Galinha Pintadinha e os estigmas sociais: Uma reflexão crítica

Estado: Bahia (BA)

Etapa de Ensino: Educação Infantil - Pré-Escola

Modalidade: Educação Regular

Disciplina:

Formato: Presencial

Carla é uma mulher preta e professora em um Centro Municipal de Educação Infantil. Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), é mestre em História pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Africanos, Povos Indígenas e Culturas Negras da UNEB. Integra o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Infantil, Crianças e Infâncias (GEPEICI) e ERÊ, ambos da da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia e do Comitê Bahia da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Também é pesquisadora do GEPEN/PONDERA da UVA/CE. Recebeu os prêmios XXI Arte na Escola Cidadã (PAEC) e Professores que Transformam (2022/23) e foi finalista do prêmio Meu Pátio é o Mundo 2022 (OMEP/ARCOR). Mãe de Cleiton Pinheiro.

Sobre a experiência

A experiência foi realizada em março em uma escola pública municipal da Bahia.

 

No contexto do currículo da Educação Infantil, as práticas pedagógicas eram frequentemente orientadas por datas comemorativas—muitas vezes de forma descontextualizada.

 

Como afirma Finco (2010, p. 120), é nas relações específicas da Educação Infantil que “o protagonismo da criança ganha destaque e que a potencialidade do convívio, em suas diversas formas de relações, pode propiciar uma nova interação”.

 

Nesse sentido, a iniciativa foi motivada pelos constantes diálogos entre as crianças nas turmas sobre a distinção entre o que seria “coisas de meninos” e “coisas de meninas”. Exemplos disso incluem a percepção de que meninas não poderiam ler um livro cuja capa trazia a imagem de um personagem masculino ou a ação de um menino que, sem consultar as colegas, retirou um lápis de cor rosa de seu pote e o entregou a meninas de outra mesa.

 

Em concordância com Nunes (2021), as ações promovidas tanto pelo Estado quanto pela sociedade ressoam nas crianças quando alcançam seus grupos de pertença identitária. A fim de romper com posturas que desconsiderem as crianças como sujeitos que marcam a cultura e a sociedade – e por elas são marcadas –, o objetivo da vivência foi analisar uma música infantil a partir dos marcadores sociais de gênero. 

 

Viana e Finco (2009, p. 273) defendem que os artefatos, como brinquedos, oferecidos às crianças carregam “expectativas, simbologias e intenções”. Diante das múltiplas possibilidades de reflexão sobre a temática de gênero, a canção escolhida foi Galinha Pintadinha (e o Galo Carijó), uma das animações preferidas das crianças das turmas.

Pessoas envolvidas

Crianças de 4 a 5 anos, matriculadas em turmas de pré-escola em uma instituição que atende da Educação Infantil ao nono ano do Ensino Fundamental.

 

A maioria das crianças envolvidas na experiência é socialmente negra (pretas e pardas) e reside em um bairro periférico de um município da Região Metropolitana de Salvador, na Bahia. Participaram aproximadamente 50 crianças, distribuídas em duas turmas, com atendimento em período parcial: matutino ou vespertino.

Relato da experiência

Iniciamos a vivência com a escuta das crianças acerca das músicas que gostavam. No mesmo repertório da canção “Galinha Pintadinha” (que tem canções populares), cantaram e se movimentaram ao som de: “Meu Pintinho Amarelinho”, “A Dona Aranha”, “Borboletinha” e “O Sapo não lava o pé”. No início, não chegamos a cantar a música tema.

 

No estabelecimento de direitos de aprendizagem e desenvolvimento, anunciados na BNCC-EI (Brasil, 2018), elas brincavam, expressavam-se, conviviam e participavam da prática didática através de diferentes linguagens: corporal, linguística, musical, afetiva, etc – na garantia aos processos de apropriação, de renovação e de articulação que as crianças devem acessar por meio da proposta pedagógica (e vivências práticas) do ambiente educativo ao qual pertencem – conforme preconiza as DCNEI (Brasil, 2009).

 

Perguntadas sobre a música da Galinha e do Galo e sobre os sons dos animais, de pronto, começaram a cantar: “A Galinha Pintadinha e o Galo Carijó/ A Galinha usa saia e o Galo paletó”. Fiz cara de pensativa.

Elas continuaram “A Galinha ficou doente/ E o Galo nem ligou”. Mudei a expressão para o assombro. A canção prosseguia enquanto as crianças, simultaneamente, reagiam diante das minhas expressões.

 

Na continuidade da música: “Os Pintinhos foram correndo para chamar o seu doutor”. Mais reações de espanto por mim.

 

Para finalizar, seguiram: “O doutor era o Peru/ A enfermeira era o Urubu/ A agulha da injeção era a pena de um pavão/ Pó, pó, pó, pó, pó”.

 

Questionei-as se sabiam o porquê da minha reação. Dentre os pressupostos, apontaram que poderia ser algo que alguma criança fez, que estava incomodada ou achando graça de como estavam dançando e cantando. Dei negativo a essas intervenções. Como não conseguiram identificar o motivo, informei que algumas partes na música me causaram preocupação.

 

A discussão acerca das questões de gênero é elemento indispensável à prerrogativa de qualidade à Educação Infantil que, por sua vez, é lugar onde o corpo da criança além de cuidado é educado. Os mecanismos presentes na educação de meninas e meninos que compõem a cultura ao qual estão inseridos e que referendam as suas relações sociais na pretensa circunscrição de seus modos de pensar, de agir, de ser precisam ser refletidos e questionados (Finco, 2010).

 

Pensamos sobre o porquê da presença de elementos ou papéis sociais referendados a cada figura (feminina e masculina): saia e paletó; doutor/enfermeira. Exploramos as nossas vestimentas. Todas as crianças estavam de shorts ou calça enquanto as docentes estavam de calça ou vestido. O diálogo fluiu para outros ambientes sociais como o do campo religioso, que é aquele em que mais se vê pessoas com paletó naquela comunidade.

 

A atuação negligente do Galo frente à doença da Galinha e a sua irresponsabilidade quanto aos Pintinhos (que tiveram que dar socorro à progenitora) também foram alvo de ponderações. As crianças se colocaram no lugar dos Pintinhos por conta da associação com a fase da vida. E, reconheceram que a negligência do Galo perante a Galinha era muito preocupante. Sabemos que é uma violência. E, a não proteção aos Pintinhos foi ação rechaçada por todas as crianças que, nesse imaginário, tiveram que sair sozinhas em busca de socorro.

 

“Os significados de gênero – habilidades, identidades e modos de ser – são socialmente configurados, impressos no corpo de meninos e meninas de acordo com as expectativas de uma determinada sociedade” (Finco, 2010, p. 122). Concernente à relação mulher e homem com as/os profissionais conversamos sobre o que consideram mais importante entre cada uma das atividades laborais. Essa sondagem se justifica por haver um imaginário social e uma tendência nacional em pessoas do sexo feminino serem associadas a ofício de menor valor social se comparados com a de homens ou que até mesmo ocupando cargos similares ainda recebam menos, sendo assim, desprestigiadas no campo do trabalho (e sócio-histórico e cultural).

 

Após essa interação, em duplas, as crianças foram convidadas a identificar e falar sobre imagens de cartões que estavam virados. Esses continham imagens de mulheres desempenhando diferentes papéis como: árbitra e jogadora de futebol, pilota de avião, pedreira (da construção civil), entre outras. 

Conforme os delineamentos dados ao marcador social de gênero, diferentes manifestações, materiais e/ou simbólicas, conduzem às crianças a “comportamentos e potencialidades a fim de corresponder às expectativas de um modo singular e unívoco de masculinidade e de feminilidade em nossa sociedade” (Vianna e Finco, 2009, p. 273). Nessa etapa de identificação de imagens nos cartões, o debate foi bem fervoroso, pois, algumas crianças, principalmente do sexo masculino, não concordavam com que algumas atividades fossem desempenhadas por mulheres, sobretudo as ligadas ao mundo futebolístico. Essa não foi uma atividade pontual sobre o tema. Depois, dentre outras, as crianças tiveram acesso a relatos de jogadoras de futebol.

Estratégias adotadas

O planejamento e a execução da experiência privilegiaram princípios que fortalecessem a concepção de criança como sujeito histórico, de direitos, ativo, produtor de cultura e que precisam ocupar a centralidade das práticas pedagógicas. Entendo assim que, conforme apontado por Franco e Ferreira (2017, p. 267) trata-se de uma iniciativa de educação na/para a diversidade que compreende a criança como “participante na construção de uma sociedade mais humana e mais justa, na qual todos tenham voz enquanto sujeitos de direitos” e como “sujeito histórico e de direitos” (Brasil, 2009, p.19).

Como exposto na motivação, a escuta sensível alicerçou a abordagem, pois, prestigiou o repertório infantil, suas falas e posturas já que a atividade teve interações (orientadas e espontâneas) ocorridas naquele contexto como inspiração para a prática didática.

 

Para a viabilização da experiência foi levado em conta o respeito às expressões, sentimentos e posicionamentos das crianças como basilares no processo. Apesar de não utilizarmos formalmente termo de assentimento, consideramos que no decorrer da prática, as crianças deveriam estar confortáveis em expor os seus pensamentos por mais que estes não estivessem em concordância com a expectativa da atividade. Pois, a refutação ou a confirmação das premissas somente serão possíveis se elas forem conhecidas, refletidas, repensadas e ressignificadas.

Dificuldades encontradas

Acredito que as dificuldades encontradas estão muito associadas aos estigmas e posturas que afirmam e são reprodutoras de violências em várias dimensões e que, infelizmente, estruturam a nossa sociedade ao ponto de fazerem parte do cotidiano das crianças da Educação Infantil e, consequentemente, de forjar a sua identidade. Ou seja, apesar da relação com a família ao ponto de compartilharmos essas experiências com as/os responsáveis pelas crianças, um grande desafio é saber que aquelas interações, apesar de sua potência, ocupam um lugar, talvez, muito pequeno dentre as suas vivências.

Principais aprendizagens

Na experiência, as crianças e as pessoas adultas envolvidas aprenderam a escutar, a posicionar-se, a respeitar o posicionamento da/o outra/o. Aprenderam que os papéis e lugares que parecem que estão postos precisam ser questionados, que posicionamentos podem ser construções sociais, que a escola e a sociedade se cruzam. Aprendemos que mulheres e homens, meninas e meninos, crianças e adultos têm suas identidades e que as formas de violência que, porventura, fazem parte de sua vida, precisam ser refutadas e combatidas.

Referências bibliográficas

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BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP Nº 1, de 17 de junho de 2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília: Conselho Nacional de Educação/Ministério da Educação, 2004. Disponível em:<http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2018.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Parecer 20/2009. Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Relator: Raimundo Moacir Mendes Feitosa. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 9 dez. 2009.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018.

FINCO, Daniela. Educação Infantil, gênero e brincadeiras: das naturalidades às transgressões. 2004. UNICAMP GT: Educação da Criança de 0 a 6 anos / n.07 Agência Financiadora: FAPESP. Disponível em: http://www.anped.org.br/sites/default/files/gt07945int.pdf acesso em 02 de set. de 2019.

FINCO, Daniela. Brincadeiras, invenções e transgressões de gênero na educação infantil. Revista Múltiplas Leituras, Campinas, v. 3, n. 1, p. 119-134, jan. jun. 2010. Disponível em: https://www.google.com/search?client=firefox-b d&q=brincadeiras+inven%C3%A7%C3%B5es+e+transgress%C3%B5es+de+g%C3%AAnero+na+ educa%C3%A7%C3%A3o+infantil. Acesso em: 17 de fev. de 2019.
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NUNES, Mighian Danae Ferreira. Educação antirracista para crianças bem pequenas: ideias para começar um novo mundo. Zero-a-Seis, Florianópolis, v. 23, n. Especial, p. 58-76, jan./jan., 2021. Universidade Federal de Santa Catarina. pág. 58-76. ISSN 1980-4512. DOI: https://doi.org/10.5007/1980-4512.2021.e79002

VIANNA, Claudia.; FINCO, Daniela. Meninas e meninos na Educação Infantil: uma questão de gênero e poder. Cadernos Pagu, n. 33, p. 265–283, jul. 2009. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-83332009000200010 Acesso em: 17 de fev. de 2019.

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