Storytelling na Formação de Professores/as: Estratégias contra o racismo estrutural
Estado: Bahia (BA)
Etapa de Ensino: Ensino Médio
Modalidade: Educação de Jovens e Adultos, Educação Escolar Quilombola
Disciplina: Filosofia, História, Língua Portuguesa
Formato: Remoto
Doutora em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA), professora do DCIE/ PPGE - Mestrado Profissional em Educação, coordenadora do Projeto "Sujeitos do Atlântico: Histórias de africanos para contar na sala de aula" (http://www.uesc.br/projetos/africanos/) da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC–BA). Canal Youtube: Mulheres Negras para Sala de Aula - https://www.youtube.com/channel/UCMJJIpL_RGulAw1rEQueaJA/videos?view_as=subscriber
Objetivos
- Aplicar a técnica de Storytelling para contar as histórias de mulheres negras com o objetivo de valorizar suas trajetórias de vida, em especial, evidenciar os mundos do trabalho por elas exercidos.
- Utilizar do formato das narrativas digitais transformadas em material didático para formação continuada de professores/as.
- Combater o persistente racismo estrutural na educação básica, e consequentemente, ao que concerne ao modo pelo qual as relações raciais devem ser abordadas adequadamente no ensino médio e EJA.
Conteúdo
O uso da Storytelling abarca os espaços não formais de aprendizagem e as histórias de mulheres comuns, tendo como fio condutor o fato de serem negras e pardas, trabalhadoras livres, libertas e/ou escravizadas em espaços urbanos e/ou rurais que são abordadas na historiografia e buscam espaços nos PPC - Projeto Pedagógico dos Cursos, que quando as abordam é apenas pelo genérico termo de “escravas”, ignorando as implicações de interseccionalidade (gênero e raça) na vida dessas mulheres.
A base teórica que deu sustentação às reflexões foram vozes como bell hooks (2013) Soares (2007) Davis (2016), Santos (2019) Almeida (2018). Embasada numa metodologia conjugada no trato das fontes históricas com os suportes teóricos da decolonialidade, storytelling e interseccionalidade. As narrativas como estratégia de ensino no espaço não formal resultaram numa série de diálogos, depoimentos, produções de retratos, consultas dos jornais como espaços de representatividade conquistados e debates sobre lacunas no ensino sobre a memória, história e ensino num projeto de mulheres negras para sala de aula.
Temas fronteiriços como a História das mulheres negras e o racismo na formação de professores/as, sugerem novas estratégias de ensino interdisciplinares e exigem uma revisão dos programas de ensino, dos materiais escritos ou audiovisuais contra as tradicionais metodologias factuais marcadas por metanarrativas em que o/a professor/a estava habituado a ignorar o racismo estrutural na educação. A saber, isto se dava sutilmente a partir da não inclusão de temas urgentes como a latino-americanidade, o ser nordestino ou baiano, como identidades e pertencimentos étnico-raciais. E, sobretudo, numa visão fora das escritas ocidentais, europeias, masculinas, brancas, patriarcais, hierárquicas. Isto nos leva a investigar se as teorias e práticas embasadas em narrativas hierarquizadas em curso concorrem para impedir um giro decolonial e passa ao largo da formação docente perpetuando em conteúdo/programas/autores/as escolhidos/as para os textos lidos em sala, a vigência de racismos, sexismos, machismos e eurocentrismos. Tais temas, não são abordados e, muitas vezes, são conscientemente ignorados ou naturalizados enquanto estrutura de opressão do Estado brasileiro, reproduzida na educação formal. O racismo é estrutural e estruturante dessas relações, e consequentemente, destas formações e (des)informações de professores/as. E há um papel estratégico que a escola formal vem desempenhando no Brasil, na reprodução de uma concepção de sociedade ditada pelas elites econômicas, intelectuais e políticas do país (CARNEIRO, 2005, p. 106).
Na última década especialmente, a atuação na formação de professores/as se dá em meio a acontecimentos políticos, que deslocou epistemologias, evidenciou como a escola é o simulacro das representações de poder. Na docência nos encontramos em meio a constantes disputas narrativas sobre o que/como/para quem ensinar compondo uma zona fronteiriça onde ocorrem constantemente o que Santos chama há um bom tempo de “negociações de sentido” e “jogos de polissemia” (SANTOS, 1996, p. 135). E, embora ainda haja resistências, as demandas da atualidade impactam na educação e o ensino não consegue evitar a inserção de novos sujeitos antes anônimos, reivindicando agora um lugar de fala que não quer se calar, como discute bem Djamila Ribeiro (2017). Estamos em disputas cada vez mais crescentes de narrativas. É deste modo que mulheres pretas/negras/pardas/mestiças e anônimas, embora muitos importantes antes comecem a ganhar espaços só agora. Neste campo de deslocamentos dos sujeitos da educação, se dá a utilização de variadas estratégias/temáticas/rupturas para o ensino. Isto não é novidade. E é neste lastro que o presente texto discute o uso da storytelling, uma mistura de técnica e metodologia narrativa, amparada em fontes históricas para a formação de professores. Nesta, os temas como a escravidão, as mulheres negras e seus mundos do trabalho foram narrados com uma abordagem decolonial e interseccional, quebrando a narrativa linear branca, elitista e hierárquica ainda vigente nos livros e programas de ensino. Basta uma rápida pesquisa e as encontraremos atualmente subalternizadas pela versão do Livro Didático, narrando-as sob a engessada perspectiva da normatização e controle sobre o corpo, o trabalho e o cotidiano das mulheres negras (livres, escravizadas ou forras) a partir dos discursos eurocêntricos. Em outras palavras, ressalta Lélia Gonzalez (1984), há um imaginário social que associa mulheres negras à mulata, doméstica ou mãe preta.
Do problema à pesquisa e à ação: o uso da técnica da storytelling
Duas décadas de docência: metade do tempo na educação básica, especificamente na da alfabetização, na EJA (Educação de Jovens e Adultos), no Ensino Fundamental e Médio (extinto curso Normal de Magistério) e outra metade na graduação, extensão e pós-graduação se consubstanciaram neste problema de investigação. E deste, a pesquisa procurou solucionar um problema: como romper com os silêncios e/ou narrativas distorcidas no currículo, livros didáticos e aulas sobre mulheres negras e seus protagonismos? A resposta resultou na elaboração de um projeto de pesquisa visando responder a este problema e oferecer uma solução prática: construir narrativas didáticas sobre as mulheres negras para sala de aula, recorrendo a novas modalidades como a disponibilidade destas na internet, afinal, é o campo da educação para a vida no enfrentamento dos desafios dos tempos modernos (GHON, 2011).
A narrativa de storytelling tem a potencialidade de estabelecer um diálogo com ação-reflexão-ação, provocando identificações com as trajetórias das protagonistas com a autoconsciência e/ou identidade individual ou coletiva dos que ouvem, possibilitando a relação entre a teoria e a prática, a pesquisa e o ensino, o passado e o presente. Isto faz com que metodologicamente, a cada relato bem estruturado, pois nasce da transcrição de uma fonte histórica e, portanto, crível, a narração seja reelaborada para enfatizar a perspectiva feminina o que as torna envolventes experiências baseadas em mulheres reais. Tal ferramenta quando utilizada para o ensino desde a licenciatura, perpassa o ensino só da História com sua natureza narrativa e vai além, une as narrativas históricas coerentes com os métodos historiográficos, retirando a pesquisa do reduto acadêmico, estabelecendo uma utilidade e a comparação para adaptá-las às propostas oficiais do currículo, mesmo a do programa de ensino das licenciaturas. Destarte, a produção de narrativas históricas digitais surge como potente ferramenta no combate aos racismos estruturais no ensino também nestes espaços não formais como as mídias e redes sociais.
Metodologia
Metodologicamente este projeto resulta de experiências no âmbito da abordagem qualitativa, ressalvando o fato de estar imbricada com aspectos políticos, éticos, estéticos e epistemológicos, na prática, recorreu a diferentes métodos, dialogando com a Pesquisa Documental aliada à Pesquisa-ação. No que que tange à pesquisa documental, foram analisados inúmeros documentos como jornais, correspondências entre juízes, polícia e câmaras, testamentos e processos do judiciário. Das queixas e lacunas observadas no cotidiano da docência, o projeto foi elaborado. Conforme argumenta Chisté (2016), a Pesquisa-Ação tem sido um dos caminhos eleitos pelos pesquisadores para evidenciar as relações entre teoria e prática. O desafio partiu da vida real, a do cotidiano de ensino na formação de professores/as, no registro das queixas de falta de material de uns/umas, de informação por outros/as, da inacessibilidade de fontes históricas em escritas paleográficas dos séculos XVIII e XIX, difíceis geograficamente, além de exigirem uma leitura paleográfica complicada. De posse da coleta dos documentos com digitalização, seriação, transcrição e adaptação a proposta visou preencher a esta lacuna de ter narrativas para sala de aula. Vale ressaltar que é uma demanda crescente mesmo em face de uma lei Federal sancionada há mais de uma década. As leis 10.639/03 e nas Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira, não conseguiram efetivamente dar suporte para o a promoção das discussões previstas, nem na Educação Básica, tampouco nas licenciaturas, nem adentrar as três vertentes que envolvem o ensino: o currículo escolar, a formação dos/das docentes e a avaliação do ensino. Isto não pressupõe a ausência de grandes debates, produções de artigos e pesquisas, eventos e afins. Mas, na prática efetiva, faltam materiais didáticos interdisciplinares, acessíveis e adequadamente transpostos. Deste lastro, de registros e observações em sala de aula, da análise em bancos de dados com teses e dissertações, se delineou o projeto de pesquisa e da execução em formato de cursos teóricos, palestras e lives, instrumentalizando os docentes com narrativas para sala de aula, em espaços não formais como as mídias e como resposta a uma demanda por conteúdos didáticos interdisciplinares na formação de professores/as: o uso da storytelling.
O projeto “Mulheres negras para sala de aula” estabelece um diálogo de métodos e técnicas para dar suporte aos conhecimentos que são relevantes neste contexto específico. Deste modo, a Pesquisa Documental e a Pesquisa-ação foram dinamizadas pelo uso da técnica do que se chama storytelling. De modo simples, podemos resumir como a contação de histórias de cunho narrativo tendo como protagonistas mulheres negras. Esta técnica, cujo formato é um dos mais utilizados em podcasts, é mais difundida em outras áreas do conhecimento, amplamente pelo Marketing, há quase três décadas nos Estados Unidos, embora pouco discutida no campo do ensino da História e demais licenciaturas. Barone (1992) recorreu à utilização do storytelling nas pesquisas qualitativas em educação, ressaltando o aspecto da transformação da educação através de histórias contadas pelos professores/as e ouvidas dos alunos/as. Embora mais popularizada pela parte organizacional das empresas e menos no campo educacional, outro uso significativo desta técnica se deu também fora do Brasil e relacionado à natureza da oralidade, destacando o caráter eminente oral das culturas africanas. Banks-Wallace (2002) utilizou-se da técnica de storytelling para desvelar dados na tradição oral da cultura African American com intuito de tratar didaticamente questões ligadas à promoção da saúde.
Seja como for, esta antiga forma de ensinar através da narração e interpretação de histórias surte efeito positivo ao tratar dos conceitos teóricos e temas complexos como as relações de poder, gênero, trabalho de modo simples e objetivo, com características flexíveis por serem curtas ou seriadas e ao mesmo tempo tratar de grandes feitos cotidianos, dar nomes a pessoas antes anônimas, trazer ensinamentos que combatem o racismo, feminicídio, a misoginia. Sobretudo no caso das mulheres, pois ao narrar seus protagonismos regionais partiu-se de uma perspectiva individual para uma leitura globalizante das histórias das mulheres negras em diáspora.
A narrativa de storytelling tem a potencialidade de estabelecer um diálogo com ação-reflexão-ação, provocando identificações com as trajetórias das protagonistas com a autoconsciência e/ou identidade individual ou coletiva dos que ouvem, possibilitando a relação entre a teoria e a prática, a pesquisa e o ensino, o passado e o presente.
Recursos Necessários
Duração Prevista
Atividade prática: Análise e produção de cartas com documentos históricos sobre africanas.
Formação Teórica: As mulheres negras na História da Bahia: autoras negras, obras e revisões.
Atividade prática: Elaboração de mini-biografias sobre mulheres negras anônimas.
Formação Teórica: As mulheres negras nas notas da imprensa baiana entre o século XIX e XX.
Atividade prática: Reescritura de notas da imprensa sobre venda ou fuga ou prisões e crimes de mulheres negras.
Formação Teórica: As mulheres negras baianas nas fotografias dos europeus.
Atividade prática: Produção de fichas-resumos descrevendo as fotografias sob novos olhares decoloniais.
Atividade prática: Mostra on line das produções escritas com depoimentos orais para serem disponibilizadas no canal do Youtube sob o título de “Novas Histórias das Mulheres Negras”.
Processo Avaliativo
Referências Bibliográficas
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