A Escola de samba visita a escola formal
Estado: Rio de Janeiro (RJ)
Etapa de Ensino: Ensino Médio
Modalidade: Educação de Jovens e Adultos, Educação Regular
Disciplina: Língua Portuguesa, Sociologia
Formato: Presencial
Sou uma professora paradoxalmente sistemática e anarquista, considerando os pontos positivos de cada proposta. Penso que para um trabalho acontecer é preciso disciplina, responsabilidade, compromisso; mas também liberdade, diálogo, senso de coletividade. Gosto da possibilidade de misturar a experiência de quem tem 29 anos de magistério com a ousadia dos que estão descobrindo a vida. Afinal, somos todos seres inconclusos, como dizia Paulo Freire. Não se reduz uma aula à transmissão de conteúdos.
A experiência
No ano de 2016, escolas de Ensino Médio foram ocupadas pelos alunos, em protesto pela situação de calamidade da educação pública. A escola de Formação de Professores, onde a proposta foi desenvolvida, também aderiu à ocupação. Em meio às divergências entre alunos e professores sobre os rumos do movimento, os ânimos ficaram exaltados, o que dificultou bastante as relações sociais e profissionais nesta escola. O ano encerrou-se com muitos conflitos, e, ao iniciar 2017, era preciso restabelecer a paz, o respeito e o diálogo, para o pleno desenvolvimento do fazer pedagógico. Foi nesse contexto que nasceu o projeto, inicialmente, em caráter experimental, sem grandes pretensões, mais como forma de harmonizar o ambiente. O resultado superou as expectativas, foi tão positivo, que nos três anos seguintes tornou-se a atividade de abertura do ano letivo, abrindo espaço para debate sobre diversos temas de relevância na formação humana de crianças e jovens.
Pessoas envolvidas
Para que o projeto se realizasse, contei primeiramente com a confiança da diretora-geral, que me deu carta-branca para usar todos os recursos humanos e materiais disponíveis. Dessa forma, pude recorrer ao corpo docente, que prontamente abraçou a ideia e colocou a “mão na massa”. Sem a adesão dos professores, nada seria possível. Mesmo os que não gostavam da festa, nem tinham domínio do assunto, ajudaram de alguma maneira. Com a equipe envolvida, foi mais fácil motivar os alunos.
Relato de experiência
A construção social posta hoje, aqui, e em outras partes do mundo, continua acentuando desigualdades, controlando pensamentos e atitudes, referendando crenças e mitos que só atrasam a evolução da humanidade. E cabe a escola, invariavelmente o primeiro espaço de socialização fora da família, a revisão de certos conceitos e a apresentação de modelos de uma autoimagem positiva para negros, índios e imigrantes. Com esse intuito, foi incluído no planejamento curricular um desfile de escolas de samba, feito por alunos, orientados pelos professores, e usado como atividade de integração (que também exigiu, pesquisa, disciplina, criatividade, autonomia, liderança, socialização, protagonismo) das turmas. É fato que o sambódromo tornou-se um espaço de protagonismo negro no Brasil, onde as agremiações apresentam nos enredos a produção de narrativas sobre suas experiências, e dão a elas o lugar de fala. Durante a semana de planejamento, a equipe docente se apropriou do projeto e se organizou para, nos dias que antecedessem ao carnaval, TODOS pudessem assessorar as turmas na confecção das alegorias, fantasias, adereços, coreografia (opinando, sugerindo, delegando). Os enredos das escolas do grupo especial foram sorteados entre as turmas de 2º e 3º ano do Curso Normal, que a partir daí, pesquisaram o tema e criaram os materiais das alas para um grande desfile na quadra. O professor de Sociologia agendou uma visita à cidade do samba. Foram indicados 3/4 alunos, por turma, para conhecer os barracões, acompanhar de perto o trabalho nos bastidores, e assim, entender melhor o enredo. Eles, então, trouxeram dicas e informações de como materializar o tema. No dia marcado para o desfile, as turmas apresentaram-se na “avenida” para os “jurados”, recebendo deles pontuação para cinco quesitos. Foram convidados 5 professores e/ou funcionários e 5 alunos de outra série, para integrarem o júri (eles receberam antes orientações sobre os quesitos). Ao final do desfile, as notas, em envelope lacrado, foram entregues ao professor responsável para que se fizesse a apuração e se divulgasse o resultado. Posteriormente, houve espaço na aula de Língua Portuguesa para autoavaliação.
Estratégias adotadas
Antes de iniciar o ano letivo, pesquisei os enredos das escolas do grupo especial, montei um material de aprofundamento sobre eles para socializar com a equipe na reunião de planejamento e fiz um cronograma de trabalho a fim de garantir que a atividade fosse concluída dentro do prazo estabelecido. Levei em conta o tempo que teríamos até o carnaval, os recursos humanos e materiais de que dispunha e as dificuldades que encontraria junto aos alunos, gestores e professores.
Dificuldades encontradas
O maior desafio foi convencer os alunos e professores evangélicos a encarar a atividade como parte da nossa cultura e, por isso, de extrema relevância para a formação de um cidadão pleno. Nesse momento, foi fundamental a participação dos professores de História e Sociologia, apresentando argumentos fundamentados cientificamente para esclarecer fatos e fakes. Respeitando-se a decisão de cada um, foi oferecido um trabalho teórico aos alunos que não quisessem participar. Entre os professores não houve grande resistência, a proposta foi amplamente discutida e revisada para contemplar o maior número de docentes.
Principais aprendizagens
Os envolvidos na experiência entenderam que é possível fazer analogia entre o universo do carnaval e o ambiente educacional; encontraram meios de estimular, mutuamente, a liderança e a criatividade; exploraram o potencial, a habilidade de cada indivíduo na busca pela superação; incentivaram o trabalho em equipe; mediaram conflitos internos, despertaram o compromisso e a responsabilidade com prazos e metas; promoveram a interdisciplinaridade. As dificuldades encontradas em relação ao custo dos materiais usados poderiam ser equacionadas com a utilização de materiais recicláveis e o reaproveitamento do que sobrou nos anos anteriores. Em relação aos temas, pedir que os alunos acompanhassem as escolhas dos enredos.
Observação
A escola em questão pertence à rede estadual do Rio de Janeiro. Oferece o curso de Formação de Professores e Médio Regular. O projeto iniciou em 2017 e sua última edição foi em 2020. Depois da pandemia, não retornei à escola; entrei de licença e me aposentei. A equipe deseja retomá-lo, mas falta liderança.
Referências bibliográficas
RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LOPES, Wallace (Org.); SILVA, organização (Org.). Sambo, logo penso: afroperspectivas filosóficas para pensar o samba. Rio de Janeiro: Héxis: Fundação Biblioteca Nacional, 2015.
OLIVEIRA, Maria Gilda Alves de (Org.). Narrativas da experiência negra. Rio de Janeiro: Metanoia, 2019.
CARNAVAL 2022: HOMENAGEM PARA PERSONALIDADES NEGRAS É APOSTA NA BUSCA POR REPRESENTATIVIDADE. Disponível em: https://fmcidade.com/2022/03/23/carnaval-2022-homenagem-para-personalidades-negras-e-aposta-na-busca-por-representatividade/. Acesso em: 09 maio 2022.
Carnaval negro: a valorização da negritude é tema das escolas de samba em 2022. Disponível em: https://catracalivre.com.br/cidadania/carnaval-negro-a-valorizacao-da-negritude-e-tema-das-escolas-de-samba-em-2022/. Acesso em: 09 maio 2022.
CORDEIRO, Mauro. Texto do Tweet. Rio de Janeiro, 05 jun 2020. Twitter: @maurocordeirojr. Disponível em: https://twitter.com/maurocordeirojr/status/…. Acesso em: 06 jun 2022.