Conhecendo uma astronauta negra

Estado: São Paulo (SP)

Etapa de Ensino: Educação Infantil - Pré-Escola

Modalidade: Educação Regular

Disciplina:

Formato: Presencial

Doutoranda em Educação pela Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Mestra em Filosofia pela Escola de Artes, Ciência e Humanidades EACH/USP. Possui licenciatura em Ciências da Natureza pela EACH/USP e Pedagogia pela UNINOVE. Atuou como professora de Educação Básica de 2007 a 2018, e atualmente trabalha com formação continuada de professores na Secretaria Municipal de Educação de Guarulhos, SP, além de ser monitora de um grupo de bolsistas do Pibid.

Professor Adjunto do Departamento de Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), atua no curso de Pedagogia em disciplinas relacionadas ao Ensino de Ciências e no Programa de Residência Pedagógica. Orienta nos programas de pós-graduação em Educação da Unifesp e em Estudos Culturais da USP. Doutor em Educação para a Ciência pela Faculdade de Ciências pela Unesp Bauru (2010). Mestre em Ensino de Ciências (Modalidade Física) pelo programa de Pós-graduação Interunidades FEUSP-IFUSP (2003). Licenciado em Física pela USP (1998) e em Ciências da Natureza também pela USP (2009). É líder do Grupo de Pesquisa interinstitucional Interfaces - Núcleo Temático de Estudos e Recursos sobre a Fantasia nas Artes, Ciências, Educação e Sociedade. Atua na área de Ensino de Ciências, principalmente nos seguintes temas: educação científica em espaços não-formais, formação de professores e mediadores, atividades e recursos didáticos para divulgação científica e ensino de ciências e teoria sócio histórica com aplicações no ensino de ciências e na difusão científica.

Como foi a experiência

A fim de problematizar a predominância de homens brancos nos produtos culturais voltados ao público adulto e infantil ao representar algumas áreas, como a história da exploração espacial, foram realizadas três intervenções com esta temática. Partindo da apresentação de fantoche inspirada na primeira astronauta negra, seguimos com a confecção de um protótipo de foguete com materiais de baixo custo, finalizando com um momento para brincadeira com o recurso confeccionado.

Atores envolvidos 

A sequência didática relatada foi desenvolvida no ano de 2019 com uma turma de Educação Infantil, com crianças entre 5 e 6 anos, de uma escola pública localizada na região periférica de Guarulhos/SP. A proposta foi elaborada em parceria com as graduandas do curso de Pedagogia da Unifesp, enquanto bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) e pela respectiva professora da turma de crianças. Esta proposta ocorreu no contexto do programa de extensão universitária denominado “Banca da Ciência”, cujo objetivo é popularizar a educação científica com cunho sociopolítico em espaços formais e não-formais de educação para públicos de diferentes idades. (PIASSI, 2013).

Relato da experiência 

O acesso à ciência e a tecnologia é uma questão de cidadania (ROSA, 2015). Nesta perspectiva, o interesse em desenvolver uma sequência didática com a temática da exploração espacial na educação infantil surgiu do crescente debate acerca da sub-representatividade de meninas e mulheres negras nas Ciência e Tecnologia (C&T), acrescido do fato de, em geral, produtos culturais abordarem temas científicos com protagonistas masculinos e brancos (REZNIK, MASSARANI e MOREIRA, 2019). 

Mesmo com aumento na participação feminina na ciência, as ciências exatas e a tecnologia carecem de políticas afirmativas que possibilitem a inserção e a permanência de mulheres nesses campos (SCHIEBINGER, 2008). Este cenário torna-se ainda mais desigual ao observarmos a participação de mulheres negras, uma vez que estas têm “a particularidade de viver experiências resultantes da intersecção de gênero e raça, ou seja, de enfrentar uma combinação de desafios por ser mulher e por ser negra”. (ROSA, 2015, p. 4). 

Ao buscar compreender tal fenômeno, pesquisas têm sinalizado para a necessidade de se observar as práticas sociais realizadas ainda na infância, enquanto uma das possíveis causas e possibilidade de atuação para a superação dos estereótipos socialmente estabelecidos acerca da representação feminina nas áreas STEM (BIAN et al, 2017; BONDER, 2017; UNESCO, 2018). Assim, essa sequência buscou ampliar as experiências das crianças, permitindo com que meninas e meninos possam criar, inventar, descobrir e reconstruir histórias e brincadeiras que abordam ciência e tecnologia a partir de práticas pedagógicas comprometidas com a equidade nas relações de gênero e de raça. Compreende-se o papel das crianças enquanto cidadãos que participam, influenciam e são influenciadas pela sociedade, reconhecendo a infância enquanto uma categoria social que ocupa diferentes espaços e tempos históricos, logo, é atravessada pelos marcadores sociais de gênero, classe, raça, entre outros. (ABRAMOWICZ e OLIVEIRA, 2010). 

As atividades relatadas foram realizadas em uma escola de Educação Infantil localizada na periferia do município de Guarulhos/SP. O planejamento foi realizado ao longo de alguns encontros entre bolsistas e voluntárias do Pibid e a professora da turma, com duração de uma hora cada, destinados a refletir sobre os temas de gênero e os conceitos científicos, além de confeccionar os materiais necessários. A estrutura da proposta contou com três etapas complementares realizadas ao longo de semanas consecutivas. A história da primeira astronauta afro-americana, Mae Carol Jemison, descrita no livro “Mulheres Cientistas” (IGNOTOFSKY, 2017), serviu de inspiração e fio condutor para o desenvolvimento das atividades. Cada etapa da sequência contou com um momento para o diálogo sobre o tema utilizando o fantoche, seguida de uma atividade prática e o momento para brincar com as produções. A cada dia, as crianças foram convidadas pelo fantoche a relembrar a história da Mae, utilizando de diferentes estratégias metodológicas, e experimentar uma atividade prática e lúdica relacionada à viagem espacial. 

O primeiro dia contou com a apresentação da história da Mae com o fantoche, seguido da confecção do protótipo do foguete, o desenho do que levariam para o espaço e a brincadeira, lançando os foguetes. No segundo dia, as crianças foram convidadas pela fantoche a relembrar a história da astronauta, por meio de imagens, e em seguida imaginar uma viagem espacial na caixa de papelão, além de desenhar o que levariam para essa jornada. O último dia consistiu em confeccionar um foguete de garrafa PET em pequenos grupos, e após o lançamento desenhar em uma cartolina o que cada grupo encontrou na viagem, enquanto a Mae passava comentando as produções. 

As reflexões acerca das relações de gênero foram suscitadas a partir de questões elaboradas pelas equipe e pelas próprias crianças. Algumas perguntas norteadoras tiveram por objetivo verificar se as crianças limitariam a temática aos meninos, entretanto, acreditamos que a representação feminina contribuiu para isso não ocorrer. No processo de seleção das imagens para recontar a história da Mae, as crianças não identificaram a ilustração de astronauta negra como sendo a Mae por conta do tamanho do cabelo, o qual, por ser curto, foi interpretado como sendo um homem astronauta. Como mediação, foi perguntado às crianças se elas conheciam mulheres com cabelos curtos, incluindo pessoas da própria escola ou família, possibilitando com que eles percebessem que uma característica física não define se alguém é mulher ou homem. Ao final da discussão, as crianças passaram a apontar outros elementos entre a imagem e o fantoche, como o macacão laranja e o símbolo azul da roupa, confirmando que realmente era a Mae. 

As reflexões de gênero também surgiram no momento das atividades de produção e brincadeira, sendo importante garantir que meninas e meninos participassem igualmente das etapas, estimulando a participação de todos igualmente. A turma tinha 36 crianças entre 5 e 6 anos, sendo a maioria meninos. Em alguns momentos de trabalho em grupos, como a decoração e o lançamento do foguete de garrafa PET, foi possível observar que alguns meninos não queriam deixar as meninas do grupo participarem da decoração e do manuseio da bomba de ar, dizendo que demoravam muito para concluir a proposta. A mediação da professora e das monitoras foi essencial para ressaltar a necessidade de respeitar a participação de cada membro do grupo. Ao longo do diálogo, foi ressaltado que, assim como a Mae, todas as meninas poderiam participar. 

As expressões de interesse das crianças pelo tema espacial e de gênero foram observadas a partir da curiosidade para construir e brincar com os foguetes confeccionados. Após o lançamento, nos diferentes dias, algumas crianças imitaram o movimento de aviões e foguetes com o corpo, correndo de um lado para o outro, como se estivessem voando. Houve interação e troca entre os pares em diálogos sobre o que iriam levar para o espaço, tomando pra si, as ideias dos outros colegas. Nas rodas de conversa, alguns meninos relataram que gostam do tema e que assistem vídeos com o pai em casa. Em geral, foi possível perceber o quanto as crianças já traziam conhecimentos prévios sobre o assunto, falando de Marte, lua, roupa espacial, astronauta, et’s, nave espacial, espaço e espaço sideral.

Estratégias adotadas 

A história da Mae foi usada enquanto norteadora da sequência por reconhecer a importância de contar/ouvir histórias para a formação das identidades, além de contrapor a ausência de narrativas com mulheres negras em papéis protagonistas na C&T. Segundo Rosa (2015), em sua pesquisa sobre a baixa representação de mulheres na ciência, é importante “contar as histórias de pessoas que não fazem parte do discurso hegemônico, histórias que oferecem uma contra narrativa aos discursos estabelecidos; isso inclui pessoas negras, mulheres, homossexuais e pobres, por exemplo”. (ROSA, 2015, p. 5) 

Com o intuito de tornar a proposta mais lúdica, produzimos a personagem Mae usando um fantoche de cor preta, caracterizada com um macacão laranja feito de tecido feltro. No primeiro dia, em uma roda de conversa, a Mae narrou a sua história seguido de questões para conduzir a roda de conversa: “Vocês sabem o que é um foguete?; Como ele é?; Conhecem alguém que entrou em um foguete?; Será que qualquer pessoa pode entrar em um foguete?”. Em seguida, as crianças assistiram uma animação que aborda uma viagem espacial, o episódio “Marte, aí vamos nós!” dos Backyardigans. Logo após, cada criança confeccionou um protótipo de foguete de papel e canudinho de plástico, e concluíram brincando de lançá-lo ao soprar o canudinho, explorando e descobrindo como poderiam fazer para lançar o foguete mais longe. Os materiais utilizados foram: papel sulfite, canudo de plástico, cola e tesoura, e o material multimídia para apresentar o vídeo. 

Para o segundo dia, preparamos uma caixa cheia com imagens variadas, retiradas da internet, sobre o tema, contendo ilustrações de foguetes, astronautas negras e brancas, homens e mulheres, planetas, estrelas, lua, sol, etc. Especificamente no momento de relembrar coletivamente a história, a turma indicava as imagens que melhor representavam a narrativa da Mae e colaram em um painel feito de tecido TNT preto, enfeitado com estrelas de papel laminado prata. Este permaneceu pendurado na parede da sala durante a aula. Nesse contexto, foram feitas algumas perguntas norteadoras: Quem vocês acham que é a Lira entre essas imagens? Por que vocês acham que é essa? A seguir, a turma foi apresentada a uma caixa de papelão grande que simulava um foguete, e todos foram convidados a simular um lançamento. Questionamos quem gostaria de se tornar um/a astronauta, e por quê? E o que é necessário para ser um ou uma astronauta? Cada criança entrou no foguete, enquanto a turma realizava a contagem regressiva para simular o lançamento. Ao final, a turma foi convidada a enfeitar o foguete de papelão, utilizando giz para desenhar, nas partes externas e internas do mesmo, o que eles levariam em uma viagem ao espaço. Os materiais usados para a confecção do foguete foram uma caixa de papelão grande e um papel cartão em formato de cone na parte superior, simbolizando o topo da aeronave. 

Na última atividade, iniciamos com uma roda de conversa em que a Mae explicou que aquele seria o final da jornada, e seguiu o diálogo com algumas questões: como vocês acham que consegui ir para o espaço? Como será que um foguete é lançado no espaço? Vocês querem participar de um lançamento de foguete? Os materiais usados foram 10 garrafas PET, papéis coloridos para decoração (imagens para colar, fitas coloridas, papel crepom e etc) e, para a bomba para lançar os foguetes: canetinhas; tesoura; cola; e fitas coloridas. A confecção foi feita pelos grupos de aproximadamente 4 ou 5 crianças, as garrafas foram cortadas previamente e cada grupo teve que encaixar as partes e enfeitar usando diversos papéis coloridos e fitas adesivas. No momento do lançamento, com auxílio da bomba de pneu de bicicleta, cada grupo foi convidado a manusear o equipamento com auxílio das monitoras. 

 

Dificuldades encontradas 

Encontrar materiais variados que abordam o tema exploração espacial com uma astronauta mulher e negra não foi uma tarefa fácil, o que demonstra ser necessário que mais produtos culturais sejam produzidos para adultos e crianças com uma representatividade mais diversa, já que diversas mulheres estão relacionadas ao trabalho das missões espaciais. Nesse sentido, assim como destaca Rosa (2015), produções variadas que visam evidenciar as histórias de cientistas negras são essenciais, assim como de mulheres negras que contribuíram para a construção da nossa história em diferentes áreas. 

A quantidade de crianças pode tornar-se um desafio, uma vez que foi necessário trabalhar com 36 crianças para realizar a brincadeira de entrar no foguete, respeitando o tempo de cada um. Entendemos a necessidade de ter algum auxílio para realizar algumas etapas da atividade e acompanhar as equipes de crianças construindo suas hipóteses no momento da confecção dos materiais. Entretanto, também é possível que os materiais sejam adaptados para que as reflexões, brincadeiras e produções sejam concretizadas, mesmo que seja utilizando outros materiais como, uma história de livro infantil, um foguete confeccionado com rolo de papel higiênico sem a necessidade do lançamento, etc.

Principais aprendizagens 

Diferentes temas podem ser abordados desde a primeira infância sem negligenciar os princípios da Educação Infantil, a brincadeira e as interações entre os pares. Notamos que, embora não tenham surgido questões específicas em relação a raça por parte das crianças, entendemos ser de extrema relevância apresentar nesse contexto da história uma mulher negra, já que inúmeros produtos culturais abordam temas de ciência sem representar mulheres ou mesmo homens negras/os. Entendemos também que, ao abordar determinados temas, é necessário garantir a participação das meninas, uma vez que os meninos podem se sentir mais “à vontade” a ponto de dificultar o envolvimento das meninas na atividade, como no caso do lançamento e decoração do foguete. 

O processo de socialização escolar é atravessado por heranças históricas, sociais e culturais que reforçam diversos estereótipos ainda presentes no imaginário coletivo, como, por exemplo, a representação de quem faz ciência. Por isso, este relato demonstrou ser possível abordar temas de ciência de maneira comprometida à uma educação para a igualdade de gênero, a partir do engajamento do professor enquanto mediador, subsidiando as reflexões com questões e exemplos que permitam a problematização da nossa realidade. É indiscutível o quanto necessitamos de políticas públicas para para transformar nossa sociedade, entretanto, assim como aponta Rosa (2015), há possibilidades de cada professor e gestor atuar em seu local de trabalho, nos diferentes níveis da educação, para combater a subrepresentatividade de grupos sociais em determinados espaços de poder.

Referências Bibliográficas

ABRAMOWICZ, A.; OLIVEIRA, F. A Sociologia da Infância no Brasil: uma área em construção. Rev. Educação, Santa Maria (35). n. 1, p. 39-52, jan./abr. 2010. 

BIAN, L., LESLIE, S. J., CIMPIAN, A. Gender stereotypes about intellectual ability emerge early and influence children’s interests. Rev. Science (355), p. 389–391, January 2017. 

BONDER, G. (coord. da pesquisa). Infância, Ciência e Tecnologia: uma análise de gênero no ambiente familiar, educativo e cultural. UNESCO, abr.-out. 2017. Disponível em <https://www.catunescomujer.org/genero-en-la-sociedaddel-conocimiento/formacion-y-espacios-de-trabajo-colaborativo/ >. Acesso em 06/2019. 

PIASSI, L. P. C. J.O.A.N.I.N.H.A. na pré-escola: Jogar, Observar, Aprender, Narrar: Investigando Natureza, Humanidades e Artes. Projeto de Extensão Universitária submetido ao Edital Ações para o desenvolvimento integral na Primeira Infância da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP. Escola de Artes, Ciências de Humanidades, São Paulo, 2013. 

REZNIK, G.; MASSARANI, L.; MOREIRA, I. C.. Como a imagem de cientista aparece em curtas de animação? História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.26, n.3, jul.-set. 2019, p.753-777. 

ROSA, K. A (pouca) presença de minorias étnico-raciais e mulheres na construção da ciência. XIX Simpósio Nacional de Ensino de Física – SNEF, 26 a 30 de jan. 2015. 

SCHIEBINGER, L. O feminismo mudou a ciência? São Paulo: EDUSC, 2001. 

UNESCO. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARAA EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA. Decifrar o código: educação de meninas e mulheres em Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM). Brasília: UNESCO, 2018. Disponível em <https://d1p480y8ywg81t.cloudfront.net/media/signorelli/colegio/unesco/2018/1.5._bro chura_-_decifrar_o_codigo_-_educacao_de_meninas_e_mulheres_em_ciencias-tecnol ogia-engenharia_e_matematica.pdf > Acesso em: 03 jul. 2021.

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