Ação no STF questiona uso do Disque 100 para perseguição política
Governo Federal instrumentalizou o canal para recebimento de denúncias sobre abordagem de gênero nas escolas e exigência de comprovante de vacina, em desrespeito a decisões do STF.
Governo Federal instrumentalizou o canal para recebimento de denúncias sobre abordagem de gênero nas escolas e exigência de comprovante de vacina, em desrespeito a decisões do STF
“Conceitos de direitos humanos vêm sendo subvertidos de forma a permitir a execução de uma política de vigilância, perseguição, discriminação e repressão, sobretudo nos campos da Educação e da Saúde”. É o que afirma uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF), protocolada nesta terça-feira (8) pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde (CNTS) em articulação com ativistas e operadores de direito que atuam na defesa dos direitos humanos.
A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 942 aponta que o governo federal, em total desacordo com a jurisprudência do STF, vem usando o Disque 100 – canal de denúncias de violações de direitos humanos – para constranger profissionais de educação, profissionais de saúde, demais cidadãos e instituições com perspectivas diferentes às do governo federal em questões como vacinação, identidade de gênero e orientação sexual.
O que é o Disque 100 e como ele tem sido usado?
Criado em 1997 como iniciativa de organizações da sociedade civil, o Disque 100 é um serviço público vinculado ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH) que tem a função de receber, analisar e encaminhar denúncias de violações de direitos. Além disso, a sistematização das denúncias recebidas é um instrumento para que gestores públicos, sociedade civil e pesquisadores possam monitorar a situação dos direitos humanos no país.
No entanto, o canal foi reformulado no governo Bolsonaro. Uma das mudanças foi a inclusão da expressão “ideologia de gênero” como motivação para violação de direitos humanos, como forma de estimular denúncias contra profissionais de educação que abordem a questão nas escolas.
Em decisões recentes, o Supremo considerou inconstitucionais leis municipais e estaduais que proibiam a abordagem de conteúdos ligados a gênero e sexualidade nas escolas, que se apoiavam na categoria “ideologia de gênero”. O STF também determinou ser dever do Estado brasileiro abordar a igualdade de gênero na escola como forma de prevenir a violência doméstica e o abuso sexual de crianças e adolescentes. Discurso criado nos anos de 1990 por setores conservadores da Igreja Católica, a chamada “ideologia de gênero” se constituiu em resposta reacionária contra o avanço dos direitos das mulheres e da população LGBTQIA+ no plano internacional.
Uma das preocupações das entidades proponentes da ADPF é com o acionamento de órgãos policiais a partir das informações recebidas pelo Disque 100 contra profissionais de educação da saúde. Isso aconteceu em dezembro de 2021 no município de Resende (RJ), onde a direção da Escola Municipal Getúlio Vargas recebeu intimação da Polícia Civil devido a uma denúncia anônima por supostamente expor os alunos a “conceitos comunistas” e a “ideologia de gênero”. A ação do governo acarretou ainda no baixo índice da vacinação infantil contra a Covid-19, apesar da alta capacidade do sistema de saúde do país. Segundo dados dos veículos da imprensa obtidos com as secretarias estaduais, apenas 18,8% das crianças de 5 a 11 anos no Brasil receberam a primeira dose do imunizante.
Outro caso envolveu uma professora de filosofia da escola estadual Thales de Azevedo em Salvador (BA) por abordar questões de gênero, racismo e sexualidade. Mais recentemente, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos disponibilizou o Disque 100 para recebimento de denúncias relativas à exigência de certificado de vacina de Covid-19 para acesso a locais públicos ou privados, contribuindo para situações de constrangimento e agressões contra profissionais da saúde e comprometendo diretrizes de saúde pública em contexto pandêmico.
“O Disque 100 foi instrumentalizado para burlar jurisprudências estabelecidas pelo STF, tanto em relação à abordagem de gênero na educação como em relação à vacinação. Para piorar, essas denúncias são enviadas a órgãos policiais sem que se decline o crime que se deve apurar. Com isso, o aparato policial é utilizado para gerar medo e inibição de práticas absolutamente legais e constitucionais, endossadas por esse Supremo Tribunal Federal”, afirma a advogada e ex-Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão Deborah Duprat, uma das representantes das entidades na ADPF, que conta também com a representação do grupo de advogados da Rede Liberdade, liderado pela advogada Juliana Vieira dos Santos.
Outro problema apontado é que o funcionamento atual do Disque 100 invisibiliza os dados de violências contra pessoas LGBTQIA+. “Da forma como está estruturado, fica impossível obter dados sobre violência motivada por homofobia e transfobia. Essas informações são essenciais para que os estados e municípios elaborem políticas de enfrentamento a esses casos”, explica Marco Aurélio Máximo Prado, professor da UFMG e coautor de um estudo sobre as mudanças no serviço.
Mudanças no Disque 100
Em abril de 2021, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos divulgou o Manual de Taxonomia de Direitos Humanos, com a função de classificar as notificações recebidas pelo Disque 100. Nesse documento, foi incluída entre os indicadores de motivação das violações o item “Em razão da orientação sexual / ideologia de gênero”. Segundo estudo realizado por pesquisadores da UFMG, o Manual promove um apagamento das violências de caráter homofóbico e transfóbico, devido ao termo vago “orientação sexual” e por dividir espaço com a questionada categoria “ideologia de gênero”.
O caso Disque 100 constitui mais uma das medidas adotadas pelo governo Bolsonaro que atacam ações e políticas comprometidas com a igualdade de gênero e a diversidade sexual no país, realidade abordada pelo Relatório “Ofensivas Antigênero no Brasil: políticas de Estado, legislação e mobilização social”, publicado em outubro de 2021 e submetido ao Mandato do Perito Independente das Nações Unidas sobre Orientação Sexual e Identidades de gênero e Direitos Humanos por um conjunto de organizações da sociedade civil brasileira.
O MMFDH também editou uma nota técnica em que afirma ser uma violação de direitos humanos a exigência de comprovante de vacina para acesso a locais públicos ou privados. O Disque 100 foi disponibilizado para recebimento desse tipo de denúncias, em mais uma ação de combate às medidas de contenção da pandemia de Covid-19. Mais uma vez, a instrumentalização do Disque 100 desrespeita decisão do Supremo, que afirmou a legalidade de restrições indiretas para ampliação da cobertura vacinal no país.
Pedidos ao STF
As proponentes da ADPF solicitam que o STF urgentemente determine a remoção da expressão “ideologia de gênero” do Manual de Taxonomia de Direitos Humanos e do Painel de Dados do Disque 100; a inclusão da categoria identidade de gênero e de indicadores de violações de direitos contra a população LGBTQIA+; a suspensão da nota técnica do MMFDH que questiona a obrigatoriedade do Certificado Nacional da Vacina e da vacinação infantil; e a exigência de que o encaminhamento de denúncias do Disque 100 aos órgãos policiais só aconteça na hipótese de crime tipificado em lei, constando o tipo penal específico.