Quem dança, os preconceitos espanta
Estado: Ceará (CE)
Etapa de Ensino: Educação Infantil - Pré-Escola
Modalidade: Educação Regular
Disciplina:
Formato: Híbrido
Pedagoga, mestre em Educação e Ensino. Servidora pública do município de Russas/CE.
Pedagoga, mestre em Educação e Ensino. Professora-colaboradora do Laboratório de Estudos da Educação do Campo (LECAMPO/FAFIDAM).
Mestrado e Doutorado em Educação. Professora do curso de Pedagogia da FAFIDAM/UECE e do Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e Ensino (MAIE/UECE).
Pós-doutora em Semântica/Pragmática. Professora do Mestrado Acadêmico Intercampi em Educação e Ensino (MAIE/UECE).
Objetivos
Como foi a experiência
O presente relato de experiencia educativa descreve como ocorreu a vivência de uma atividade voltada a ensinar as crianças que o balé não é uma dança delimitada a um gênero, podendo ser realizada por meninas e meninos, desconstruindo a ideia de que o balé é uma dança somente para meninas. A experiência foi realizada com crianças do ciclo IV (4 anos) da educação infantil de uma escola pública, situada na Zona Rural do Município de Russas-Ceará.
Atores envolvidos
Nesta experiência foram envolvidos diversos atores educativos, onde nos foi possível construir um diálogo colaborativo entre professores da educação infantil, as meninas e meninos do ciclo IV, suas famílias, a formadora do infantil IV e três professoras da Universidade Estadual do Ceará (UECE), que colaboraram na orientação e construção da proposta educativa, bem como, nas reflexões suscitadas neste relato de experiência.
Relato da experiência
Para descrever em relato como esta experiência se realizou no ciclo IV da educação infantil, faz-se necessário rememorar a situação que despertou em nós a motivação para pensá-la enquanto possibilidade educativa e planejá-la como uma atividade pedagógica.
A situação ocorreu no início de 2020, período em que os momentos educativos ainda estavam ocorrendo de forma presencial, e ainda não tínhamos adentrado ao ensino remoto (online e em casa) com vista a cumprir o distanciamento social requerido pela pandemia ocasionada pela Covid-19. Neste dia, estávamos explorando na rotina escolar o tempo de experiência: Corpo, gestos e movimentos, proposto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Na ocasião, as crianças estavam a ouvir e dançar músicas de seu repertório de interesse e uma delas se destacava nos pedidos das crianças: a música "A Bailarina", de Lucinha Lins.
As crianças pediam animadas que a música fosse repetida em vídeo para que elas pudessem acompanhar os mesmos movimentos que a bailarina fazia na música. Motivadas pelo compromisso único de serem crianças e se divertirem com os diversos passos que a bailarina realizava, as meninas e meninos mergulhavam nesse encantamento; pulando, levantando os braços, saltando, ficando na ponta dos pés, rodopiando e até mesmo caindo, e no final sorrindo com seus próprios tombos e os de seus colegas.
Foi a partir da observação sensível e atenciosa sobre esta situação e dos aprendizados e provocações que ela nos trouxe, nos confirmando que as crianças não nascem com pensamentos e comportamentos machistas e sexistas, mas os constroem a partir das representações e exemplos chegam a elas por diversas vias de nossa estrutura e cultura social.
Trabalhar pedagogicamente para as mudanças que almejamos no sentido da liberdade e bem comum é possível, mas antes, é preciso haver enfrentamentos e coragem para trilhar caminhos da busca pela equidade, pois “[...] é exatamente o fato de que um currículo é um território onde se pode aprender, que faz dele um artefato de grande importância para muita gente” (PARAÍSO, 2016, p. 210).
Sendo assim, por intermedio do interesse pela discussão que abarca o currículo escolar e as experiências vividas na supracitada turma da educação infantil, nos motivamos, no período dos momentos remotos (a experiência ocorreu no dia 13 de abril de 2020) a transportar esta experiência para dentro das casas das crianças, de maneira a aproximá-la também de suas famílias e propor essa reflexão a respeito do balé como uma dança que, apesar de a estrutura patriarcal e machista definir como feminina, precisa ser reconhecida como uma dança que não tem gênero, que pode ser realizada de maneira livre de preconceitos, tanto por meninas como por meninos, demonstrando para elas a existência de bailarinos meninos/homens.
No campo da educação infantil, observamos que muitas das ideias que as crianças socializam em suas falas cotidianas na escola expressam pensamentos que já foram reproduzidos e ensinados em seu núcleo familiar, porém, cabe ressaltar que a resistência quanto à realização do balé é proveniente da estrutura patriarcalista, ou seja, o preconceito acontece para além do seio familiar, e, em virtude de nossa cultura machista, muitos deles são incorporados pelas crianças em suas falas, comportamentos, ações e escolhas, assim como passam a despertar nelas posturas de resistência quanto a cores, brincadeiras, danças, brinquedos, modos de ser e de se portar.
Diante dessa breve contextualização do que usualmente ocorre no espaço da escola e do anúncio do que pode vir a ocorrer através de mudanças, podemos considerar a atividade realizada como uma “fuga pedagógica”, entendida neste trabalho como uma prática transgressora que envolve gênero e sexualidade (mesmo que de modo implícito), concretizada a partir da reflexão sobre o papel do currículo escolar. Compreendemos que, apesar de todo retrocesso que vem acontecendo, é possível “Gerar possibilidades de aprendizagem em contextos insuspeitados. Aumentar a potência de agir. Metamorfosear! Movimentar o próprio pensamento. Escapar das tentativas de captura. Deslizar. Fugir e criar um outro currículo” [...] (PARAÍSO, 2010, p. 602).
É imprescindível destacar que gênero e sexualidade estão na escola, mesmo que estejam sendo negados a serem mencionados ou trabalhados por educadoras(es), onde os e as estudantes levam consigo estes aspectos da vida humana no momento que ampliam a convivência em grupo no ambiente escolar. Levando em consideração
[...] que movimentos coletivos mais amplos sejam certamente importantes, no sentido de interferir na formulação de políticas públicas — em particular políticas educacionais — dirigidas contra a instituição das diferenças e a perpetuação das desigualdades sociais, também parece urgente exercitar a transformação a partir das práticas cotidianas mais imediatas e banais, nas quais estamos todas/os irremediavelmente envolvidas/os. Há, no entanto, um modo novo de exercer essa ação transformadora, pois, ao reconhecer o cotidiano e o imediato como políticos, não precisamos ficar indefinidamente à espera da completa transformação social para agir (LOURO, 2014, p. 126).
Isso significa dizer que nós docentes e pesquisadoras/es temos que entender que o nosso papel é de mediar e problematizar de modo adequado e crítico tais aspectos que compõem a vida de todas, todos e todes, tendo em vista que “O problema da questão de gênero é que ela prescreve como devemos ser em vez de reconhecer como somos. Seríamos bem mais felizes, [...], se não tivéssemos o peso das expectativas de gênero” (ADICHIE, 2015, p. 36-37). Para tanto, vislumbramos como proveitosa a possibilidade de levar essa desconstrução e reflexão a partir de um momento a ser realizado em família, visando também trabalhar para além desta questão referente ao balé, desta forma, construirmos com base neste momento, outros, nos quais, poderemos indicar outros estilos de danças a serem praticadas por todas, todos e todes.
Estratégias adotadas
Em nosso planejamento pedagógico para este momento, a qual definimos como temática “balé: uma dança de todas e todos”, planejamos para o primeiro momento a exploração de um vídeo educativo construído por nós professoras, no qual abordamos a compreensão do balé como um estilo de dança reconhecida em todo o mundo, informando que a dança é um tipo de atividade na qual utilizamos a movimentação corporal e que pode ser praticada tanto por meninas quanto por meninos.
No mesmo vídeo, apresentamos as crianças os benefícios de se praticar o balé, tais como: estímulo a concentração, atenção, memória, desenvolvimento da coordenação motora (movimentos amplos e mais afinados), a confiança em si e no outro, já que alguns passos são executados entre pares. Por fim, apresentamos exemplos de bailarinos e bailarinas, que ilustravam para as crianças os passos mais característicos deste tipo de dança, dentre os quais estão: pulos, saltos, rodopios, ficar na ponta dos pés, posicionamento dos braços, dentre outros.
Em sequência, também exibimos para as crianças o vídeo da música "A bailarina" (Lucinha Lins). O vídeo em questão foi reeditado por nós professoras, no qual adicionamos junto a bailarina a figura animada de um bailarino, de modo que as crianças pudessem visualizar as duas representações nesta dança, tanto feminina quanto masculina. Após apreciarem a dança, motivamos as crianças e suas famílias a dançarem juntos a música, buscando imitar os mesmos passos que eles realizavam na dança.
Dificuldades encontradas
Quando pensamos um momento com esta temática para a educação infantil, consideramos que poderíamos obter alguns retornos conflituosos no que se refere a alguns contextos familiares mais conservadores. Pensando nisso, examinamos ser prudente pedir a orientação da formadora do ciclo IV da Educação Infantil, que por sua vez, nos encorajou a realizar a exploração da temática.
Outra dificuldade encontrada, se mostrou através do contexto da pandemia, visto que esse nos afetou e continua a nos afetar de diversos modos, na educação, especialmente, nos desafiando a readaptar a nossa prática pedagógica para o funcionamento dos momentos de forma remota. Porém, tratando-se da execução da atividade por parte das crianças, não houveram problemas, pelo contrário, observamos um retorno muito positivo no que se refere a sua participação e de seus familiares, os quais não apresentaram resistência à atividade de dança.
Principais aprendizagens
Diante dos retornos obtidos por nós professoras através de vídeos, fotos e áudios enviados pelas famílias desta experiência, consideramos que ela se realizou de maneira benéfica nos contextos familiares das crianças. De fato, ficamos surpresas com os vídeos que mostravam a família toda reunida para a dança, meninos e meninas com olhares de encantamento e atenção para a participação dos pais junto a elas nestes momentos. Em algumas situações, as crianças deixavam de se guiar pela imagem da bailarina no vídeo e passavam a observar a forma como seus pais executavam os movimentos. O sorriso no rosto foi um elemento predominante em todos os contextos familiares, assim como, era percetível a expressão corporal livre e criativa pelas crianças.
Dentre estas situações, duas nos tocaram profundamente. Em uma delas, o irmão mais velho convida o mais novo para dançar, e a medida em que estão nesta movimentação, se divertindo, resolvem criar passos novos, onde um acompanha o outro. Na outra situação, a mãe de um dos meninos motivou o filho a usar um dos adereços característicos dos bailarinos, a meia calça. Ao convidar o filho para dançar, relatou após a experiência: “Eu realmente me emocionei vendo meu filho dançar. Foi algo muito especial pra mim. O balé é para todos.” A criança, por sua vez, relatou em vídeo que a dança foi muito divertida. Mencionou os tombos e rodopios que conseguiu fazer e o quanto sua irmã pequena ainda precisava aprender com ela na dança.
Observações
Consideramos que esta experiência representou para nós professoras um despertar para a construção de novas práticas pedagógicas com as crianças, as quais estejam alinhadas com o objetivo de desconstruir representações de gênero, seja no campo da dança em sua pluralidade de manifestações, ou em outras dimensões sociais, como por exemplo, nos momentos em que tivemos a oportunidade de refletir junto as crianças sobre a definição cultural de brinquedos e cores atribuídos a meninos e a meninas e sobre o exercício do trabalho doméstico como uma forma de trabalho da mulher, reconhecendo nele a importância de mostrar a figura masculina como essencial para fazer deste um espaço de equidade.
Referências Bibliográficas
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas / Chimamanda Ngozi Adichie; tradução Christina Baum. – 1º Ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
PARAÍSO, Marlucy Alves. Diferença no currículo. Cadernos de Pesquisa, v.40, n.140, p. 587-604, maio/ago. 2010
_______. Currículo e relações de gênero: entre o que se ensina e o que se pode aprender. Revista Linhas. Florianópolis, v. 17, n. 33, p. 206-237, jan./abr. 2016.