Falar sobre gênero na escola é fundamental para educar as pessoas para uma sociedade mais igualitária e enfrentar as inúmeras desigualdades, discriminações e violências que prejudicam e destroem a vida de tanta gente.
Os movimentos sociais – de mulheres, de pessoas LGBTI, de pessoas negras, de educação, entre outros – conquistaram avanços importantes nas últimas décadas, mas permanecem muitos desafios, entre eles: a violência doméstica e nos espaços públicos, as desigualdades no mercado de trabalho, a imensa sobrecarga das mulheres com o trabalho doméstico, a desvalorização das políticas sociais de cuidado com a vida pela política econômica de um país, e uma educação escolar que ainda exclui milhares de estudantes, propagando diariamente o racismo, o machismo, a LGBTIfobia e tantas outras discriminações em grande parte do país.
Nos últimos anos, movimentos ultraconservadores – contrários aos avanços pela igualdade no país – vem atuando para inviabilizar o debate sobre gênero na educação, ameaçando escolas, promovendo preconceito, desinformação e pânico moral, perseguindo docentes, estudantes e gestoras/es, combatendo o estudo de ciências e promovendo censura.
Apesar disso tudo, as forças democráticas da sociedade conquistaram uma grande vitória no primeiro semestre de 2020: o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou várias ações que tratavam de leis municipais, propostas por movimentos ultraconservadores, que proibiam ou restringiam o debate sobre gênero e sexualidade nas escolas.
O STF decidiu por unanimidade não só que proibir gênero e sexualidade na escola é inconstitucional, como também é dever do estado abordar gênero e sexualidade nas escolas do país, como forma de prevenir a violência contra meninas, mulheres e população LGBTI; proteger crianças e adolescentes de relações abusivas; garantir o direito dos estudantes a uma sexualidade informada e saudável e construir uma sociedade mais igualitária e democrática. Essa decisão judicial do STF é poderosa e pode ser usada contra qualquer lei ou ação de censura que ocorra na escola, nos municípios e estados e que tente impedir o debate sobre gênero e sexualidade na educação.
Gênero: desnaturalizando as desigualdades
O direito humano à educação deve ser garantido a todas as pessoas, independentemente de sexo, raça, religião, orientação sexual, identidade de gênero, renda, local de moradia, origem regional, presença de deficiência etc. Mais ainda: a escola deve ser um espaço para a reflexão e transformação da realidade, de forma que possamos enfrentar as enormes desigualdades que persistem em nosso país. Por isso, para garantirmos o direito à educação de qualidade para todas as pessoas, precisamos falar sobre as desigualdades de gênero na escola.
Falar de gênero é uma forma de revelar desigualdades que são na maioria das vezes silenciadas na sociedade e tidas como normais. Quando falamos em gênero, nos referimos aos padrões sociais atribuídos de forma diferente a homens e mulheres e às desigualdades que decorrem dessa diferenciação.
Ou seja, para além de diferenças físicas, algumas características psicológicas e comportamentais são muitas vezes tidas como naturais. E os atributos considerados masculinos recebem maior valorização e reconhecimento do que os considerados femininos na sociedade. Afirmações como: “mulheres são mais emotivas e cuidadosas” e “homens são mais racionais e competitivos” são usadas para naturalizar que as mulheres sejam mais cobradas pelo cuidado com a casa e a família e ganhem menos no mercado de trabalho.
Um olhar ao nosso redor, às diferentes formas de ser homem e de ser mulher que encontramos na nossa convivência, já aponta que esses papéis fixos não são tão naturais assim. O termo gênero nos lembra que esses atributos são construções culturais e históricos que variam em cada sociedade e em cada período histórico.
Identidade de gênero: Quando uma criança nasce, a ela é atribuído um sexo, a partir das características de seus órgãos genitais. Dizemos que quando a pessoa se identifica com esse sexo que lhe foi designado, ela é cisgênera (ou apenas cis). Quando se identifica de forma diferente, é transgênera (ou trans). As possibilidades de identificação vão além do binarismo de homem ou mulher.
Ao falar sobre gênero, é importante reconhecer que nem mulheres nem homens são grupos homogêneos. Existem muitas diferenças e desigualdades internas nesses grupos. Uma questão central aqui é a desigualdade racial na nossa sociedade. A combinação entre sexismo e o racismo faz com que as mulheres negras enfrentem mais violências, discriminações e barreiras para melhorar suas condições de vida que outros grupos sociais, inclusive na educação. No Brasil, essa desigualdades também impacta a vida das mulheres indígenas, do campo, com deficiências e outros grupos sociais.
Falar sobre gênero na escola pode gerar desigualdades?
Não é o fato de falar sobre gênero que cria ou que insere no ambiente escolar as desigualdades. A escola faz parte da sociedade e, dessa forma, as questões de gênero já estão presentes no ambiente escolar, falemos ou não delas.
Porém, a escola é um importante espaço de formação, reflexão e sociabilidade. Para termos uma educação de qualidade, a escola não pode ignorar o mundo em que se encontra, não pode silenciar sobre questões tão importantes para a vida em sociedade. Pelo contrário, é obrigação da política educacional promover a igualdade e a não discriminação.
Muitas vezes, as dimensões de gênero são abordadas na escola a partir de questões trazidas pelas e pelos estudantes – e as professoras e professores devem fazer esse diálogo de forma franca e adequada.
Foi o questionamento dos espaços permitidos às mulheres que permitiu que elas conquistassem o direito à escolarização – e hoje tenham níveis de escolaridade maiores que os masculinos. Isso não significa que a questão da desigualdade de gênero está resolvida.
O ambiente escolar ainda é permeado por estereótipos – como a ideia de que meninos são “naturalmente” melhores em matemática – que prejudicam o desenvolvimento e limitam as possibilidades de todos. É nessa perspectiva, do enfrentamento das desigualdades, do reconhecimento positivo da diversidade, e da construção de uma sociedade mais justa, que defendemos que a escola aborde gênero, raça, sexualidade e outras desigualdades que marcam a realidade brasileira.
Tá na lei!
O direito à educação para a igualdade de gênero, raça e orientação sexual está assegurado em marcos legais nacionais e em tratados internacionais de direitos humanos. Por isso, ele não pode ser limitado por leis comuns e complementares aprovadas nos municípios e nos estados, como os planos de educação, muito menos por orientações de órgãos públicos. Toda tentativa de coibir a abordagem da igualdade de gênero, raça e orientação sexual nas escolas é inconstitucional porque viola os princípios da igualdade de condições de acesso e permanência na escola, da não discriminação, da qualidade do ensino e da liberdade de aprender e ensinar com respeito à diversidade cultural, étnico-racial, sexual e de gênero da população brasileira.
Conheça os marcos legais e denuncie qualquer tentativa de limitação a esses direitos!
Constituição Federal
A Constituição Federal, lei máxima do país, define que a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, é um objetivo fundamental da República Federativa do Brasil.
Além disso, toma a igualdade como um preceito constitucional fundamental, afirmando que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Para que esses princípios se efetivem nos espaços educacionais, a Constituição enfatiza que a educação é um direitos de todos e deve ser promovida pelo Estado e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Para que essa educação não seja excludente e busque a superação das desigualdades que constituem a nossa sociedade, a Constituição define que são princípios educacionais a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar e do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas.
-> Consulte a Constituição Federal
Lei de Diretrizes e Bases da Educação
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) parte da Constituição Federal para regulamentar a organização e o funcionamento da educação no país.
Além do já previsto na Constituição, a LDB adiciona como princípios educacionais o respeito à liberdade e apreço à tolerância, a valorização do profissional da educação escolar e a gestão democrática do ensino público.
No ano de 2003, como resultado da atuação de movimentos sociais, a LDB estabelece também a obrigatoriedade da abordagem de História e Cultura Afro-Brasileira no âmbito de todo currículo escolar e, no ano de 2008, da História e Cultura dos Povos Indígenas do Brasil.
-> Consulte a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Plano Nacional de Educação
O Plano Nacional de Educação (PNE), documento que organiza as metas educacionais que o Brasil deve atingir em um período de dez anos, tem como diretrizes a superação das desigualdades, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação e a promoção do respeito aos direitos humanos e a diversidade.
Entre as estratégias definidas no PNE para que as metas sejam cumpridas está a necessidade de fortalecer o acompanhamento e o monitoramento do acesso, da permanência e do aproveitamento escolar em situações de discriminação, preconceitos e violências na escola e o desenvolvimento de políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito ou quaisquer formas de discriminação, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão.
-> Consulte o Plano Nacional de Educação (Lei 13.005/2014)
Diretrizes Curriculares da Educação Básica
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (DCN) são nítidas ao enfatizar o direito à diferença e o combate ao racismo e às discriminações de gênero, sócio-econômicas, étnico-raciais e religiosas no cotidiano das escolas, e também que os projetos político-pedagógicos das escolas devem considerar esses aspectos. Além das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica (2010), essas normas também aparecem nas DCN para a Educação Infantil (2009), para o Ensino Fundamental (2010) e para o Ensino Médio (2012).
Isso é também reforçado nas Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos (2012), que devem ser observadas em todos os sistemas de ensino e suas instituições. O documento define que a Educação em Direitos Humanos tem a finalidade de promover a educação para a mudança e a transformação social e fundamenta-se nos princípios: da dignidade humana, da igualdade de direitos, do reconhecimento e valorização das diferenças e das diversidades; da laicidade do Estado, da democracia na educação, da transversalidade, vivência e globalidade e da sustentabilidade socioambiental.
-> Consulte as Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica
Base Nacional Comum Curricular
Assim como ocorreu com o Plano Nacional de Educação (PNE), durante a construção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a discussão de gênero foi centro de um conjunto de polêmicas. Grupos ultraconservadores, fundamentalistas e integrantes e apoiadores do movimento Escola Sem Partido pressionaram o legislativo para que as palavras ‘gênero’ e ‘sexualidade’ fossem excluídos do texto da BNCC.
Apesar da Base ter sido homologada com a supressão desses termos, a ideia de diversidade continua presente em suas habilidades e competências. O documento entende a educação escolar como responsável por promover a diversidade, a igualdade e os direitos humanos e esse entendimento está presente de forma transversal em várias áreas do conhecimento da Base. Nesse sentido, proibições estaduais ou municipais em relação a disciplinas que contenham conteúdo de identidade de gênero e orientação sexual estão em descompasso com a BNCC.
-> Consulte a Base Nacional Comum Curricular na íntegra
Lei Maria da Penha
A Lei Maria da Penha, destinada a coibir atos de violência contra a mulher, entende que a educação tem um papel fundamental na construção de uma cultura não violenta e na prevenção da violência doméstica e familiar. Por isso, prevê a promoção de programas educacionais de disseminação de valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça/etnia, com destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça/etnia e à problemática da violência doméstica e familiar contra a mulher.
-> Consulte a Lei Maria da Penha
Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança
A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança reconhece como responsabilidade do Estado que as crianças sejam educadas de acordo com os ideais da igualdade de direitos, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra natureza, seja de origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição.
Para isso, a educação deve preparar a criança para assumir uma vida responsável em uma sociedade livre, com espírito de entendimento, paz, tolerância, igualdade de gênero e amizade entre todos os povos, grupos étnicos, nacionais e religiosos, e populações autóctones. Também é dever do Estado proteger as crianças de todas as formas de violência, garantindo, inclusive, que não seja privada de algum ou de todos os elementos que configuram sua identidade.
-> Consulte a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança
Convenção Relativa à Luta Contra a Discriminação no Campo do Ensino
Retomando a Declaração Universal de Direitos Humanos, a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino proclama o direito de todas as pessoas à educação sem discriminações e, para que isso se efetive, traça uma série de recomendações aos Estados signatários para a promoção de uma educação não excludente.
O documento tem um entendimento da ideia de discriminação que abarca toda distinção, exclusão, limitação ou preferência fundada na raça, na cor, no sexo, no idioma, na religião, nas opiniões políticas ou de qualquer outra índole, na origem nacional ou social, na posição econômica ou o nascimento, que tenha por finalidade ou por efeito destruir ou alterar a igualdade de tratamento na esfera do ensino.
A discriminação dentro e fora dos espaços educacionais faz com que, anualmente, milhões de crianças, adolescentes, jovens e adultos tenham suas trajetórias educacionais comprometidas. Por isso, é indispensável promover a igualdade de gênero, raça e orientação sexual nas escolas públicas brasileiras. Abordá-la é um direito da população brasileira e condição para o fortalecimento de uma sociedade efetivamente democrática.
-> Consulte a Convenção Relativa à Luta contra a Discriminação no Campo do Ensino
Convenção para a Eliminação da Discriminação Contra a Mulher
A Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher entende que a discriminação viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito à dignidade humana, dificulta a participação da mulher na vida política, social, econômica e cultural de seu país, constitui um obstáculo ao aumento do bem-estar da sociedade e da família e dificulta o pleno desenvolvimento das potencialidades da mulher para prestar serviço a seu país e à humanidade.
Por isso, o documento prevê a adoção de medidas para a superação de desigualdades de gênero, de todas as formas de racismo, discriminação racial, colonialismo e neocolonialismo. A educação tem um papel fundamental nessa superação, formando criticamente crianças, adolescentes, jovens e adultos para a compreensão da realidade desigual brasileira e estimulando as diferentes formas de ação política para a superação desse quadro.
-> Consulte a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher
Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais entende que a educação tem como uma de suas finalidades o fortalecimento do respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais. Para que isso ocorra, a educação não pode ser alvo de censura e deve, ativamente, debater as profundas desigualdades presentes na realidade brasileira e pensar, junto às/aos estudantes, possibilidades de atuação da população pela garantia dos direitos.
-> Consulte o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais na íntegra
Princípios de Yogykarta
Os Princípios de Yogyakarta tratam da aplicação internacional das normativas de direitos humanos com atenção especial às discriminações e violências relacionadas à orientação sexual e à identidade de gênero.
No documento, a educação escolar é tida como um elemento importante para a superação das discriminações e violências e seus Estados-signatários se comprometem a garantir que os métodos, currículos e recursos educacionais sirvam para melhorar a compreensão e o respeito pelas diversas orientações sexuais e identidades de gênero.
-> Consulte os Princípios de Yogyakarta na íntegra