Descoloniza aí, EREMI!

Estado: Bahia (BA)

Etapa de Ensino: Ensino Médio

Modalidade: Educação Regular

Disciplina: Filosofia

Formato: Presencial

Sou professora licenciada em Filosofia e com especialização no Ensino de Filosofia e Sociologia, atual ministro as disciplinas de Filosofia, Artes e Política e participação, na rede Pública Estadual de Pernambuco, na Escola de Referência em Ensino Médio de Itaparica (EREMI), localizada no município de Jatobá- PE, sertão sub-médio São Francisco, atuando desde 2013 na rede estadual de Pernambuco.

A experiência

A ideia do projeto “Descoloniza aí, EREMI” teve como intuito principal introduzir as discussões étnicos raciais, em formato de gincana interdisciplinar, no chão da escola, com o público alvo, adolescentes e jovens, matriculados(as) no ano 2022.
O projeto busca também um público indireto, sendo professores (as), pois este não restringe apenas às disciplinas que habitualmente ocupam esse campo de debate, e sim expande para todas as áreas do conhecimento, capaz de assim dar os primeiros passos para a visualização de uma educação decolonial, na EREM de Itaparica.
As reflexões precisam extrapolar com o óbvio, do que já se é ofertado, incorporar novos termos e sentidos, experienciar novas vivências, até mesmo transitar pelo incômodo dos dados de pesquisar a trágica realidade da negritude e povos indígenas no Brasil e, acima de tudo, celebrar e enaltecer a existência, sentir a arte e, por que não, congregar o pertencimento e orgulhar-se da sua identidade

Pessoas envolvidas

Estudantes da Erem de Itaparica (EREMI), do ano 2022, compondo um cenário de 193 alunas(os) negras(os) (entre declaradas(os) pardas(os) e pretas(os)) e 95 declaradas (os) indígenas e apenas 26 alunas (os) que se declaram brancas(os), totalizando um público de 314 estudantes, diretamente envolvidos(as) no projeto. Além dos professores que contribuíram para a elaboração, destacando a professora de educação física Zirlene Brito, que teve uma participação especial na elaboração e execução dos jogos.

Relato de experiência

Posso dizer que o projeto não nasceu em 2022, ele culminou em 2022, a sua gênese parte da inquietude do corpo negro invisibilizado de uma adolescente que se tornou professora de filosofia. Ao longo da minha vida e carreira profissional as pautas étnico-racial estiveram presentes, seja nos discursos ou em estudos. Assim também, esteve presente a inquietude, quanto mais estudava, mais me questionava sobre o espaço que ocupo e sobre os meus/minhas estudantes. Discussões tão acaloradas no campo acadêmico, mas e, na prática, docente? Quantas(os) do meu eu (adolescente) estavam ali diante de meus olhos, com as mesmas angústias e sentimentos? Não poderia silenciar!
Fato que marca o início do projeto, se deu diante da realidade, na sua grande maioria negras(os) e indígenas; além dos debates, conversas informáveis, relatos, sondagens. Estava lançada a emergência inadiável da realização de um projeto, que estivesse além de um dia festivo, por muitas vezes inconsciente, da consciência negra.
Nessa perspectiva, possibilitou novos direcionamentos para uma educação antirracista, com base na ludicidade, aplicado por meio de gincana, desenvolvida por eixos, sendo 4.
Para o eixo de pesquisa e exposição foram solicitadas 6 atividades:
– É fato, não é FAKE – Racismo em números, a partir de temas sociais como desemprego, violências (doméstica e obstétrica), moradores de periferias, composição dos cursos de medicina, deputados federais, foram pesquisados dados estatísticos e convertidos em gráficos ilustrados.
– África na Caixa – buscou a construção de maquetes geográficas de pontos selecionados pelos(as) aluno(as) de 10 países diferentes do continente africano, favorecendo a desconstrução do imaginário tão mistificado. Foi produzida uma HQ da mitologia africana, em puderam se deslocar além da mitologia grega ofertada na escola. Outro ponto que circunda o nosso imaginário é de uma ciência eurocêntrica e no projeto por meio de pesquisas e cartazes ilustrados, conhecemos no Cientificamente comprovado, referências científicas ligadas à negritude, como a invenção do GPS, as primeiras formas de destilação, o sequenciamento do genoma da COVID, o método de ball, os telhados com base de açaí.
– Plasticidades, ousamos em nossa criatividade com a criação de máscaras africanas, telhas com grafismo indígenas e cabeças decorativas
– AfroRetratos, despertando a sensibilidade estética por meio da fotografia.

No 2º eixo, nas mídias, utilizamos das tecnologias e elementos das redes sociais. Na atividade “Isso é coisa de preto(a)!”, destacamos personalidades na história do nosso país por meio de vídeos, estilo tiktok. Por uma linguagem rápida e acessível optamos pela produção de cards, e criamos o “Se liga na dica”¸ como alerta sobre expressões no cotidiano que são racistas e sobre a luta antirracista e o “Você sabia?” com orientações sobre temas, como representatividade, lugar de fala, antirracismo, racismo estrutural e recreativo.
Já no eixo dos jogos populares, pudemos conhecer, recriar e jogar a mancala e o jogo da onça.
As atividades iniciaram na segunda semana de outubro, culminando no dia 18 de novembro de 2022, com o 4º eixo. As apresentações de dança tiveram base na cultura afro-brasileira e indígena. Para as apresentações musicais, intitulada MPB – Música Preta Brasileira, foram sorteados artistas pretos(as) e indígenas, os quais foram homenageados com a interpretação musical. Realizamos também o sarau “A coisa tá preta!”. No audiovisual, foram produzidas campanhas publicitárias, “Vista a minha pele! E é sobre isso, não está tudo bem!” que alertavam sobre a problemática, abordada na atividade “É fato, não é FAKE”. E para finalizar as apresentações, fomos agraciadas com um politizado desfile, que além de valorizar a beleza negra e indígena, carregou uma carga de protestos.
O projeto contou com a participação de jurados, entre eles, o cantor e compositor pankararu, Gean Ramos, que nos presenteou com show ao ar livre.

Estratégias adotadas

Sensibilização e conversas informais nos corredores da escola, sobre o apagamento dos povos na escola, nesse caso específico, os pankararus,
Nas aulas de filosofia, a inserção de uma perspectiva decolonial,
Levantamento dos dados étnicos raciais da escola (fato que despertou a maior inquietação diante dos números),
Elaboração do projeto que abordasse o máximo possível as diversas áreas do conhecimento de forma introdutória,
Sensibilização da equipe gestora e corpo docente,
Traçar estratégias e leituras de pedagogias decoloniais,
Reunião e apresentação do projeto para as(os) representantes das dez turmas da escola,
Cronograma e organização das atividades em sala de aula e com professoras(es) colaboradoras(es),
Acompanhamento das atividades, a fim de que fossem realizadas durantes as aulas,
Estudos orientados e pesquisa,
Ensaios e produções artísticas,
Execução prática de todas as atividades, que tiveram caráter avaliativo.

Dificuldades encontradas

Se escrevesse durante a execução do projeto, diria que a ausência dos conteúdos decoloniais no currículo de Pernambuco contribui para a incredulidade da importância da temática, para alguns colegas de profissão, por vezes brancos, e esse descrédito reverbera nos(as) estudantes. Ainda assim, diante da magnitude do evento, ousaria classificar apenas um infortúnio e, em breve, entenderão todo o sentido, parte comum do processo de desconstrução.

Porém, quando nos movimentamos da forma e proporção que ocorreu, provocamos, mexemos na estrutura do sistema, convidamos a pensar o que jamais tinha sido pensado ou dito, denunciamos, nos fizemos vistos e notados. E o maior desafio apareceu no pós. E, lamentavelmente, no relato das dificuldades, precisaria pontuar que assistimos ao ódio, ao racismo escancarado, materializados nos trabalhos rasgados e pisoteados no pátio da escola invadida durante o final de semana após o projeto, reforçando assim, que ainda teremos um longo e árduo trabalho pela frente.

Principais aprendizagens

Observar o empenho, admirar como a escola ficou mais colorida e alegre com tantos cocares, pinturas corporais, com tantos conhecimentos e agradecimento. Entendi que silenciar e continuar com os mesmos modelos não me transformaria, não transformaria aquela adolescente do meu passado e nem transformaria os meus.

Significa dizer que maior ganho estava nos rostos das(os) estudantes que ali se viam representadas(os), mais especificamente na culminância, que foi tomada por uma sensação indescritível de êxtase, como se estivéssemos enfim sendo justiçados por tanto anulamento social.

Em partes práticas, ver a Lei 10639 se cumprindo em uma escola com um diálogo interdisciplinar decolonial, é entender e sentir que é possível, não digo fácil. É fato que longos caminhos já foram percorridos por uma educação mais justa, respeitosa e igualitária, no contexto racial e por vezes repercutiram em resultados frutuosos, principalmente ao que se refere a uma educação antirracista. Por este aspecto trazer a discussão para o chão da escola, vai além do conhecimento sobre a ancestralidade, é político e social, capaz de (re)conhecer na sua própria história.
Para as próximas edições, tentarei não restringir apenas para um período e, sim, ao longo do ano, ficaria mesmo corrido e mais proveitoso.

Observações

Esse projeto recebeu o prêmio pela Gerência Regional de Educação Dep. Antônio Novaes – Floresta-Pe, como professor Nota 10 categoria em Ensino Médio em 2022.

Referências bibliográficas

BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-brasileira”, e dá outras providências. Disponível em:http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm .Acesso 16.mai.2023

CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. As ações afirmativas e os desafios da luta pela igualdade na conjuntura atual. Pedagógica: Revista do programa de Pós-graduaçao em Educaçao – PPGE, v. 19, n. 40, p.33-42, 2017

LIMA, Denise Maria Soares e SOUSA, Carlos ngelo de Meneses. Educação antirracista: um Brasil melhor é possível? Revista Ibero-americana de Educação, n.64, p.1-9,2014.

MALDONADO-TORRES, Nelson. Transdisciplinaridade e decolonialidade. Sociedade e estado, v. 31, p. 75-97, 2016.

MUNANGA, Kabengele. NEGRITUDE E IDENTIDADE NEGRA OU AFRODESCENDENTE: um racismo ao avesso? Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), v. 4, n. 8, p. 06-14, out. 2012.

TEIXEIRA, Mariana Castro. Alteridade & identidade em para entender o negro no brasil de hoje, de Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes. Revice – Revista de Ciências do Estado, Belo Horizonte, v.2, n.2, p. 266-300, ago./dez. 2017.

DOWNLOAD