Igualdade de gênero nos planos de educação: uma tarefa urgente
As agendas de “gênero” e “raça” devem se articular a todos os Eixos do Documento Referência da CONAE, como: financiamento, gestão democrática, valorização profissional e qualidade na educação.
A educação e a sociedade brasileira sentiram os efeitos, na última década, da retirada do “gênero” no texto do atual Plano Nacional de Educação (PNE). A exclusão dessa garantia no mais importante documento de planejamento educacional do país ajudou a fomentar um clima de censura e perseguição nas escolas, impactando discussões sobre gênero, raça e outras formas de discriminação junto às comunidades escolares. Às vésperas da tramitação do novo PNE e da Conferência Nacional de Educação (CONAE), onde será construída uma proposta para o novo Plano, a sociedade civil agora age para garantir um PNE sem retrocessos, com ousadia e que reafirme o direito de profissionais da educação e estudantes discutirem gênero, raça e sexualidade na escola.
Nesse contexto, a Ação Educativa lançou a campanha #FiqueDeOlho: para combater a violência, gênero nos Planos já!, reforçando que garantir igualdade de gênero nos Planos é se comprometer com a melhoria da qualidade na educação, já que educação de qualidade é a que consegue incluir e acolher todas as pessoas. É preciso criar espaços de acolhimento e solidariedade nas escolas; prevenir e combater o assédio, abuso sexual e violência doméstica; discutir as desigualdades entre homens e mulheres; promover o direito das pessoas viverem livremente sua sexualidade, entre outras ações. Esses são alguns aspectos que a equipe, por meio da Campanha, tem discutido no processo da CONAE, inclusive com escuta e encaminhamento de demandas de jovens a partir de uma Conferência Livre realizada na Ação Educativa durante a etapa municipal de São Paulo.
A incorporação da igualdade de Gênero nos Planos para que o novo PNE avance no combate à violência e na redução das desigualdades educacionais significa, entre outras ações:
- Incorporar a laicidade na educação pública como princípio do PNE e incluir no texto o enfrentamento às desigualdades e discriminações de gênero, raça e sexualidade.
- Defender a implementação da LDB alterada pelas Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 como instrumento essencial para a construção de uma educação antirracista.
- Garantir a manutenção de escolas quilombolas e indígenas em seus territórios.
- Defender as políticas de ações afirmativas com recorte racial e social nas instituições de educação superior.
- Atuar por um financiamento adequado com distribuição equitativa dos recursos em diálogo com uma política econômica de redistribuição de renda e com as Leis Orçamentárias (LDO e LOA).
- Aprimorar na regulamentação do FUNDEB os Fatores de Ponderação para que correspondam ao custo real das diferentes etapas e modalidades da educação básica e possam ser utilizados como mecanismos de ação afirmativa racial e social.
- Democratizar o debate econômico nas unidades educacionais, comunidades escolares e territórios, promovendo a compreensão da relação da economia com o cotidiano das escolas e da população.
- Aprimorar os mecanismos de gestão democrática e controle social do PNE e das políticas educacionais, ampliando a roda e a participação efetiva das comunidades escolares e das juventudes na construção e monitoramento das políticas educacionais.
Sobre esses aspectos e sua incorporação no PNE, nos planos estaduais e municipais e no planejamento educacional, conversamos com algumas pessoas de referência nas diferentes áreas. Confira:
Financiamento
Eduardo Januário, Professor na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), atuando na linha de pesquisa de Políticas Públicas, Financiamento Educacional e Gestão Democrática da Escola Pública, com ênfase nas escolas de periferias.
Ação Educativa: Como o financiamento do PNE pode ser adequado para diminuir as desigualdades educacionais, especialmente das populações negras?
Eduardo Januário: A única possibilidade de diminuir a desigualdade racial é com investimento. Não conseguimos atingir a meta 20, que é assegurar 10% do PIB para educação. Então claro que sem dinheiro não dá para fazer aquilo que está previsto nas metas 3, 4, 8, enfim, metas que visam combater desigualdades entre negros e brancos. Por quê? Porque as escolas necessitam modificar o seu dia a dia, a sua realidade, as estruturas. Isso precisa de dinheiro. Então ficamos na perspectiva de acreditar que vai haver um aprimoramento de mecanismos, mas não há outra saída enquanto a gente não tiver 10% do PIB na educação.
Ação Educativa: Especificamente sobre o Fundeb e os fatores de ponderação, as propostas atuais de regulamentação contemplam esse horizonte? Os valores são suficientes para corrigir as distorções históricas?
Eduardo Januário: Quando falamos em mecanismos de distribuição, vamos lembrar que a Emenda Constitucional 59 já pensa nessas questões de tratar os desiguais conforme as suas desigualdades. E quando a gente pensa em educação quilombola, educação do campo, educação indígena, há uma defasagem de investimento. Por que defasagem de investimento? Porque essas escolas não estão, ao meu ver e ao ver do movimento, adaptadas o suficiente, não têm qualidade suficiente (até em termos de formação de professor, de estrutura). Uma pesquisa recente da Faculdade (FEUSP) mostra que inúmeras escolas de educação quilombola e educação indígena não têm livros didáticos para estudar. Então há uma proposta de educação quilombola, de educação indígena, de educação do campo, mas não há estrutura. Então tem que ter dinheiro, não tem jeito. Sobre os mecanismos de ponderação, 1.4 para educação quilombola e indígena eu acho que é o suficiente no sentido de priorizar essas medidas. Mas como fazer sem dinheiro? Tem que ter um montante maior, porque com o montante que temos vamos continuar com políticas que reparam a desigualdade de maneira superficial. Elas não mudam a estrutura da escola, não garantem livros didáticos, não possibilitam formação de professores que estejam levando em consideração outras epistemologias. Conseguimos, pelos fatores de ponderação, levar um pouco mais de dinheiro, mas a gente não consegue ampliar de fato aquilo que precisaria, que é essa estrutura que eu acabo de citar. Uma outra questão é da discussão do VAAR do Fundeb, que o movimento negro tem disputado. Num determinado momento, o VAAR ficou preso à ideia do resultado, mas nossa conversa é que ele deveria ser um dinheiro específico para reparação, não para resultado. A ideia seria que as escolas que estão nas periferias, que têm uma maior quantidade de pessoas negras, as escolas quilombolas, receberiam uma parte desse dinheiro. Assim, é possível impulsionar a leitura de livros, a formação de professores, modificar a escola. Outras perspectivas poderiam ser incluídas na sala de aula se tivéssemos dinheiro específico para isso.
Gestão democrática e processos participativos
Juliane Cintra, Coordenadora Institucional (Comunicação, Eventos e TI) da Ação Educativa.
Ação Educativa: Como e onde é possível aprimorar os mecanismos de gestão democrática e controle social do PNE e das políticas educacionais, de forma a ampliar a participação efetiva das comunidades escolares e das juventudes na construção e monitoramento das políticas educacionais?
Juliane Cintra: Há uma dimensão de fortalecer os Fóruns e os Conselhos de Educação, mas também é preciso repensá-los do ponto de vista do quão abertos e preparados estão para receber a diversidade que é constituinte do que são as comunidades escolares e do que são os diferentes grupos que integram o que chamamos de juventude. Esses espaços não são organismos estatais. Na verdade são espaços de abertura, de acolhimento da sociedade, e portanto devem representar e dialogar com a demanda desses grupos e com as suas próprias dinâmicas de funcionamento. Repensá-los metodologicamente é fundamental para assegurar que o descumprimento naturalizado dos planos decenais não seja perpetuado. Então acredito que o foco deveria ser nessas instâncias, mas sobretudo nesse repensar metodologicamente. É importante que a gente olhe para esses espaços também considerando como fundamental que a gente descentralize os processos deliberativos. Os processos decisórios devem ser descentralizados a partir da instância e com uma reformulação metodológica do que compreendemos como participação nessas esferas. Assim, conseguiremos avançar efetivamente para a construção da legitimidade popular e social dos planos de educação, porque é somente a partir da participação social que construímos pertencimento às políticas públicas. É fundamental ir além do nível consultivo.
Gênero, raça e sexualidade
Suelaine Carneiro, socióloga, mestre em educação, coordenadora de educação e pesquisa de Geledés – Instituto da Mulher Negra e compõe a rede de ativistas do Fundo Malala.
Ação Educativa: Qual a importância de explicitarmos as agendas de gênero, raça e diversidade sexual no PNE, bem como incorporar a laicidade na educação pública como princípio do PNE e incluir no texto o enfrentamento às desigualdades e discriminações?
Suelaine Carneiro: Esse PNE tem que não só resgatar a educação com um direito humano, como uma etapa fundamental para a formação da concepção de cidadania, mas retirar o aprender sobre raça e gênero do lugar de “questão menor” na educação.
Por exemplo, na questão do financiamento: é necessário sempre defender mais recursos para a educação. As escolas mais fragilizadas, com estudantes com mais dificuldades de aprendizado, de conseguir um desempenho razoável em relação a notas e progressão de ensino, essas escolas via de regra têm grande participação de estudantes negras e negros, então é preciso que tenham também um aporte diferenciado no que diz respeito a recursos, a ter um corpo docente completo. É o que temos procurado nesse tempo todo de resistência: pautar gênero e raça em todo o âmbito da educação, dizer que gênero e raça também são questões essenciais na educação – para além daqueles que são considerados “eixos duros” – financiamento, formação de profissionais da educação, livro didático. São temas que possibilitam interferir nos resultados de desempenho, na compreensão, na aprendizagem e principalmente no convívio escolar. Portanto, ter gênero e raça dentro de todos os eixos que forem constituídos no novo PNE é fundamental para que a educação como direito se realize.
Além disso, temos também o desafio de pensar a laicidade. A Educação hoje está muito contaminada por uma concepção de religiosidade cristã de forma muito fundamentalista que interdita direitos, interdita falar sobre raça, sobre questões raciais, sobre cultura e história afro-brasileira e africana e que reafirma uma concepção de superioridade a partir da cor da pele. Temos que atuar nessas questões de maneira muito explícita, por isso o debate tem que perpassar todos os eixos. Ou seja, são muitos desafios e são esses os compromissos que devem estar em discussão durante o novo PNE. O ano de 2024 será decisivo para podermos recuperar a Educação depois de tantos anos de desmonte.
Combate ao racismo
Catarina de Almeida Santos, professora na Faculdade de Educação da UnB, do comitê da Campanha Nacional pelo Direito à Educação do DF.
Ação Educativa: Como podemos, na formulação do novo PNE, reafirmar e defender a implementação da LDB alterada pelas Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 como instrumento essencial para a construção de uma educação antirracista?
Catarina de Almeida Santos: Fazer com que esse país conheça e respeite a cultura afro-brasileira, africana e indígena não é algo que dê pra fazer com um ou outro programa, é preciso que seja uma ação sistêmica na escola, da educação infantil à pós graduação e isso significa passar pela formação inicial e continuada dos nossos professores e professoras, dos processos de gestão. Precisa estar presente em todas as metas e estratégias do PNE como ação sistêmica nos programas implementados, nas políticas desenhadas para o alcance dessas metas e objetivos. Do contrário, a gente não vai fazer funcionar. Se a cultura, história e força dos povos originários e dos povos que vieram pra cá escravizados não estiverem em cada uma das ações que desenvolvermos, a gente não reverte essa situação e não vamos conseguir fazer uma escola antirracista.
São precisos mecanismos políticos, jurídicos e legais que permitam que as escolas e suas professoras e professores não sejam punidos por trabalharem essas questões, que isso esteja na literatura, no livro didático, na história das diferentes áreas do conhecimento. Mas também precisamos ter mecanismos de proteção pra reverter a demonização que se faz da cultura desses grupos. Isso significa metas e estratégias no PNE voltadas para o combate à intolerância religiosa e a todas as formas de violência. Isso também vale para questões de gênero, homolesbotransfobia, capacitismo, todos os elementos que são marcadores de diversidade nos corpos que compõem as diferenças nesse país.
Ação Educativa: Qual a importância de garantir a manutenção de escolas quilombolas e indígenas em seus territórios?
Manter as escolas quilombolas e indígenas em seus territórios não é questão de ser importante, é uma questão de sobrevivência. É uma questão de direito essencial, fundamental à manutenção dessas escolas. Pela sua existência, pela sua identidade, porque é direito desses grupos. Ou de sobrevivência da sociedade brasileira, se um dia ela se quer civilizada, capaz de fazer as pazes com a sua história. A sobrevivência da população negra dependeu da sua organização em Quilombos, e até hoje os aquilombamentos são fundamentais para a nossa sobrevivência. Se não os aquilombamentos na perspectiva territorial, os aquilombamentos de nós enquanto povo preto, enquanto cultura. É de fundamental sobrevivência para nossa vida física e para nossa existência histórica e cultural. E isso serve também para os povos indígenas, que eram os povos originários desse país e que foram dizimados. A sobrevivência dessa cultura depende de nós mantermos as escolas nos territórios, e não a partir da lógica brancocêntrica e eurocêntrica, mas a partir da lógica dos povos dos territórios. Quem vai transmitir essa cultura e quem vai ensinar esses saberes senão aqueles que são detentores dos saberes tradicionais?