Os impactos do ajuste fiscal na Educação

Congresso aprovou proposta do governo federal autorizando que recursos possam ser retirados do Fundeb

Os impactos do ajuste fiscal na Educação

Às vésperas do recesso parlamentar de 2024, o Governo Federal conseguiu aprovar a PEC do Ajuste Fiscal (54/2024), que estabelece limites de gastos para o governo nos próximos anos. O texto aprovado afeta significativamente a Educação – e poderia afetar ainda mais, não fossem os protestos durante a tramitação da PEC. A principal alteração tem a ver com a destinação dos recursos do Fundo de Manutenção da Educação Básica (Fundeb), que agora poderá destinar parte de seus recursos exclusivamente para a Educação Integral. 

O que é o Fundeb

O Fundeb é o principal mecanismo de financiamento da educação básica pública brasileira, e é uma contribuição obrigatória de municípios, estados e União. Sua versão atual foi aprovada e constitucionalizada em 2020, após cinco anos de tramitação e debate. 

O Fundo custeia principalmente o pagamento das profissionais do setor e a infraestrutura das escolas e demais recursos que assegurem a qualidade da educação. A grande alteração aprovada em 2020 foi o aumento gradual da complementação da União. Isto é, do repasse de recursos do Governo Federal para os estados e municípios, que possuem menor capacidade de arrecadação de impostos. A estimativa é que em 2025 essa complementação seja de cerca de 56 bilhões de reais. 

Com mais recursos (ou “maior complementação”) da União, aumentou-se o montante a ser investido na educação básica, bem como seu potencial de corrigir desigualdades. Isso porque o ente com mais recursos (a União) passa a contribuir mais do que os que têm menos (estados e municípios), com base em diferentes mecanismos para essa complementação, inclusive um que considera as desigualdades educacionais, o VAAR. 

O que mudou? 

No fim de 2024, o governo federal apresentou ao Congresso uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para contenção de gastos obrigatórios, conhecida como a PEC do Ajuste Fiscal. Essa PEC faz parte das medidas de austeridade fiscal da gestão, que incluem o Arcabouço Fiscal. Aprovada em 2024, as alterações já estão em vigor. 

A Educação foi incluída nesse pacote com a flexibilização no uso de recursos do Fundeb: em 2025, até 10% da complementação da União poderá ser usada para o fomento à manutenção de matrículas em tempo integral. Isso significa que o governo federal vai poder usar recursos do Fundeb, que é uma despesa obrigatória em Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), para investir em educação integral – ao invés de prever recursos específicos para um programa próprio da modalidade. A proposta original apresentada pelo governo propunha o dobro: que até 20% dos recursos da complementação pudessem ser destinados para a Educação Integral, uma economia que o governo estimou em quase 5 bilhões de reais

A vice-presidenta da Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação (Fineduca), Nalu Farenzena, explica que o valor que a União vai acrescentar ao Fundeb não muda, mas sim as regras de como ele pode ser utilizado. “O valor da complementação não diminui, mas é como se fosse criado mais um mecanismo, uma modalidade de complementação, além das que já temos (VAAF, VAAT e VAAR). É uma autorização para usar o dinheiro de outra maneira, e nesse sentido altera as regras do Fundeb”, explica. 

A versão aprovada também amenizou a flexibilização ao determinar que o limite de 10% vale internamente para cada mecanismo de complementação. Ou seja: não é possível tirar de um único mecanismo (dos 3 existentes) todo o valor que se deseja remanejar para a educação integral. Seria uma forma de assegurar que nenhum dos três critérios possa ser particularmente desidratado. 

A proposta do Executivo foi alvo de severas críticas de várias vozes e entidades da Educação, como a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e a Fineduca, que divulgaram notas contrárias à proposta do Executivo. 

A Campanha chamou o texto aprovado de “vitória parcial” por conseguir reduzir a flexibilização de 20 para 10% da complementação da União – e por conseguir conter uma outra emenda surgida durante a tramitação: a permissão de estados e municípios usarem recursos do Fundeb para alimentação escolar, o que não está previsto nas regras do fundo. “A importante vitória impediu um precedente terrível de colocar o Pnae para disputar recursos da Educação”, diz a nota da entidade, que afirma que a mudança aprovada já é suficiente para enfraquecer a capacidade do Fundeb de reduzir desigualdades. 

O que essa mudança significa? 

Com as alterações sofridas na tramitação, a nova regra não vai economizar tanto como o Executivo pretendia inicialmente, mas ainda terá impactos no financiamento da educação básica. Nalu Farenzena, vice-presidenta da Fineduca, explica que, na prática, um recurso da casa de 6 bilhões de reais será retirado da Educação. “A decisão foi manter o programa de escola em tempo integral, mas deixando de alocar recursos específicos e sim usando o do Fundeb, o que é criar uma quarta modalidade de complementação cujos critérios não foram acordados nos 5 anos em que a proposta do Fundeb foi debatida no Congresso”. 

A preocupação em relação à nova regra é potencializada porque o novo Fundeb ainda está em fase de implementação. Segundo o que foi aprovado em 2020, o aumento da complementação de recursos da União cresceria gradualmente até 2026, quando chegaria a 23%. Ou seja: as regras já foram alteradas antes mesmo do Fundo estar plenamente implementado. “Nós batalhamos muito pelo aumento da contribuição do governo federal para estados e municípios, por mais recursos e não por menos. E aí essa medida anularia praticamente todo o percentual conquistado na aprovação do Fundeb”, critica Cleo Manhas, assessora política do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), que enfatiza a gravidade da proposta original de flexibilizar até 20% da complementação. Ela destaca que mesmo com o aumento gradual de recursos, o Fundeb vem operando num limite em relação ao montante necessário para a educação de qualidade, o que seria “apostar na precarização”. 

O Professor de Direito e Políticas Educacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC), Salomão Ximenes, na época da apresentação da proposta ao Congresso, enfatizou que “por mais meritório que possa ser o dito programa [de Educação Integral], não elimina o fato de que estarão desviando 20% [depois 10%] do Fundeb em plena etapa de consolidação, (…) sem avaliação de resultados e de impacto, sem dialogar com Estados e Municípios que sairão prejudicados e impondo um improvável retrocesso no financiamento da educação pública em relação ao conquistado durante o governo Bolsonaro”, disse. 

Como a fala de Salomão indica – e movimentos sociais e entidades da Educação concordam -, o problema não é assegurar recursos para a educação integral e sim a manobra para que isso seja feito via Fundeb e não com programas próprios para este fim. A nota técnica da Fineduca lembra que o Fundeb já tem mecanismos que valorizam a educação integral, como os fatores de ponderação, que ainda poderiam ser aprimorados se fosse esse o objetivo. A assessora política do INESC, Cleo Manhas, reforça ainda que mesmo o ganho para educação integral é extremamente limitado se o resto da educação básica continua subfinanciada. “Não adianta dar uma poupança para estudantes [com o programa Pé de Meia] e não melhorar a escola que estão obrigados a estudar e que continua sem condições, com docentes em contratos temporários. Não adianta dizer que vai cumprir a educação em tempo integral dessa maneira tão precarizada. Educação em tempo integral exige escolas com muito mais infraestrutura, não é apenas colocar uma placa, é preciso ter uma escola atraente, com várias atividades, e não é isso que vemos”. 

Cleo critica ainda a falta de estudos sobre os impactos de uma alteração desse porte: “Como estados e municípios vão fazer uma política de educação em tempo integral se não foi feito nenhum estudo de impacto? A proposição não veio acompanhada dos cálculos, da descrição dos objetivos e indicadores afetados, por exemplo, bem como de medidas de compensação para esse corte”. Por isso, entidades como a Fineduca têm afirmado que as novas regras do Fundeb alteram o papel do fundo de combater as desigualdades educacionais. Em nota, a Associação afirma que “o MEC contribui com o corte de gastos demandado pelo mercado financeiro, a pretexto da estabilidade fiscal do país, mas às custas da redução do potencial equalizador do Fundeb”. 

Na mesma linha, a CNTE destacou que o texto aprovado pode comprometer a manutenção e investimentos das políticas em andamento, especialmente o pagamento da folha de pessoal da educação na esfera municipal – cerca de 70% do montante do Fundeb é destinado à valorização de profissionais da Educação. Já a Undime ressaltou que a alteração pode reduzir a autonomia dos entes federados, uma vez que parte da complementação poderá ficar “carimbada” para um uso específico, e que essa imposição desconsidera as especificidades dos municípios. 

Por fim, há ainda dois pontos que preocupam sobre os impactos do ajuste fiscal na Educação: que a nova regra possa de alguma maneira descaracterizar o Fundeb; e a falta de tempo e diálogo com a sociedade em sua proposição. Para Nalu Farenzena, vice-presidenta da Fineduca, a nova redação do Fundeb pode descaracterizar os critérios de redistribuição do Fundeb, pactuados ao longo de anos de debate público. “A questão que se coloca aqui é o precedente que foi aberto, da exigência de que os recursos do Fundeb devam ser direcionados para isto ou aquilo. Durante o processo de tramitação de 2015 a 2020, uma das emendas aprovadas dizia que uma parte dos recursos deve ser aplicada na educação infantil – o que foi, portanto, uma prioridade amplamente discutida. Fora a grande prioridade do Fundeb, que é aplicar 70% dos recursos em remuneração de profissionais. Então colocar agora mais uma prioridade e sem discussão é uma interferência, inclusive sobre a autonomia dos entes federativos, e um precedente”, alerta Nalu. “A sociedade brasileira não teve a oportunidade de discutir essa prioridade nem em que termos ela se daria”. 

Nalu reconhece vários movimentos positivos no financiamento educacional desde o início da atual gestão de Lula, mas pondera suas limitações frente a um cenário mais generalizado de austeridade fiscal com fortes impactos em áreas sociais. “O Brasil não está aproveitando a oportunidade de levar adiante a discussão da implementação do Custo Aluno-Qualidade de educação básica. Isto é, de passarmos a realizar o planejamento da área da educação pensando nos recursos que são necessários para assegurar educação de qualidade, o que levaria inclusive ao cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação. Como realizar todas as metas se não aumentamos o nível do recurso?”, questiona. 

A assessora política do INESC, Cleo Manhas, também é enfática sobre os efeitos das políticas de austeridade na educação e no enfrentamento de desigualdades: “Saúde e educação têm grandes orçamentos, mas dado o tamanho do público-alvo é fácil de ver que é um orçamento muito incipiente. E dessa forma podemos chegar em um ponto inviável para políticas sociais, especialmente porque temos ainda um passivo a ser resolvido que vem desde a pandemia. O arcabouço fiscal está caminhando para uma política recessiva tanto quanto o Teto de Gastos, e com o agravante de que um governo de centro-esquerda é muito mais cobrado do que governos de direita”, pondera. “ O Ministério da Fazenda devia ser um Ministério “meio” e não um Ministério “fim”, mas a economia virou um fim. Estamos reféns desse discurso econômico”.