Brincadeiras infantis: diálogos com as famílias e crianças sobre as relações de gênero

Estado: Minas Gerais (MG)

Etapa de Ensino: Educação Infantil - Creche

Modalidade: Educação Regular

Disciplina:

Formato: Presencial

Mestra em Educação e Docência (Promestre/FaE/UFMG), Pedagoga (UEMG), especialista em Neurociências e Educação, Educação Infantil, Arte-Educação, Gestão Educacional, Psicopedagogia e Psicomotricidade. Professora da Educação Infantil na Prefeitura Municipal de Contagem/MG.

A experiência

As interações e a brincadeira são eixos estruturantes das práticas pedagógicas na Educação Infantil. Nesse sentido, o brincar possibilita conhecimentos e desempenha um papel importante no desenvolvimento das crianças. Sendo assim, essa proposta contou com a parceria da família para brincar com as crianças da Educação Infantil, relembrando algumas brincadeiras da época da sua infância e, com a mediação docente, buscou proporcionar experiências mais equânimes de gênero.

Atores envolvidos

Para o desenvolvimento dessa proposta foi importante a participação das crianças da turma de três anos de idade da Educação Infantil; das famílias desses sujeitos, além da professora para realizar as mediações necessárias. Também, foi fundamental que o responsável pela portaria e a pedagoga da instituição estivessem informados/as sobre a proposta de trabalho, pois auxiliaram na recepção e acolhimento durante a entrada semanal na instituição de cada família participante.

Relato

Vale ressaltar que essa proposta de experiência ocorreu no segundo semestre do ano letivo de 2019, de maneira presencial. O contexto dela ocorreu na Instituição Municipal de Educação Infantil localizada em uma periferia da cidade de Contagem, em Minas Gerais e contou com a participação de 15 crianças de três anos de idade do turno da tarde, além dos seus respectivos familiares, bem como, a docente responsável por essa turma. Os espaços utilizados para o desenvolvimento dessa proposta, foram: a sala de referência (para os dias chuvosos); a área aberta do solário e a área gramada da entrada da instituição.

É necessário considerar que o brincar pode e deve acontecer em diversos espaços e tempos e que as interações e a brincadeira são considerados eixos norteadores das práticas pedagógicas docentes nessa primeira etapa da educação básica (BNCC, 2017). Nessa perspectiva, o brincar possibilita conhecimentos e desempenha um papel importante no desenvolvimento das crianças, ajudando-as a partilhar, cooperar, ter respeito pelo/a colega; desenvolver a consciência corporal, conhecer culturas e tradições, se divertir, além de incentivar a interação afetiva e a socialização entre criança e família. Assim, essa proposta visa proporcionar experiências mais equânimes de gênero e a valorização das identidades das crianças, buscando a aproximação e o diálogo com as famílias desses sujeitos, a partir da presença delas à Instituição de Educação Infantil (IEI) para brincar juntamente com as crianças, a partir de brincadeiras da época da sua infância, além da realização de mediações pela docente que instigaram a curiosidade e suscitaram questionamentos para os processos de representações de gênero que podem estar envolvidos de maneira sutil, pois,

[…] as brincadeiras estão carregadas de significados, conceitos e preconceitos. Por isso, não são naturais nem neutras, não são coisas boas por si mesmas, positivas por essência, precisam de questionamentos, requerem envolvimento, ser problematizadas e organizadas com as crianças. (DEBORTOLI, et al., 2009, p. 108)

Nesse sentido é importante trazer à tona a temática das relações de gênero desde a mais tenra idade, sendo um dos conhecimentos fundamentais para a formação integral do indivíduo, buscando desnaturalizar o “olhar” sobre os padrões constituídos social e historicamente, ou seja, “[…] é impossível pensar sobre a educação sem levar em conta as construções e normas de gênero e sexualidade” (LOURO, 2004, p. 37). Vale ressaltar que o conceito de gênero sofreu algumas ressignificações e, nesse relato, busca-se compreendê-lo enquanto construção social. Para Louro (2017, p. 18)

[…] o conceito de gênero passa a englobar todas as formas de construção social, cultural e linguística implicadas com os processos que diferenciam mulheres de homens, incluindo aqueles processos que produzem seus corpos, distinguindo-se e separando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade.

Diante do exposto, o gênero pode ser entendido como uma construção histórica e social de homens e mulheres, a partir de diversas instituições, práticas sociais, culturais e linguísticas, sendo também um processo contínuo e inacabado.

A contação de história das obras A colcha de retalhos¹, de Conceil Corrêa da Silva e Nye Ribeiro Silva, e Menina não entra², de Telma Guimarães Castro de Andrade, aguçou a curiosidade das crianças da turma e motivou o desenvolvimento da proposta intitulada Brincadeiras infantis: possibilidades de tecer diálogos com as famílias e crianças sobre as relações de gênero. Além disso, a experiência da docente da turma, que já havia realizado a sua pesquisa de mestrado sobre a temática das relações de gênero e o brincar, foi relevante para tecer diálogos entre as famílias e crianças.

E, não poderia de deixar de citar o fato que o convite semanal era aguardado com expectativa pelas crianças da turma, pois era uma caixa colorida, contendo a data e o horário para o comparecimento da família à instituição, bem como, dentro dela, havia: tintas para tecido, caneta para tecido, pinceis e o retalho do tecido (americano cru) para que, juntamente com a criança, pudessem usar a imaginação e a criatividade para fazer o registro (no tecido) sobre a brincadeira predileta. Ao final de todos os encontros foi construída uma colcha de retalhos com essas produções, a elaboração do clipe da turma com os encontros realizados e a exposição em uma Mostra Cultural na IEI. Esse processo, aconteceu semanalmente, ou seja, uma família era convidada a participar, sendo que o dia e o horário eram estabelecidos com antecedência, de acordo com a disponibilidade dos familiares. Ao chegar na instituição, a família era acolhida pelo porteiro e/ou pedagoga e encaminhada ao local em que a turma já aguardava sentada entusiasmada, em uma roda. Em seguida, a professora fazia uma breve apresentação e a família era convidada para uma conversa inicial com as crianças, apresentando a brincadeira favorita da época da sua infância, bem como o local e com quem gostava de brincar. Além disso, mostrava a pintura que havia feito no tecido. Após esse momento, era realizada a demonstração da brincadeira e, em seguida, todas as crianças participavam.

O encerramento se dava com uma roda de conversa, permeada por diálogos entre crianças e adultos e que contava com a mediação da professora. Esse também, era um momento para trazer à tona alguns questionamentos e reflexões sobre a temática das relações de gênero presentes nas brincadeiras, dispensando explicações densas e conceituações, e sim, procurando estar atenta às marcas que ali se apresentavam. Além disso, cada família juntamente com a criança recebia um singelo “certificado” com o agradecimento pela participação. A realização dessa proposta com a participação das famílias ocorreu ao longo de 15 encontros, com a duração estimada entre 30 a 40 minutos e algumas brincadeiras proporcionadas às crianças foram: futebol, boneca, pular corda, soltar pipa, “peruzinho”³, boliche, bambolê, bicicleta e jogo de tabuleiro.

¹ Nesse livro, a avó de um menino adorava contar histórias e juntos resolveram construir uma colcha de retalhos coloridos com imagens das memórias afetivas que permeavam as suas vidas.

² Essa obra aborda a história de uma menina que sabia jogar futebol e, no início, foi excluída pelo grupo de meninos, no entanto, eles com a ajuda dessa menina – que é habilidosa – conseguem ganhar o campeonato de futebol do bairro.

³ Essa brincadeira pode ser encontrada com denominações diferentes nas regiões do Brasil. Para brincar, é formado um círculo e uma pessoa fica no centro dele. As outras participantes lançam a bola entre si e quem está no centro tenta pegá-la. Caso consiga, quem tocou a bola por último é quem passará a ficar no centro.

Estratégias adotadas

Dentre as estratégias utilizadas, merecem destaque: as rodas de conversa; a caixa (convite); as contações de histórias; o manuseio de livros literários; desenho e pintura em tecido; as brincadeiras realizadas pelas famílias; a exibição do clipe da turma, a partir de imagens e vídeos dos encontros.

Dificuldades encontradas

Alguns desafios perpassaram a proposta foram passíveis de resoluções, dentre eles: (1) o atraso no horário de comparecimento de dois familiares, sendo necessário fazer a ligação telefônica; (2) uma família que informou no momento da sua chegada que havia esquecido a materialidade para ser utilizada com as crianças. Coincidentemente, havia o objeto na instituição e foi prontamente disponibilizado; (3) nos dias chuvosos, foi necessário utilizar o espaço da sala de referência, o que impedia uma maior movimentação e uso do espaço pelas crianças e familiares; (4) apenas uma família não compareceu à instituição no dia combinado. Entretanto, foi realizada a pintura no tecido e a entrega da caixa. Sendo assim, foi explicado às crianças o que havia acontecido e, em seguida, a professora realizou a brincadeira proposta pelos familiares. Além disso, houve (5) a repetição de brincadeira proposta por algumas famílias.

Principais aprendizagens

A pretensão dessa proposta não é cessar com as discussões que envolvem a temática do brincar e das relações de gênero na Educação Infantil e, sim, diariamente, propor práticas pedagógicas nas quais as crianças desde a mais tenra idade possam ser respeitadas em suas singularidades, bem como, proporcionar experiências mais equânimes de gênero buscando romper com as normas construídas socialmente, como por exemplo, o uso das cores (azul – meninos e rosa – meninas); brincadeiras com o uso da bola, como o futebol, tido como um padrão ligado ao universo masculino e a força física utilizada (chute); além daquelas que remetem aos afazeres domésticos e a brincadeira com a boneca pelas meninas. E, que desde a infância os indivíduos acabam sendo “rotulados” por construções sociais que influenciam nos modos de ser, pensar e agir, isto é, “[…] esses valores que vão se instalando de forma muito sutil acabam por determinar os comportamentos e escolhas de toda uma sociedade” (FINCO, 2003, p. 1). As crianças e seus familiares tiveram a oportunidade de participar de rodas de conversa e construir reflexões sobre essa temática, a partir da sua “bagagem cultural”, ou seja, as próprias brincadeiras escolhidas para compartilhar com a turma.

Sendo assim, algumas situações nas brincadeiras demandaram a mediação da professora, devido a fatores de diferenciação entre meninos e meninas, como o exemplo do futebol. Essa brincadeira foi apresentada por uma mãe de uma criança. E, logo, um menino da turma se manifestou com os dizeres que era um jogo “de homens”, ou seja, legitimando a separação por gênero, que de acordo com Wenetz (2013, p. 6) “[…] na cultura brasileira o futebol ainda faz parte de uma identidade nacional, a qual está marcada pela masculinidade” e ainda reforça esse espaço como sendo ligado ao estereótipo masculino, altivo e fisicamente forte.

O momento foi fundamental para realizar a mediação adulto-crianças, buscando dialogar sobre os padrões socialmente impostos e que tendem a reforçar as binaridades. Uma das estratégias, naquele momento, foi a roda de conversa, sendo que a mãe participante naquele dia, também conversou com as crianças, dizendo das suas experiências ao jogar futebol. E, a professora destacou que o futebol poderia ser jogado por todas as crianças e que as mulheres também são profissionais nesse esporte, sendo uma profissão remunerada. Todas as crianças participaram da brincadeira e, posteriormente, foi possível rememorar a história intitulada “Menina não entra” e pesquisar no laboratório de informática da instituição sobre as jogadoras desse esporte.

A brincadeira com as bonecas, proposta por uma família, também foi uma situação instigante, pois ao brincar, as crianças tiveram a oportunidade de “dar o banho” nas bonecas. Inicialmente, ocorreu a recusa de participação por parte de dois meninos, ao comentar que apenas as mulheres deveriam cuidar de bebês, reforçando um contexto histórico em que as atribuições do lar e de cuidado são direcionados à figura feminina. A partir desse comentário, a professora realizou a mediação no sentido de dialogar sobre a dimensão corporal envolvendo os cuidados de si e do/a outro/a. A família presente naquele momento, exemplificou que em sua residência, o pai e o avô também são os responsáveis em cuidar de um bebê. Após esse momento, os meninos começaram a participar da brincadeira com a boneca, sendo importante estarmos/as atentos/as que em alguns momentos, a fala dos outros podem alterar os discursos e até mesmo as práticas dos indivíduos. De acordo com Finco (2003, p. 96), quando a instituição de Educação Infantil assume posturas não-sexistas “as fronteiras entre os gêneros se dissolvem e meninos e meninas interagem descontraidamente, não mantendo nítidas as divisões de gênero”.

Outra aprendizagem a ser evidenciada, foi a possibilidade de contar com a participação de todas as famílias (mesmo uma delas não comparecendo presencialmente, foi enviado o tecido com a pintura), ou seja, na Educação Infantil, temos uma maior oportunidade de contar com a presença dos familiares no acompanhamento educacional das crianças, sendo fundamental manter a parceria entre família e IEI. E, foi possível que as crianças também conhecessem algumas configurações familiares da turma, que ali se apresentaram, como mãe e pai; mãe e mãe e mãe com padrasto.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Telma Guimarães Castro. Menina não entra. Editora do Brasil, 2006.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2017.

DEBORTOLI, José Alfredo; et.al. Projeto Brincar – experiência e memória de brincadeiras na educação básica e na formação de professores. In:

CARVALHO, Alysson, et.al (org). Brincar(es). Belo Horizonte: Editora UFMG, Pró-reitoria de extensão/UFMG, 2009, p. 103-112.

FINCO, Daniela. Encontrando nas brincadeiras as múltiplas formas de ser menino e de ser menina. In: Faz de conta na escola: a importância do brincar. Pátio, Educação Infantil, n. 3. nov/dez, 2003.

FINCO, Daniela. Relações de gênero nas brincadeiras de meninos e meninas na educação infantil In: Revista Pro-posições. vol. 14, n. 3 (42). set/dez, 2003.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho. Ensaios sobre a sexualidade e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

RIBEIRO, Nye; SILVA, Conceil Côrrea. A colcha de retalhos. 2ª ed. Editora do Brasil, 2010.

Observações

O processo de avaliação se deu de maneira contínua, em especial, nas rodas de conversa para escuta e diálogo com as crianças e famílias. Vale ressaltar, que foi verbalizado por algumas profissionais da instituição que a estratégia de convidar as famílias não seria exitosa. Entretanto, ao verificarem a adesão pelos familiares, essa proposta tornou-se inspiração para outros trabalhos da equipe.

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