DRAMAQUEER

Estado: Rio Grande do Sul (RS)

Etapa de Ensino: Ensino Fundamental II, Ensino Médio

Modalidade: Educação de Jovens e Adultos, Educação Regular

Disciplina: Artes

Formato: Presencial

Márcie Vieira é especialista em Metodologia do Ensino de Artes, na pós-graduação latu sensu pela Uninter (2019), tendo como pesquisa de TCC o projeto “Dramaqueer – da pedagogia queer para a dramaturgia teatral”. Graduada em Dança, no curso superior de tecnologia pela UCS (2016), tendo como pesquisa de TCC o projeto “Via-da Sacra, um diálogo entre a performatividade do gênero na performance art”. Atualmente está finalizando a licenciatura em Pedagogia, no curso superior pela Unifacvest (2020), tendo como pesquisa de TCC o projeto “Temas (Trans)versais e seus (Cis)temas”. Durante o período da pandemia em 2020, aprofundou seus estudos sobre Gênero, Sexualidade e Teoria Queer com profissionais de todo território brasileiro, graças aos cursos estarem sendo realizados de forma online\síncrona, estudando com as docentes trans Helena Vieira (Ceará), Sara Wagner York (Rio de Janeiro), Jaqueline Gomes de Jesus (Rio de Janeiro), Dodi Leal (Salvador), Dayanna dos Santos (Recife). Esta integrando o Núcleo de Performatividades Transversais, da ELT – Escola de Teatro Livre, em Santo André (SP), coordenado pela transativista Ave Terrena.

Objetivos


  • Desenvolver práticas metodológicas para o ensino-aprendizagem do teatro;

  • Construir uma dramaturgia teatral colaborativa, aplicando o pensamento da pedagogia queer (LOURO, 2004);

  • Valorizar diferentes identidades (gênero, orientação sexual, raça, etnia, situação econômica);

  • Construir uma prática docente não normativa e binária em relação a todas as identidades.

  • Planejar um ambiente em sala de aula onde situações de preconceito sejam observadas, questionadas e trabalhadas nas relações entre estudantes, professores e demais pessoas que compõem o ambiente escolar;

  • Valorizar as diferenças presentes em cada estudante, potencializando o sentimento de pertencimento de todas/es/os envolvidas/es/os.

Conteúdo

Fundamentação Teórica de Apoio a Docentes


Durante a observação de qualquer estrutura que construa a dramaturgia de uma peça teatral, é possível encontrar nela a força geradora de toda a ação. Tal força é marcada pela tensão de determinada ação, seja ela pelo encontro de forças ou pela oposição das mesmas, que geram determinado conflito.

Ao investigarmos formas de construir esse conflito, passamos a buscar formas de compreender ambas as forças que entram em choque: sejam por diferentes ideias, diferentes culturas ou diferentes formas de ver e de agir em sociedade.

Quando conseguimos compreender ambos os lados deste conflito, que criam o drama da dramaturgia teatral, estamos estimulando nossa capacidade de empatia para com aquilo ou aquele que é diferente da nossa vivência em sociedade.

Sendo assim, seria possível utilizar o ensino-aprendizagem de teatro, abordando a construção de dramaturgias colaborativas como ferramenta geradora de um espaço de igualdade e respeito em relação às diferenças no ambiente escolar? É possível olhar para os conflitos presentes no espaço de ensino, seja na estrutura individual de cada sujeito ou na estrutura cultural da sociedade, buscando formas de estimular o respeito às diversidades ali encontradas?

Essa proposta busca responder as questões acima, desenvolvendo práticas metodológicas para o ensino-aprendizado da linguagem teatral, utilizando do pensamento da pedagogia queer (LOURO, 2004). A pedagogia queer (LOURO, 2004) surge como proposta de um olhar para uma didática de valorização das diferenças de identidades, sejam elas de gênero, de orientação sexual, de raça, de etnia e/ou classe social. Cada uma dessas identidades surge de forma múltipla e variada no espaço escolar, porém não são todas suas manifestações que serão acolhidas, fazendo com que o espaço escolar seja excludente, silenciando e discriminando estudantes que não se encaixem em uma estrutura limitante que preconiza apenas sujeitos brancos, heterossexuais, classe média/alta e cisgêneros.

O que acontece com todos os outros que aí não se enquadram? Como é o processo de ensino-aprendizagem para os demais sujeitos que apresentam identidades que não são valorizadas e respeitadas? O que é feito com tudo que é diferente, dentro do espaço escolar?

Guacira Lopes Louro (2004), em seu livro Um Corpo Estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer, introduz o conceito da pedagogia queer:
"Uma pedagogia e um currículo queer se distinguiriam de programas multiculturais bem-intencionados, em que as diferenças (de gênero, sexuais e étnicas) são toleradas ou são apresentadas como curiosidades exóticas." (LOURO, 2004, p. 48)

É justamente esse afastamento de experiências que muitas vezes permitem que determinados temas sejam apenas tratado com uma curiosidade superficial, tornando-os exóticos, e sim a aproximação de uma investigação incessante, dando prioridade para o questionamento, buscando a construção sociocultural que torna determinado aspecto diferente, dentro de uma cultura específica, assim visando o conhecimento, um ambiente de respeito e a vivência cotidiana para com a diversidade, que são os objetivos do estudo da pedagogia queer (LOURO, 2004).

Historicamente, a expressão queer, que no inglês significa “anormal”, “estranho”, “bicha” ou “veado” passou a ser apropriada pela comunidade gay, lésbica e feminista destes movimentos sociais nos Estados Unidos, no período pós-1960, que buscavam uma nova significação positiva e alternativa deste termo, muito utilizado de forma pejorativa. Assim, o termo queer também começou a ser pautado no universo acadêmico, como extensão para os estudos da sexualidade e de gênero.

Sobre este tema, vale também retomar a filósofa norte-americana Judith Butler (2003):
"O fato de o corpo gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele não tem status ontológico separado dos vários atos que constituem a realidade. [...]. Em outras palavras, os atos e gestos, os desejos articulados e postos em ato criam a ilusão de um núcleo interno e organizador do gênero, ilusão mantida discursivamente com o propósito de regular a sexualidade nos termos da estrutura obrigatória da heterossexualidade reprodutora." (BUTLER, 2003, p. 194-195)

Essa performatividade do gênero, um dos principais conceitos que permeiam a teoria queer (BUTLER, 2003), se dá através de um conjunto de ações e gestos constantemente repetidos, dentro de um padrão de normas inscritas em nossa sociedade, para problematizar a questão da naturalização do gênero. Segundo Butler, o gênero não é algo natural e sim uma construção cultural e, sendo assim, pode-se dissolver a dicotomia entre sexo e gênero. Portanto, a teoria queer de Butler (2003) busca este espaço para a criação de um diálogo que permita às diversas construções de identidades, destacando as questões de gênero, encontrarem um lugar de visibilidade e proteção, para uma sociedade mais inclusiva e tolerante com os corpos diferentes, considerados abjetos.

A relação entre a teoria queer, de Butler (2003), e a pedagogia queer, segundo apontamentos de Louro (2004), estará justamente no olhar para com os corpos considerados abjetos. Como exemplifica o historiador Fernando José Benetti (2013) ao dizer que “para Butler, a abjeção se relaciona com todo tipo de corpos cujas vidas não são consideradas „vidas‟ e cuja materialidade é entendida como „não importante‟” (BENETTI, 2013, p. 22).

A partir dessa observação sobre o conceito de abjeção, é importante ressaltar que a pedagogia queer ou um currículo queer (Louro, 2004), coloca seu olhar para todos os sujeitos excluídos e marginalizados e e não somente para aqueles que se reconhecem como sujeitos queer.
"Uma tal pedagogia sugere o questionamento, a desnaturalização e a incerteza como estratégias férteis e criativas para pensar qualquer dimensão da existência. A dúvida deixa de ser desconfortável e nociva para se tornar estimulante e produtiva." (LOURO, 2004, p. 52)

Ao pensar em como a dúvida e o questionamento podem permear a estrutura do ensino-aprendizagem do teatro, auxiliando a noção de pertencimento e o olhar sobre as diferenças, representando uma micro-sociedade, é necessário aproveitar todos os ruídos de comunicação que poderão se apresentar durante as aulas: desde situações cotidianas de intolerâncias e complicações pessoais entre: um estudante e outro, um estudante e o professor ou um estudante e o conteúdo ensinado, até mesmo a própria configuração da estrutura física da sala de aula. Permitindo, assim, que essas diferenças sejam evidenciadas e observadas pelo grupo, para que possamos exercitar a construção de sujeitos com um pensamento crítico e de respeito perante as diferenças.

Em pesquisa realizada envolvendo o ensino da arte sob a perspectiva da teoria queer para o campo da educação, Sandramor do Amaral Ferreira (2017) aponta que cada vez mais os estudantes, dentro da disciplina de arte, apresentam grande dificuldade de dialogar com qualquer elemento que seja codificado de forma diferente do culturalmente tradicional, afirmando que: "Desse modo, foi possível constatar que essa experiência indicou um problema na formação dos alunos que em sua maioria se sentem incapacitados e desmobilizados a trabalhar com os diferentes códigos culturais nas instituições de ensino, com isso percebemos que há uma tendência que reforça as estruturas de poder pautados em esquemas binários, através de padrões culturais estabelecidos pela sociedade, família, mídia, entre outros dispositivos sociais." (FERREIRA, 2017, p. 725-726)

Assim, tanto para Ferreira (2017), quanto para a pedagogia queer, segundo Louro (2004), torna-se necessário reflexionar esse lugar do ensino-aprendizagem como um potente espaço que privilegia a diversidade cultural. Para Ferreira (2017), o “ensino de arte pode contribuir de maneira significativa para problematizar as questões que envolvem gênero, sexualidade, raça, etnia, classe e suas relações de poder” (FERREIRA, 2017, p. 725), evidenciados nos espaços voltados para o ensino.

Analisando as contribuições que a pedagogia queer (LOURO, 2004) oferece para o campo do ensino-aprendizagem do teatro, identificam-se formas de construir uma prática docente não normativa e binária em relação às identidades de gênero, orientação sexual, raça, etnia e classe social. Para tal, é necessária essa investigação das formas de relacionar o pensamento da pedagogia queer, conforme propõe Louro (2004), com a construção de uma dramaturgia teatral colaborativa, planejando um ambiente em sala de aula onde situações de preconceito sejam observadas, questionadas e trabalhadas nas relações entre estudantes, professores e demais profissionais que compõem o ambiente escolar.

Propondo, assim, uma metodologia de ensino-aprendizagem dentro da disciplina de arte, na linguagem teatral, que valorize as diferenças presentes em cada estudante e corpo docente, permitindo que esses elementos estejam presentes na construção da dramaturgia teatral, potencializando o sentimento de pertencimento de todos os envolvidos no fazer teatral.

A aplicação do pensamento estruturado por Louro (2004) para a pedagogia queer na construção de uma dramaturgia teatral pode potencializar a materialização de cada aspecto trabalhado do decorrer das aulas, desde a escolha dos temas que serão abordados na peça teatral, a construção dos diferentes personagens e a escolha do elenco, desenvolvendo uma narrativa que evita poucos personagens protagonistas e, portanto, de poucos membros do elenco protagonizando o processo de criação.

Priorizando, dessa forma, um pensamento de uma construção plural e horizontal de todo processo que envolve a construção de uma dramaturgia teatral. Dessa forma, permitindo que todos possam se sentir peça fundamental, indispensável e insubstituível dessa engrenagem teatral, refletindo a sociedade que buscamos construir.

Para entender como é possível desenvolver uma construção de dramaturgia teatral de forma colaborativa entre os estudantes da linguagem teatral, dentro do componente curricular arte, torna-se necessário a compreensão do que é uma dramaturgia teatral e quais são seus elementos.

Pensando em uma alfabetização da linguagem teatral, introduzindo seus elementos e signos, o projeto do Ministério da Educação intitulado Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, apresenta a seguinte citação no caderno sobre a arte no ciclo da alfabetização:
"Para tanto, há uma regra básica da qual não podemos nos afastar: para que haja teatro é necessário que três elementos primordiais estejam presentes, seja na atividade artística teatral fora da escola ou mesmo dentro dela. São eles: o Ator, o Texto e o Público." (SILVA, 2015, p. 67)

Sobre esses três principais elementos constituintes do fazer teatral, observa-se a pluralidade de possibilidades de identificação sobre o texto, dentro do teatro. O texto será a estrutura onde encontraremos a ação de toda dramaturgia no teatro. Segundo Dória (2012), no livro Linguagem Teatral, ao falarmos sobre teatro, podemos observar dois aspectos diferentes: a prática teatral, sinônimo do espetáculo enquanto produto; e o texto dramático. Sobre este segundo, Dória (2012) afirma:
"O texto dramático se caracteriza por estar escrito em diálogos, mas sobretudo, por ser um texto para ser encenado: o diálogo existe para ser representado. A presença de um público como receptor da representação cria a necessidade de outros elementos – visuais, afetivos, psicológicos, expressivos – imprescindíveis para sua concretização como teatro." (DÓRIA, 2012, p. 104)

De acordo com Dória (2012), no texto dramático contém: o texto espetacular, com as anotações do autor, também conhecidas como rubricas; e o texto literário, com os diálogos. Mas, para aumentarmos a compreensão do que pode ser identificado como dramaturgia, é justamente a observação sobre os elementos visuais e expressivos do teatro que nos permitem essa leitura mais ampla, assim, sendo lidos como elementos constituintes da dramaturgia teatral.

Corroborando com a leitura de que os elementos visuais e expressivos também se inscrevem na dramaturgia, o livro Arte Por Toda Parte, organizado por Solange dos Santos Utuari Ferrari (2016), distribuído pelo Ministério da Educação, referente ao componente curricular de arte para o ensino médio, apresenta o seguinte conteúdo referente a dramaturgia:
"Na linguagem teatral, independente do significado da palavra dita, é o conjunto de sua pronúncia, do volume e da entonação em determinado contexto que influenciará os significados dos diálogos. O corpo, por meio da exploração da voz e do gesto, é como a página de um livro (ambos como suportes), em que as palavras são escritas e reescritas pelos atores e espectadores, pelo sentido atribuído e pela expressão vivida. As palavras podem não existir oralmente, mas podem estar contidas nos gestos." (FERRARI, 2016, p. 241)

Ferrari (2016) auxilia com essa dilatação do significado do termo dramaturgia, onde a ação, o gesto e o silêncio também são compreendidos como seus
pertencentes. Conforme aponta Silva (2015), todo elemento presente na encenação pertence à dramaturgia: “o texto; a expressão corporal; o espaço cênico; o cenário; o figurino; os adereços; a maquiagem; a sonoplastia e a iluminação” (SILVA, 2015, p. 67), considerando-os signos da linguagem teatral. Todo signo carrega em si significados que precisam ser traduzidos pelo espectador, no momento da encenação. Outro elemento importante para a construção de uma dramaturgia teatral é a presença da dialética. Para a atriz e professora norte-americana, Stella Adler (2016), em seu livro Técnica da Representação Teatral, ela comenta:
"O teatro moderno é um teatro de ideias, um teatro cuja proposta é fazer a plateia pensar e aprender sobre as questões mais vastas da vida. Se no palco duas pessoas simplesmente concordam, não há peça e nada mais a dizer. O teatro moderno esta baseado na nossa habilidade de considerar dois pontos de vista. Em qualquer situação dramática, um personagem pode estar a favor de uma ideia sob discussão e um outro pode estar contra." (ADLER, 2016, p. 159)

O elemento dialético muitas vezes será responsável pela diferenciação entre o que é teatro e o que é a dança, duas linguagens artísticas que muitas vezes se aproximam e se misturam. A dialética ou a presença de conflito, num sentido bastante amplo, pode tornar-se o elemento que irá demarcar o território da linguagem teatral. Adler (2016) ainda especifica um vocabulário de ações, onde a mesma cataloga diversas ações, tais como: debater; argumentar; atacar; revelar; denunciar; desafiar; entre outras ações pertencentes ao trabalho do ator, diferenciando-as umas das outras, reforçando a necessidade desse olhar específico para o conflito, pertencente à dramaturgia teatral. Conflito, este, que nos faz retornar para a questão primordial desta pesquisa, que é a utilização dos conflitos já existentes no próprio ambiente escolar contemporâneo para a construção colaborativa de uma dramaturgia teatral.

É necessário repensar toda estrutura do ambiente escolar e todas as formas de poder e controle, nela contida, caso queiramos a construção de um ambiente acolhedor durante o processo de ensino-aprendizagem para todos e todas, conforme aponta o historiador Benetti (2013), ao falar que “a Teoria Queer tem como objetivo refletir sobre o sujeito abjeto, sobre [...] a desconstrução das naturalizações culturais, e a reflexão sobre xs silenciadxs pela história.” (BENETTI, 2013, p. 25).

Quando compreendemos a importância de reflexionarmos sobre o motivo de determinados grupos serem silenciados, durante o percurso da história da humanidade, compreendemos a importância de ouvirmos essas vozes, possibilitando que a linguagem teatral, dentro do componente curricular arte, vocalize-os, para construir um ambiente questionador sobre o motivo de estruturas hegemônicas ainda serem tão vigentes em nossa sociedade contemporânea.

Metodologia

A metodologia escolhida para a criação de uma dramaturgia colaborativa deu-se por essa relação entre a teoria queer (BUTLER, 2003) e a pedagogia queer (LOURO, 2004), sendo possível a identificação de um forte diálogo com a metodologia do devised theatre. Na dissertação de mestrado da atriz Stefanie Liz Polidoro (2016), ela constrói sua pesquisa dentro de um teatro feminista, buscando no devised theatre “desenvolver no trabalho uma metodologia para a criação de idéias, figurinos, cenário, trilha sonora, objetos de cena, sonoplastia e iluminação” (POLIDORO, 2016, p. 24), resultando na construção de uma dramaturgia autoral. Segundo Alisson Oddey (1994):
"O Devised Theatre pode começar do nada, Ele é determinado e definido por um grupo de pessoas que estabelece um quadro inicial ou estrutura a ser explorada e experimentada com idéias, imagens, conceitos, temas ou estímulos específicos que podem incluir música, texto, objetos, quadros ou movimento."" (Oddey, 1994, p. 01)
Sendo assim, o devised theatre permite essa horizontalidade no processo de criação, entre todos os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem teatral, na relação dos estudantes e dos professores, onde o processo passa a ser tão importante quanto o resultado da obra artística a ser construída. Conforme Polidoro (2016):
""O termo devised theatre não possui uma tradução exata, sendo utilizada a forma de denominar tal método como “teatro feito” ou “teatro colaborativo” – embora seja possível a formulação de materiais artísticos individuais com este método. Ainda segundo Mesquita (2012), esta forma de trabalho foi utilizada por grupos de teatro feministas, desde mais ou menos a década de 1970, que por escassez de textos que abordassem suas demandas de lutase ativismos, começaram a pesquisar maneiras de criação cênica e escritas próprias."" (POLIDORO, 2016, p. 24)
A relação do devised theatre com o movimento feminista, onde as artistas construíam suas dramaturgias, passa a ser uma relação semelhante que a pedagogia queer (LOURO, 2004) permite para com as identidades de gênero, orientação sexual, etnia e classe social de criarem suas próprias narrativas. No devised theatre o aspecto colaborativo ganha foco e passa a ser um dos norteadores dessa metodologia. O desafio que se faz presente, nesse caso, é como permitir que um trabalho colaborativo seja construído, em um ambiente tão heterogêneo como a sala de aula? A própria pedagogia queer (LOURO, 2004) não oferece uma metodologia de trabalho, apenas nos convoca a provocar e ampliar nossos limites e horizontes em relação às situações problemas em sala de aula.
Assim, utilizando minha experiência como facilitadora em cursos livres de teatro, da minha formação acadêmica em Licenciatura em Pedagogia, Tecnologia da Dança e Especialização em Metodologias do Ensino de Arte, estruturo uma metodologia para a criação de uma dramaturgia colaborativa, utilizando o pensamento da pedagogia queer (LOURO, 2004). A proposta inicial é criação de um plano de aula, mapeando cada atividade a ser realizada com os estudantes, servindo também como um cronograma. A sugestão seria iniciar com uma votação, estimulando o exercício democrático, sobre a temática a ser desenvolvida, buscando identificar o que a turma sente-se mais motivada a investigar, por exemplo: a estrutura patriarcal de nossa cultura ocidental; as dificuldades encontradas por pessoas transgêneras em inserirem-se na sociedade; o racismo institucional presente nas estruturas do mercado de trabalho contemporâneo; a desigualdade social causada pelo desequilíbrio causado pelo capitalismo; entre outras possibilidades de temas. O que irá definir a profundidade que o tema investigado receberá serão as próprias pesquisas que os estudantes irão realizar, referentes aos temas abordados. Buscar não diminuir o potencial crítico de determinados estudantes, apenas pela idade ou ano de determinada turma. Sejamos nós, professores, também estimulados a dialogar de forma mais horizontal com todos estudantes.
Após a definição do tema pela turma, de forma democrática, iniciam os debates onde os estudantes apresentam suas visões sobre o tema escolhido. Os alunos podem relatar, aqui, suas experiências individuais para com o tema,
permitindo que as múltiplas formas de se relacionar com o tema sejam respeitadas. Esse exercício pode permitir que alguns comportamentos opressores sejam evidenciados e defendidos pelos alunos, estimulando que o professor exerça sua função de orientador, esclarecendo que todos os pensamentos serão escutados, mais que nenhum comportamento preconceituoso será acolhido durante o processo, tornando-se vital o estímulo ao respeito entre as diferenças.
Em um momento seguinte, os alunos realizarão pesquisas relacionando o tema escolhido com as diferentes manifestações artísticas. Explorar diferentes artistas que já trabalharam com o tema em suas criações, sejam elas na linguagem da música, da dança, das artes visuais ou do próprio teatro. Estimulando, assim, os referenciais artísticos da turma, observando como cada artista criou, buscando informações sobre o processo de criação, das obras escolhidas.
Na sequência, sugiro a separação da turma em pequenos grupos, onde cada grupo será convocado a criar pequenas cenas improvisadas, envolvendo a temática escolhida, permitindo que diferentes estéticas surjam, também valorizando a diversidade estética. Realizando registros dos materiais criados, seja em anotações particulares ou até mesmo em registros de vídeo. Essa etapa irá requerer mais ou menos tempo no cronograma, de acordo com a experiência e o grau de maturidade da turma para com a criação de cenas através de improvisações. Também é possível repetir essa etapa, modificando os pequenos grupos, caso necessário. Considerando que, quanto mais material for criado e improvisado, maior será o acervo de possibilidades da turma.
O próximo passo será a organização destes materiais. Caso a turma tenha criado, durante as improvisações, universos muito distintos, passa a ser importante que o professor observe essa multiplicidade e incorpore ela no roteiro de ação. A própria turma pode participar dessa etapa, onde o professor irá compartilhar o registro dos materiais criados. Novamente, o aspecto democrático volta a permear a estrutura do processo colaborativo, onde todos irão escolher os materiais que mais resultarão possibilidades de serem explorados e re-estruturados.
Com a criação de um roteiro de ação, contendo as idéias criadas e selecionadas pelos estudantes, todos irão retornar para o processo de improvisação, porém todo o grupo trabalhando junto, iniciando o processo de seleção e
composição de personagens que pertencem a essa dramaturgia. Aqui será comum a definição de um (a) protagonista para a história criada, porém a história que a turma está criando pode ter um protagonista, porém a forma de contar essa história é que precisará ser alterada, para excluir que apenas um ou poucos estudantes sejam protagonistas dessa criação colaborativa. Por exemplo: caso a dramaturgia gire em torno de uma família, em que os pais estão se separando, é importante dar voz para os coadjuvantes que oferecem suporte para essa história ser contada. Assim, a história pode ter como protagonistas: a mãe, o pai e o filho, personagens estes que estão no centro do conflito, mas serão os personagens coadjuvantes do tio, da avó, do amigo do filho, do colega de trabalho da mãe, que irão compartilhar suas bagagens e dar suporte aos protagonistas da história. Dessa forma, a história pode possuir protagonistas, mas no elenco e na turma não terão nenhum protagonista, pois todos serão igualmente importantes para a dramaturgia.
Estabelecendo os personagens e quais seus objetivos na história criada, é possível iniciar o processo de composição de personagens com os estudantes, retornando para o processo de improvisação, dessa vez com todos atuando dentro do mesmo universo criado. Novamente o professor irá criar novos registros e novas anotações. Conforme a forma de trabalho do (a) professor (a), durante essa própria etapa, ele (a) poderá oferecer interferências no que diz respeito a direção de cena e estruturar, juntamente com os estudantes, o material criado. Durante esse processo, pode ser realizado um registro fiel do que os estudantes estão criando, transcrevendo fala por fala improvisada, criando um registro em texto escrito, organizando os diálogos e incluindo as rubricas necessárias.
Após esse processo, poderá ser realizado uma separação de quais estudantes irão cuidar dos elementos da cenografia, do figurino, da trilha sonora, da iluminação e demais demandas que surgirem. Convocando os estudantes a contribuírem com estes elementos, passamos a valorizar não somente o estudante que se interessa pela parte da interpretação e atuação, mas também todas as funções que são necessárias no fazer teatral, compreendendo-as como pertencentes da dramaturgia, pois todos esses elementos narram alguma coisa para o espectador. Esse aspecto relaciona-se com as diversas potencialidades dos estudantes, conforme a Teoria das Inteligências Múltiplas, de Howard Gardner (1997), segundo Ana Maria Lakomy:
""Interessado pelas relações entre inteligência, criatividade, talento e competência no campo da psicologia do desenvolvimento humano, Gardner (1997) realizou pesquisas sobre a inteligência as quais nos mostram que: até agora existem pelo menos oito inteligências: lingüística, lógico-matemática, musical, espacial, corporal-cinestésica, interpessoal, intrapessoal e naturalista."" (LAKOMY, 2014, p.55)
Com isso, o estudante é estimulado de forma holística, desde a inteligência linguística (debates, improvisações, criação do roteiro e registro em texto escrito), lógico-matemática (demandas de produção e cronograma), musical (criação da trilha sonora), espacial (criação do cenário e produção de palco), corporal-cinestésica (trabalho de atuação em cena), interpessoal (a temática das diferenças nas identidades estimula a empatia) e intrapessoal (a auto-reflexão durante o processo dilata essa inteligência) e naturalista (visando o valorização e conservação da natureza e do uso de materiais recicláveis e ecológicos durante o todo processo).

 

Etapas


Momento 1


Apresentação do projeto e votação da temática.

 

Momento 2


Debates sobre diferentes perspectivas a cerca da temática escolhida.

 

Momento 3


Pesquisa de referenciais artísticos que trabalham com a temática.

 

Momento 4


Separação em grupos para exercícios de improvisações teatrais, relacionadas à temática.

 

Momento 5


Novas improvisações, para levantamento de materiais criativos e registro das improvisações.

 

Momento 6


Assistir os registros das improvisações, dialogando sobre as criações e selecionando cenas mais produtivas.

 

Momento 7


Criação de roteiro de ação de toda estrutura dramatúrgica a ser estruturada e ensaiada, definindo as personas\personagens.

 

Momento 8


Trabalho de composição e criação das personas\personagens.

 

Momento 9


Ensaio do roteiro de ação, com as personas\personagens definidas, definindo toda ação dramática.

 

Momento 10


Escrita de toda dramaturgia em um texto digitado para registro.

 

Momento 11


Dialogo sobre aspectos técnicos do teatro: figurino, cenário, iluminação, sonoplastia, e a definição da equipe técnica.

 

Momento 12


Ensaio e repetições da peça, para fluência do material.

 

Momento 13


Definições e confecções finais sobre aspectos técnicos.

 

Momento 14


Ensaio geral, como todos materiais definidos, com alguns convidados, para trabalhar questões de nervosismo e ansiedade.

 

Momento 15


Apresentação da peça.

 

Momento 16


Avaliações finais sobre todo processo do projeto.

Recursos Necessários


  • Espaço de sala de aula ou sala de ensaio

  • Aparelho de som para estimular as improvisações

  • Celular com câmera fotográfica e de gravação para registro das improvisações

  • Computador para apresentação de vídeos e imagens sobre as pesquisas de referenciais artísticos.

  • Em relação a possível cenário e figurino, isso ficará sujeito ao processo de criação e o material disponível entre estudantes e professor.

Duração Prevista

4 meses, com um 1 encontro semanal com duração de uma 1 hora.

Processo Avaliativo

Por se tratar de um processo de criação colaborativo, isso pode dificultar o processo de avaliação do ensino-aprendizagem de estudantes, por envolver muito o aspecto subjetivo da criação na arte. Porém, torna-se importante e necessário, principalmente se esse processo estiver sendo realizado em uma instituição de ensino formal.

Como instrumentos de avaliação, podem ser utilizados as seguintes intervenções, segundo Ivo José Both (BOTH, 2012, p. 170-172):

  • seminário – exposição oral de tema previamente conhecido;

  • trabalho em grupo – atividades de natureza diversa (escrita, oral, gráfica, corporal) realizadas em grupo(s);

  • debate – em que os alunos expõem seus pontos de vista a respeito de assunto normalmente polêmico;

  • relatório individual – relatório elaborado depois de atividades práticas ou projetos temáticos implementados;

  • autoavaliação – análise oral ou por escrito, em formato livre, que o aluno faz do próprio processo de aprendizagem

  • observação – análise do desempenho do aluno em fatos do cotidiano escolar ou em situações planejadas.


Utilizando esses instrumentos, a/e/o estudante deixa de ser avaliada/e/o por sua performance durante as improvisações ou pela qualidade em cena, mas sim por  seu envolvimento durante o processo de criação. Potencializando, nesta metodologia, a qualificação do processo de criação, que será a âncora de todo o processo.

Observações

Torna-se um desafio muito grande trabalhar com as ideias da pedagogia queer (LOURO, 2004), principalmente pelo fato da mesma não nos oferecer uma metodologia estruturada sobre como olhar para os problemas que possam surgir durante o ensino-aprendizagem de qualquer disciplina. O fato de estar desenvolvendo uma metodologia dentro do universo da arte, estimula o professor a pensar e agir como um artista, em sala de aula, criando alternativas diferentes para a realização das aulas. Sua performance perante os estudantes não pode ser tradicional, por solicitar dele um domínio muito amplo de assuntos muito complexos. Durante a realização deste projeto, observou-se a escassez de material didático que relacione a pedagogia queer (LOURO, 2004) com aspectos da criação colaborativa de dramaturgia teatral. No ensino-aprendizagem do teatro, torna-se muito comum a utilização de dramaturgias prontas para a realização de montagens com os estudantes e a rara estimulação da criação autoral, seja ela individual ou coletiva. Isso faz com que as apresentações dos estudantes sejam relacionadas com temáticas que autores de outras épocas ou localidades definiram e estruturaram, afastando a dramaturgia teatral do cenário social e cultural contemporâneo, pertencente ao estudante. A busca por essa metodologia que utilize o pensamento da pedagogia queer (LOURO, 2004), para a criação de dramaturgias teatrais colaborativas não reside na necessidade de criar algo autoral como forma de estimular a vaidade artística, mas sim na necessidade de tratarmos assuntos reais e contemporâneos, que fazem parte da realidade e do cotidiano de muitos estudantes, despertando questionamentos sobre as identidades de gênero, orientação sexual, raça, etnia e de classe social. Após a descrição das metodologia do processo de criação colaborativo da dramaturgia (definição democrática do tema, debates, pesquisas de referencial artístico, criações e improvisações, seleção de material, definição de personagens e estruturações finais da dramaturgia), surgem novos questionamentos: o quanto os estudantes estarão envolvidos com o tema, dominando-o, compreendendo-o, apresentando pensamento crítico sobre o assunto? E ao retornar para a sociedade, estarão eles mais preparados para conviver de forma igualitária com respeito à diversidade?

Referências Bibliográficas

ADLER, STELLA. Técnica da representação teatral. Tradução de Marcelo Mello. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

BENETTI, FERNANDO JOSÉ. A bicha louca está fervendo: uma reflexão sobre a emergência da teoria queer no Brasil (1080-2013). 2013. 127f. Trabalho de conclusão de curso (Graduação) – Curso de História, Centro de Ciências Humanas da Educação, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2013.

BOTH, IVO JOSÉ. Avaliação: “voz da consciência” da aprendizagem. Curitiba: InterSaberes, 2012.

BUTLER, JUDITH. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

DÓRIA, Lílian Maria Fleury Teixeira. Linguagem do Teatro. Curitiba: InterSaberes, 2012.
FERRARI, SOLANGE DOS SANTOS UTUARI. Arte por toda parte. São Paulo: FTD, 2016.

FERREIRA, SANDRAMOR DO AMARAL. Revista de Pesquisa Interdisciplinar, Cajazeiras, n. 2, suplementar, p. 723-726, set. de 2017.

LAMONSKY, ANA MARIA. Teorias cognitivas da aprendizagem. Curitiba: InterSaberes, 2014.

LOURO, GUACIRA LOPES. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Pacto nacional pela alfabetização na idade certa – a arte no ciclo da alfabetização, caderno 06. Brasília: MEC, SEB, 2015.

ODDEY, ALLISON. Devising theatre: a practical and theoretical handbook. London: Routledge, 1994.

POLIDORO, STEFANIE LIZ. Pílula da visibilidade: Maria Scariot presente! O processo criativo e feminista de Due Latti della Campana. 2016. 249f. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Programa de Pós-Graduação em Teatro, Florianópolis, 2016.

DOWNLOAD