Como seria o mundo se os homens cisgêneros também menstruassem?

Estado: Santa Catarina (SC)

Etapa de Ensino: Ensino Fundamental II

Modalidade: Educação Regular

Disciplina: Biologia

Formato: Híbrido

Sou colombiano, me identifico como marica (equivalente a "viado" no Brasil). Faço doutorado em Florianópolis, porém a proposta apresentada aconteceu em uma escola colombiana. Acredito no potencial da educação para a transformação da sociedade, especialmente na educação científica em uma perspectiva decolonial para questionar opressões e pensar mundos mais coloridos.

Objetivos


  • Abordar a menstruação e sistema endócrino, em uma perspectiva de justiça social e discussão de relações de poder;

  • Estabelecer diálogos entre a disciplina de biologia e saberes decoloniais e dos feminismos;

  • Refletir sobre as relações de poder da ciência e suas articulações com os interesses econômicos, entendendo o surgimento do saber biomédico sobre a menstruação associado ao aumento de práticas de mercado e acumulação de capital;

  • Analisar desigualdades de gênero presentes na sociedade (econômicas, morais, de divisão do espaço público e privado);

  • Refletir sobre novas masculinidades, ao permitir que meninos e jovens também aprendam sobre a menstruação e questionando o porquê de afirmar que a menstruação é assunto de mulher;

  • Analisar o impacto ambiental dos absorventes não reutilizáveis, explorando outras opções como coletores, panos ecológicos, entre outros

  • Abordar identidade de gênero refletir sobre outros corpos que menstruam, como homens trans e pessoas não binárias.

Conteúdo

Fundamentação Teórica de Apoio a Docentes


A menstruação é um processo vivenciado pela metade da população do mundo. É percebida de maneira variada de acordo ao contexto histórico e cultural. Porém, tem sido regulada, familiar e educativamente silenciada e socialmente castigada ao longo da história, principalmente nas sociedades ocidentais, inclusive, na atualidade (Zallocco, 2019) . Segundo a autora, na sociedade atual, a influência do saber biomédico na educação, os materiais pedagógicos para falar sobre o ciclo menstrual e a indústria publicitária têm contribuído para associar a menstruação com uma alta carga simbólica negativa, associada ao medo, à vergonha e à opressão dos corpos que menstruam - as mulheres cisgênero, os homens trans, e algumas pessoas não binárias.

Ruiz (2010) complementa destacando que:
"A menstruação tem a ver com múltiplas formas de relações de poder. Na sua história, pudemos ver como as formas em que foi construída não são inocentes, mas direcionadas a marcar diferenças e reafirmar relações assimétricas de poder. Os discursos associados à menstruação também têm a ver com as dimensões políticas, econômicas, religiosas e culturais das sociedades" (RUIZ, 2010, p.26). [Tradução da equipe do projeto Gênero e Educação]

Existe um imaginário de que a disciplina de biologia é a mais adequada para abordar o processo da menstruação, especialmente quando conteúdos sobre educação sexual ou sistema endócrino/hormonal são trabalhados. Assim, a perspectiva de abordagem da menstruação na escola é predominantemente biomédica.

 

A menstruação no ensino de biologia: desafios e possibilidades

Considerando que na escola a abordagem do ciclo menstrual, e no geral, dos assuntos relacionados com a sexualidade e a corporalidade são delegados ao ensino de biologia em uma perspectiva higienizante, heteronormativa e que naturaliza a cisgeneridade como única possibilidade de ser/estar no mundo, são diversos os problemas ocasionados na abordagem da menstruação no ensino de ciências.

Elenca-se a seguir alguns desses problemas, evidenciando a necessidade de pensar novos caminhos para inserir a menstruação nos contextos escolares em uma perspectiva de justiça social:

  • A associação dos assuntos da sexualidade e da corporalidade como risco iminente, com sentidos na base do medo, do silêncio, da vergonha, da piada e do ocultamento (ZALLOCCO, 2019);

  • O ensino desde o modelo exclusivamente biomédico não inclui a diversidade de significações corporais com as quais as pessoas convivemos e que também se relacionam com desigualdades sociais (KOHEN, MEINARDI, 2016);

  • A limitada problematização das relações de poder e de violência da ciência sobre os corpos que menstruam. Por exemplo, algumas denominações da ciência para partes desses corpos funcionam como propriedade masculina “Trompas de Falópio”, “Glândulas de Bartholin”. Homens cientistas que realizaram “descobertas” violentando mulheres escravizadas na experimentação (ZALLOCCO, 2019);

  • A associação da menstrução a uma “coisa de mulheres” e ao disciplinamento da corporalidade, como a necessidade de ocultar qualquer mostra de sangrado, aquilo que ninguém deve saber (ZALLOCCO, 2019);

  • A hierarquização de saberes no ensino da menstruação, e no geral, da sexualidade. Saberes biomédicos são colocados como mais importantes que a experiência vivida pelos sujeitos do processo de ensino e de aprendizagem. É tirada a possibilidade aos sujeitos de considerar os próprios saberes sobre seus corpos, superpostos pela linguagem dos expertos da medicina e da biologia (KOHEN, MEINARDI, 2016). Ou seja, não existe sujeito no ensino da menstruação, existem máquinas de órgãos interconectados a serem disciplinadas;

  • A associação do ensino sobre menstruação aos interesses do sistema econômico e de relações coloniais. Ao impor um saber sobre o corpo, também se naturaliza a necessidade de venda e compra de produtos e a colocação do corpo como mercancia (KOHEN, MEINARDI, 2016). O silenciamento de outros saberes sobre a menstruação também está relacionado esses saberes poderem obstaculizar a compra de absorventes não reutilizáveis;

  • O silenciamento impede que sejam discutidos diversos mitos que circulam sobre a menstruação. E quando discutidos, a discussão acontece pensada não tanto na saúde da mulher ou do corpo que menstrua, e sim, do parceiro sempre em um marco heteronormativo. Por exemplo, às vezes é ensinado que não se deve ter relações sexuais durante a menstruação, não pela saúde do corpo que menstrua, mas sim pelo conforto do parceiro (RUIZ, 2010).


Considerando estes elementos, e na perspectiva colocada por Zaccollo (2019), esta sequência didática compreende que este lugar de “raro”, “escondido” e “silenciado” que tem se atribuído à menstruação pode ser aproveitado como potência. Além de colocar a menstruação como algo normal na escola, deve-se aproveitar seu potencial de imaginário de “coisa rara” para promover discussões e diálogos profundos sobre corpo, sexualidade, opressões históricas, diálogos de saberes e novas possibilidades de sociedade.

Repensar o ensino da menstruação em uma perspectiva de justiça social implica dar uma ênfase especial nas relações de poder e suas articulações com a ciência para o controle dos corpos que menstruam, especialmente da mulher cisgênero, e a construção de um nicho do capital a partir da elaboração de produtos higiênicos dirigidos a esses corpos.

 

Metodologia

Momento 1


Reconhecimento de sentidos prévios

Propõe-se que o grupo de estudantes realize desenhos respondendo à pergunta: "Como seria o mundo se os homens cisgênero também menstruassem?".

Os desenhos devem possibilitar o reconhecimento dos sentidos prévios que estudantes associam à menstruação, entre eles, a vergonha, o medo, a limitação de curtir o espaço público, a desigualdade de gênero que se reforça na sociedade pela forma como a menstruação é compreendida.

 

Momento 2


Discussão sobre “aparelhos”, “reprodutores” e “hormônios”

Propõe-se que seja feita uma abordagem reflexiva dos termos “aparelhos” e "reprodutores” que aparecem nos materiais didáticos de biologia. Durante a discussão, sugere-se promover um debate guiado por perguntas como:

  • Por que se chama 'aparelho?

  • Por que 'reprodutor'?

  • E os sistemas intersexuais a nível de gônadas e genitais?

  • Por que feminino ou masculino?


Ao longo do debate, problematizar o motivo de algumas partes do corpo considerado feminino carregarem o nome de cientistas que exploraram mulheres racializadas nas suas descobertas.

 

Momento 3


Conhecendo o clitóris

Sugere-se realizar um debate sobre a importância do prazer para o corpo. Durante o debate, a/e/o docente pode refletir com a turma sobre as poucas vezes em que se fala sobre prazer feminino na escola e na sociedade. Durante o debate, vale problematizar como a ideia de reprodução é tida como norma na sociedade, fazendo com que questões como o prazer ocupem lugares secundários na explicação de processos sobre o corpo.

Além do debate, sugere-se também um momento expositivo em que haja uma apresentação sobre a relação entre hormônios, ciclo menstrual e prazer.

 

Momento 4


Laboratório: Qual absorvente retém mais líquidos?

Sugere-se realizar uma atividade em laboratório para comparar a capacidade de absorção de líquidos com diversas viscosidades por absorventes de três marcas diferentes.

Utilizando materiais como água, óleo, leite e gelatina vermelha, estudantes podem trocar saberes sobre absorventes, debatendo sobre seu conforto, alto custo, contaminação no ambiente (já que não são degradáveis), entre outros.

 

Momento 5


Diálogos com coletivos, movimentos sociais e famílias

Propõe-se a realização de uma conversa com estudantes, famílias e participantes externos convidadas/es/os sobre diferentes perspectivas a respeito da menstruação. O encontro pode abordar o uso do coletor e a relação de autoconhecimento do processo menstrual. Pode também trazer outras perspectivas de relação com o sangue menstrual, como por exemplo noções de que esse sangue seja algo sagrado, relacionado aos ciclos da lua ou então fertilizante de plantas. Outra possibilidade é que seja debatida com o movimento a desigualdade de gênero na distribuição do espaço público por conta do tabu sobre a menstruação.

 

Momento 6


Elaboração final de contos

Como produto final, estudantes podem desenvolver um conto abordando aspectos científicos e sociais da desigualdade de gênero em relação ao processo de menstruação. Esta atividade final, se comparada aos desenhos feitos no início da sequência, permite evidenciar algumas mudanças nos sentidos atribuídos por estudantes sobre a menstruação.

Recursos Necessários


  • Papel

  • Lápis de cor

  • Absorventes

  • Coletor menstrual

  • Gelatina

  • Óleo

  • Água

  • Leite

  • Copos transparentes

  • Contato com movimentos sociais

Duração Prevista

6 momentos com duração entre 1h e 2h

Além das sessões, há também propostas de atividades assíncronas.

Processo Avaliativo

O processo avaliativo acontece ao longo de toda a sequência:

  • No momento de reconhecimento dos sentidos prévios das e dos estudantes;

  • Nos debates que acontecem nas aulas;

  • No relatório de laboratório realizado por estudantes;

  • Nos contos curtos apresentados ao final da sequência.

Observações

Pelo Autor - Relato de Prática


A sequência didática aqui proposta foi implementada com estudantes da oitava série de uma escola de Bogotá, capital da Colômbia, com trinta estudantes da oitava série nas aulas de biologia. A escola, embora localizada numa região periférica da cidade, é habitada por estudantes de renda média-baixa. Os estudantes tinham entre 13 e 15 anos. 28 estudantes se identificam como homens cisgênero e 22 estudantes como mulheres cisgênero.

Na ocasião, foi possível refletir sobre os desafios e possibilidades para a abordagem da menstruação no ensino de biologia em uma perspectiva de justiça social e discussão de relações de poder.

A necessidade de trabalhar a temática da menstruação com os estudantes derivou-se de três situações:



    • No começo do ano escolar, em uma reunião entre gestão e docentes da escola, discutiu-se sobre como abordar situações que vinham se apresentando em anos anteriores: menina/s fingiam ter dores para furar aula; a escola tinha que assumir o custo de absorventes de meninas que não vinham preparadas na escola. Assim como outras falas que demostraram que a menstruação atravessa discursos relacionados como o económico, o controle e a desconfiança na escola;

    • Ao longo do ano escolar, em muitas ocasiões, piadas por parte dos meninos para com as meninas, e atos de vigilância sobre seus corpos, faziam com que as meninas se sentissem envergonhadas para se expressar livremente e utilizar o espaço público da escola nos dias que estavam menstruadas. Em algumas ocasiões, as meninas manifestaram abertamente a insegurança que sentem nesses dias por conta do desconforto causado pelas atitudes dos meninos;

    • Como proposta curricular na área de biologia da escola, apareceu a temática do sistema endócrino e os hormônios no corpo humano. Portanto, a menstruação apresentou-se como uma temática curricular importante para abordar esses conteúdos.




A proposta foi  implementada durante o isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19. Em decorrência disso, foi desenvolvida de maneira virtual.

O professor que orientou a sequência de ensino e aprendizagem é um homem cisgênero homossexual (que se autoidentifica como Marica).

Vale destacar que, durante a implementação da sequência didática, a atividade de diálogo com os movimentos sociais e as famílias foi uma proposta relevante. Ela permitiu seguir o proposto por Marin (2020) de que o corpo no ensino de biologia não deve entrar só como tema, mas também, como reflexão sobre os saberes de quais corpos são considerados importantes de serem considerados no ensino de ciências e biologia.

Referências Bibliográficas

AMAT, Stephanie; TORRES, Vanessa. “Influencia contextual sobre las creencias y actitudes hacia la menstruación en estudiantes de cuarto y quinto de secundaria de instituciones educativas públicas y privadas de Arequipa”. Trabajo de conclusión de curso, Escuela profesional de psicología. Universidad Católica de San Pablo. Perú. 2019.
KOHEN, Micaela; MEINARDI, Elsa. Problematizando las enseñanzas sobre la menstruación en la escuela: lo disimulado, lo negativo, lo silenciado. Bio-grafías, v. 9, n. 16, p. 179-183, 2016.
MARÍN, Yonier. Repensando o corpo no ensino de ciências e biologia a partir de diálogos entre discursos decoloniais africanos e das travestis na américa latina. Educação, cultura e sociedade, v. 10, n. 1, p. 259-275, 2020.
RENDÓN, María. Conocimientos y mitos que tienen sobre el ciclo menstrual, niñas comprendidas entre las edades de 10 a 13 años, estudiantes de un colegio privado, ubicado en la zona 8 de Mixco. Trabajo de conclusión de curso, Programa de Licenciatura en Psicología Clínica, Universidad Rafael Landívar, Guatemala. 2014.
RUIZ, Lina. La sangre de las otras cambios generacionales en la percepción de la menstruación y su relación con la dominación masculina. Disertación Máster Erasmus Mundus en Estudios de las Mujeres y de Género, Granada, España, 2010.
THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa­‐ação. Cortez: São Paulo. 8a ed. 1998.
ZALLOCCO, Ornela. Lo cuir de la menstruación en las aulas. Revista de Educación, v. 10, n. 8, p. 233-250, 2019."

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