PNE também abrange as discriminações de gênero e de orientação sexual, reconhecendo a obrigação do Estado em garantir que as pessoas não sejam vítimas dessas violações nas escolas.

Gênero no novo Plano: lutas e resistências

As agendas de gênero e sexualidade (articuladas à raça) e o combate a todas as formas de discriminação foram amplamente referendadas pela sociedade civil, que vem lutando para que estas constem no documento mais importante da política educacional brasileira. Na última CONAE, o texto final – que, segundo o regimento, deve ser a base para o governo apresentar sua proposta -, contemplou de forma abrangente o aumento do investimento em educação pública, a revogação do Novo Ensino Médio e a necessidade das discussões sobre gênero, raça e combate a todas as formas de discriminação. Fora isso, foram aprovadas quatro moções da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação, incluindo uma por uma política de promoção da igualdade de gênero, raça e diversidade sexual na educação

No entanto, o Executivo não espelhou essa ampla defesa das agendas de gênero e sexualidade na proposta que enviou ao Congresso. Nela, os termos “gênero”, “orientação sexual” ou a população LGBTQIA+ sequer são mencionados. Teoricamente, essas populações e agendas estariam contempladas nas menções a diversidades, igualdade, equidade e combate a discriminações, à luz do que aconteceu em 2013. O presidente Lula classificou o Plano, nesta versão, como “factível e sério”. 

O texto base do governo, já à época criticado por seu caráter mais generalista também em outras metas, recebeu 3070 emendas. Quase 10% delas tratavam explicitamente de gênero e sexualidade, seja no sentido de inclusão, expansão e garantia de direitos, seja no sentido de exclusão e cerceamento. “Foram mais emendas de inclusão do que de exclusão, o que não significa maior presença do campo progressista em relação ao conservador. Isso quer dizer, na verdade, que o documento enviado pelo Executivo não foi tão progressista assim e tinha muito espaço para melhora. Já as emendas de exclusão tentam tirar os poucos ganhos do projeto, em sua maioria suprimindo gênero ou práticas pedagógicas em direitos humanos”, resume Natália Assunção, mestranda em Ciência Política na UNB e criadora do Observatório de Gênero e Diversidade Sexual no PNE, que monitora o processo. 

A maioria das emendas, tanto de inclusão ou de exclusão, foi rejeitada integralmente, com algumas propostas sendo parcialmente acatadas na nova redação. “Entendo que é o resultado de um esforço do Executivo de não trazer controvérsia para o Plano, o que já tinha sido refletido também nas audiências públicas realizadas pela Comissão Especial do PNE, todas focadas nas estratégias, sem debruçar-se sobre gênero”, complementa Natália.

Na sessão de apresentação do documento, dia 14 de outubro, o deputado Moses Rodrigues mencionou explicitamente que o objetivo foi “preservar o debate acerca do PNE (…) de disputas ideológicas que desviassem o foco da garantia do direito à educação de qualidade”. O prazo de envio de emendas para a versão de Moses já se encerrou, e agora o texto será analisado e aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados para, em seguida, ser votado na Câmara e no Senado – processo que pode se estender até 2026.

“Assim como na tramitação do Plano atual, os grupos que atuam contra gênero, raça e a população LGBTQIA+ estão organizados. Agora, ampliaram sua bancada e se fortaleceram na Câmara, estando também muito atuantes no cotidiano escolar – por exemplo, agindo para cima de familiares que cobram o ensino da cultura africana e afro-brasileira na escola, e chamando certos temas de ‘doutrinação ideológica’. Ou seja, estamos num momento extremamente crítico. Mas também temos aliados e aliadas comprometidas a fazer valer uma educação de qualidade”, pondera Suelaine Carneiro, coordenadora de educação e pesquisa do Geledés – Instituto da Mulher Negra. 

As disputas no projeto do Executivo 

O primeiro texto, do Executivo, recebeu 227 emendas que o tornavam mais inclusivo em relação a gênero e sexualidade, e outras 36 que o tornavam mais restritivo. Vinte e um parlamentares de seis partidos diferentes apresentaram emendas inclusivas, que se distribuíram em todas as etapas da educação, além de emendas transversais, não específicas a uma etapa ou modalidade. Essas emendas majoritariamente espelhavam o conteúdo proposto pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação junto a 23 entidades. 

Além da inclusão da abordagem de gênero e sexualidade e da nomeação das discriminações e violências a serem combatidas e superadas, as emendas inclusivas também propunham: políticas de educação sexual; fomento da participação feminina em carreiras STEM (ciência, tecnologia, engenheria e matemática); mecanismos para garantir a efetivação das leis 10.639/2003 e 11.645/2011; políticas de prevenção ao abuso sexual; e uma política nacional de desmilitarização de escolas públicas, com recorte ao enfrentamento de racismos, machismos, LGBTQIAPN+fobia. Das 227 emendas, 6 foram acatadas integralmente; 109 parcialmente e 139 delas foram rejeitadas. 

Já as 36 emendas que pretendiam tornar o PNE excludente e contraditório à legislação existente – que já assegura a abordagem de gênero, raça, sexualidade e direitos humanos na Educação – foram propostas por 10 parlamentares distintos. Nikolas Ferreira (PL-MG), presidente da Comissão de Educação da Câmara, e Júlia Zanatta (PL-SC) foram responsáveis por mais da metade delas, tendo enviado 10 e 9 emendas, respectivamente. Assim como no caso das emendas de inclusão, essas também se distribuíam por todas as etapas e em diversos objetivos, metas e estratégias do novo PNE. O deputado Dr. Luiz Ovando propôs “protocolos de prevenção à ‘doutrinação ideológica’”; Julia Zanatta apresentou uma emenda sobre o “direito dos pais de escolher a formação moral e religiosa dos filhos“, e Chris Tonietto sobre uma suposta “neutralidade ideológica”, vedando conteúdos “que contrariem convicções morais, religiosas ou filosóficas das famílias”. Das 36 emendas excludentes, nenhuma foi acatada integralmente, outras 28 foram rejeitadas e 8 foram acatadas parcialmente. 

“Chama a atenção a articulação do grupo antigênero, que consegue pautar suas agendas de uma maneira que é preciso um olhar afiado para entender que, por trás das palavras e de seu enquadramento de gênero, estão retrocessos para a democracia como um todo”, destaca Nicole Gonzaga, co-criadora do Observatório de Gênero e Diversidade Sexual no PNE. O Observatório tem monitorado e categorizado todas as emendas recebidas nas diferentes versões do PNE, disponibilizando o balanço para consulta pública. Natália Assunção, também do Observatório, faz coro a essa análise, alertando para a estratégia do campo conservador de não nomear discriminações, como na tramitação passada. “Por mais que o STF tenha afirmado que mesmo uma redação genérica implica que as escolas devem combater todas as formas de preconceito, inclusive baseadas em gênero, identidade de gênero e diversidade sexual, parece ser uma estratégia que a direita percebeu que funciona”, diz.

A percepção de que não explicitar violências, discriminações e grupos específicos no PNE é uma vitória do campo conservador – a despeito do que diga o arcabouço jurídico – é compartilhada por Fernanda Moura, professora e integrante do Observatório Nacional de Violência contra Educadores e do Professores Contra o Escola Sem Partido. “Se não conseguimos nomear, estamos perdendo, por mais que existam brechas”, afirma, baseando-se na experiência de uma década atrás. “A mobilização pela exclusão do gênero foi bem sucedida. Mas a mobilização posterior, que era pela proibição do gênero – e não apenas a exclusão – não foi. Ou seja, a vitória do campo conservador foi parcial se analisarmos apenas o texto, mas isso não bastou, porque ao longo dos anos a exclusão foi tratada, no dia a dia, como se fosse uma proibição. A retirada do gênero foi usada como justificativa quando se perseguiam professores por tratar dessas questões”. Por isso, a educadora reforça a importância de brigar por essas explicitações em todas as etapas da tramitação. 

O Geledés Instituto da Mulher Negra avaliou que o texto do Executivo demonstrou uma preocupação significativa com a pauta étnico-racial, tratando-a tanto de forma estrutural quanto como um marcador de vulnerabilidade. Em contrapartida, a completa omissão da sexualidade e identidade de gênero sugere uma intenção de despolitizar o texto e evitar o confronto ideológico com setores conservadores na fase de tramitação legislativa, mantendo apenas a linguagem mais genérica amparada constitucionalmente. “Isso compromete a capacidade do PNE de enfrentar de forma robusta e explícita as desigualdades e opressões históricas na educação brasileira”, diz a análise da organização, que, ao comparar as versões da Conae, do Executivo e do relator, destaca a tensão e “disputa explícita sobre a centralidade e a forma como as questões de raça, gênero, sexualidade e diversidade devem ser tratadas na política educacional brasileira”. 

“É fundamental lembrar que suprimir o gênero não é apenas uma finalidade em si mesma. Ao contrário, é um conceito que virou um espantalho que justifica tudo, basta lembrar que o PNE não tirou só o gênero do texto, mas também as outras formas de desigualdade, como a de raça e a de classe”, diz Fernanda Moura. “Por isso não dá mais para apenas ‘combater desigualdades’, precisamos nomeá-las. Enquanto não estiverem claras e nomeadas, o outro lado continuará dizendo que é proibido, que estamos doutrinando, a despeito das decisões legais. Nomear também traz segurança jurídica aos educadores e educadoras”, complementa a educadora Fernanda Moura.  

Parecer do Relator Legislativo (PRL) e Emendas: apagamento e resistência

A versão do relator, apresentada em outubro, difere do texto do Executivo ao incluir  um objetivo, 12 metas e 101 estratégias no texto do PNE, mas segue sem adereçar diretamente a importância das escolas educarem para a igualdade de gênero na intersecção com raça, pelo respeito a todas as identidades de gênero e orientações sexuais, pelo enfrentamento ao machismo, racismo, LGBTfobia, capacitismo e por um currículo em educação sexual. A maior parte das emendas sobre essas agendas foi rejeitada ou acatada apenas parcialmente. Alguns avanços foram a inclusão das interseccionalidades nas diretrizes​​, e do cumprimento das Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008, que tratam da obrigatoriedade do estudo da História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena. 

Em nota, a Ação Educativa manifestou profunda preocupação e repúdio pela ausência e reforçou que essas interdições representam um novo ataque a estudantes e profissionais da educação que têm o direito constitucional de abordar agendas relacionadas aos direitos humanos. “A omissão dessas agendas representa um grave ataque ao direito humano à educação e reforça a invisibilização das desigualdades estruturais que atravessam a vida de meninas, mulheres, pessoas negras, indígenas, quilombolas, LGBTQIAPN+ e pessoas com deficiência, comprometendo o direito à aprendizagem, à proteção e à dignidade de milhões de estudantes”, diz o posicionamento. 

O substitutivo recebeu 1380 emendas. Destas, 86 referem-se explicitamente a gênero e sexualidade, sendo 48 no sentido de inclusão das agendas e 38 de exclusão. Em ambos os casos, as e os parlamentares proponentes retomaram pontos da etapa anterior – por exemplo, propondo uma política de desmilitarização das escolas públicas ou, ao contrário, suprimindo marcadores de discriminações. Há ainda uma emenda que quer incluir, entre as diretrizes, a promoção “das diferentes visões de mundo” visando evitar “deriva para agendas identitárias prescritivas”. Entre as mais de 100 emendas que propõe ao substitutivo, o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) quer resguardar “o direito dos pais de decidir sobre aspectos relevantes da educação dos filhos”. 

“Apesar da deputada Tábata Amaral [presidente da Comissão Especial sobre o PNE]  ter comentado que o substitutivo não deixa ninguém para trás, foi mantida a completa ausência da palavra gênero e da população LGBTQIAPN+, além de temas relacionados que estão sendo enquadrados no mesmo guarda-chuva como proibidos, como a educação sexual“, destaca Natalia Assunção, do Observatório de Gênero e Diversidade Sexual no PNE

Após a categorização e disponibilização das emendas, Natalia avalia que o campo conservador partiu para outras agendas. “Dá a impressão de que reconheceram que essa batalha [pela exclusão do gênero] estava ganha. Agora se destaca o negacionismo climático. Isto é, emendas que tentam remover totalmente as menções a mudanças climáticas e adaptação a elas. Além disso, há a tentativa de retirada de trechos que direcionam políticas específicas a grupos sociais historicamente excluídos ou marginalizados, com a ideia de que as políticas devem ser universais. O exemplo mais direto é o ataque a emendas que falam sobre fomentar acesso, permanência e conclusão de mulheres em áreas STEM”, resume. 

Para Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP e integrante da Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação, a retirada das menções a gênero e sexualidade não foi uma surpresa e nem necessariamente uma derrota. “A estratégia de retomar explicitamente esses temas, sempre em articulação com raça, em vários momentos do texto é uma afirmação política”, diz. “Nós conseguimos avançar no reconhecimento da interseccionalidade, e há a menção à violência e ao assédio, embora apenas de forma genérica, sem a explicitação de suas causas. Gênero também não entrou como objeto de proibição, como proposto por grupos ultraconservadores”, completa. 

Lutas prosseguem por um PNE que valorize a diversidade

No início de novembro, mais uma versão do texto foi apresentada. Novamente, sem a incorporação das agendas de gênero e sexualidade. Por isso, a luta por um PNE inclusivo e que enfrente as múltiplas desigualdades sociais e educacionais continua. “Precisamos seguir pautando a mesma estratégia múltipla no Senado, associando-a à determinação do STF sobre a ADI 5668/2024″, reforça Denise. Uma das ferramentas de luta é a “Proposta de Política Nacional de Educação para a Igualdade de gênero, diversidade sexual e educação integral em sexualidade, em perspectiva interseccional”, entregue em outubro ao Ministério da Educação (MEC). O documento é fruto de um trabalho amplo de escuta do MEC de organizações de sociedade civil, entidades acadêmicas, movimentos sociais e instituições do sistema de justiça e de pesquisa, que pretendia justamente dar uma resposta a uma determinação do STF. “Ele propõe uma política sistêmica, multidimensional e de Estado que supere a interdição e silenciamento ou mesmo a abordagem residual das agendas de igualdade de gênero, diversidade sexual e educação integral em sexualidade nas políticas educacionais. Na próxima etapa da tramitação do PNE, no Senado, devemos ecoar este documento como referência fundamental para nossa incidência”, reforça Denise. 

Também parte do grupo que ajudou a produzir esse referencial, Dayanna Louise, Secretária de Educação da Antra, lembra que quanto mais os movimentos reacionários tentam criminalizar essas discussões, mais se ampliam os espaços e horizontes dispostos a experimentar saídas. “A frágil democracia brasileira exige luta diária e coletiva pela preservação e ampliação de direitos, contrariando a quem nos quer silenciar, criminalizar e exterminar. Para além de uma “pauta de costumes”, garantir a inserção de temas como gênero no currículo escolar a partir de uma perspectiva emancipatória é reivindicar uma educação pública ancorada na democracia e na justiça social”, afirma. Suelaine Carneiro, de Geledés, reforça: “Nós enquanto sociedade civil e ativistas pelo Direito à educação de qualidade, antirracista e antissexista, vamos continuar acreditando na possibilidade de termos um PNE que de fato valorize e promova a diversidade étnico-racial, a igualdade de gênero e principalmente uma educação voltada para a emancipação e fortalecimento da cidadania”.