Manifesto Meninas Decidem
Apoiado pela Nobel da Paz Malala, o Manifesto #MeninasDecidem traz as perspectivas de adolescentes de todo país por uma educação pública de qualidade em ano de eleições.
Somos meninas. Somos negras, somos quilombolas, somos indígenas, somos do campo e das florestas, das periferias e favelas das cidades. Somos meninas trans e travestis, somos meninas com deficiência. Estamos em escolas sucateadas e em transportes lotados, estamos nas ruas e nas vielas, nas ocupações e nas marchas, estamos nas redes virtuais e nas territoriais. Muitas garotas passam fome e enfrentam a violência de gênero neste momento. Carregamos a força das ancestrais e uma história de lutas e de resistência. Somos a geração do presente e também somos o futuro. Somos guerreiras e somos cuidadoras. Não somos silenciosas, fomos silenciadas. Não seremos mais caladas. Este é nosso grito.
A educação brasileira implora por socorro, agoniza por vida, sofre com tantos ataques: dos cortes de recursos à censura.
A pandemia escancarou o que há muito tempo já se discutia dentro de movimentos sociais: a superlotação dentro dos transportes – quando disponíveis –, a falta de acesso à internet e a equipamentos, a miséria que faz com que seja na escola que muitos encontram sua única refeição, professoras sobrecarregadas e com baixos salários. Também ressaltou a necessidade de um ensino voltado às nossas origens e ancestralidades africanas, afro-brasileiras e indígenas que a colonização nos roubou.
A educação como conhecemos hoje é sustentada por um fio ou por uma corrente de mãos das de pessoas que ainda acreditam ser possível construir uma educação acessível e plural, mesmo estando inserides nessa realidade de constantes cortes e sucateamento dessas escolas. A educação veio da luta da população. Conquistamos esse direito graças à luta e, graças à educação, temos mais pessoas para continuar lutando. Guerreiras formam a educação e a educação forma guerreiras.
Quando dizemos escolas, nos referimos ao ensino público, que educa es filhes des trabalhadores, que estão na base e à margem da sociedade. Muitas de nós não temos sequer acesso a esses espaços públicos de educação. Muitas somos expulsas das escolas, ferindo o que determina a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que garantem por lei o direito à educação para todas, todes e todos. Aqui nos referimos a travestis e mulheres trans, que têm seu acesso aos espaços escolares negado a partir do momento em que pisam na escola, porque sabem que vão ter suas identidades desconsideradas e serão constantemente violentadas. Aqui nos referimos também às pessoas com deficiências, às crianças, adolescentes e jovens negros, indígenas, quilombolas e do campo e tantos outres neste país tão desigual.
Precisamos pensar na infraestrutura das escolas secundaristas espalhadas pelo Brasil. É extremamente problemática a ideia de “jogar” jovens e adolescentes dentro dessas escolas que mais parecem prisões, cercadas de grades e portões gigantescos, que os segregam entre si, onde não é ensinada a diversidade de povos e culturas, tendo uma base curricular eurocêntrica, em detrimento dos saberes produzidos nas próprias comunidades. Será que escolas assim podem preparar jovens para o ensino superior e para o mundo do trabalho? Será que essas escolas podem estimular o senso crítico e a cidadania de jovens? Será mesmo que essa é a educação que queremos para o presente e para o futuro?
É de suma importância explicitar quais corpos sofrem mais dentro desses ambientes. Entre eles, estão pessoas trans e travestis, outras pessoas pertencentes ao movimento LGBTQIAP+ (principalmente as racializadas), pessoas indígenas, quilombolas, trabalhadoras do campo, ou seja, todos cor-
pos que são historicamente marginalizados. Pessoas com deficiência são estigmatizadas em nossa sociedade e tem gente que quer aumentar ainda mais a segregação, impedindo-as de frequentarem as mesmas escolas.
A educação ocupa um papel importantíssimo para o desenvolvimento de um país. Queremos outro modelo de desenvolvimento, que coloque o cuidado com as pessoas e com a natureza em primeiro lugar. Sonhar com uma educação que seja plural e acessível é fundamental, porque é impossível chegar a algum lugar que não tenha sido sonhado anteriormente. Entre as pessoas que sonham uma educação diversa e popular, principalmente para as meninas, é possível destacar Malala, que defende incansavelmente o direito de meninas e mulheres estudarem ao redor do mundo todo.
Existem experiências em outros países que podem nos inspirar, assim como em nosso país. Podemos aprender com a luta das populações indígenas e quilombolas pelo direito à educação escolar diferenciada, que respeite seus modos de vida, sua concepção de educação como um processo que se dá nas relações comunitárias e no vínculo com os territórios. Porém essas escolas sofrem com condições cada vez mais precárias de funcionamento.
É extremamente importante que a escola pública, sendo um grande pilar para o sistema educativo, seja uma prioridade “pra valer” para o Estado e para a sociedade. Não apenas garantindo o ensino das matérias, mas a qualidade desse ensino. O próprio sistema educacional precisa ser educado, para pensar no social. Confundem educação com escolarização e qualidade de ensino com simples testes de aprendizagem: não querem criar pensadores, mas máquinas de trabalho; matam os sonhos de seus alunos para alimentar uma sociedade onde o mercado dita as regras do “jogo”. Vivemos uma profunda crise, isso é inegável. Os retrocessos autoritários que estamos vivendo com a implementação do novo ensino médio, os cortes na educação, a evasão escolar e os impactos da pandemia e da violência contra a população negra, indígena e pobre, tudo isso contribui para que mais jovens e crianças sofram e percam a motivação e a esperança, tendo seus sonhos atropelados.
Por isso temos que agir! Se quisermos mudar o Brasil, que comece pela educação!
Queremos uma educação plural que ande lado a lado com as professoras e os professores, que os valorize, que pague salários dignos. Queremos equiparação salarial para os professores indígenas e quilombolas que recebem menos, mesmo tendo a mesma formação. Que as escolas do campo, das florestas e das periferias tenham toda a estrutura, materiais de apoio, dignidade e qualidade de ensino. Que a educação seja libertadora, com múltiplas formas de ensinar e aprender, que escute ativamente os estudantes em sua diversidade de sofrimentos, propostas e sonhos.
Queremos uma educação antirracista, anti-capacitista, anti-machista, anti-LGBTQIA+fóbica, destacando a necessidade de dar fim ao sofrimento gigantesco imposto às pessoas trans e travestis. Que ensine sem preconceitos e estereótipos a história e a cultura dos povos indígenas e afro-brasileiros, em cumprimento à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional alterada pelas Leis no 10.639/2003 e 11.645/2008. Que apoie as mães estudantes, tendo em vista que a falta de suporte e de compreensão expulsa da escola adolescentes e jovens que engravidam. Que garanta o bem-estar dos alunos na escola e no trajeto até ela. Que prepare os alunos para a vida adulta e para o ensino superior, que a escola possa se adaptar às diferentes realidades. Que fortaleça as universidades públicas e amplie as cotas e as políticas de ação afirmativa, garantindo condições efetivas para a permanência de estudantes negros, indígenas, quilombolas, com deficiência, periféricos e do campo, trans e travestis na educação superior.
Defendemos uma educação que inclui e não exclui. As pessoas com deficiência não “atrapalham”, como dizem alguns. Uma educação inclusiva, que se atente às especificidades de cada uma sem excluir ninguém, beneficia a todes. A educação inclusiva passa pela acessibilidade, pelos recursos materiais e tecnológicos, mas também pela superação dos preconceitos e dos moldes capacitistas que são incapazes de perceber as potências de cada estudante. E é dessa forma, com esse sistema que podemos criar uma sociedade melhor e, consequentemente, um Brasil melhor.
“A educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas mudam o mundo”. Paulo Freire, patrono da educação brasileira
O que precisa ser prioridade no país para efetivarmos o direito à educação de qualidade?
O debate sobre educação muitas vezes aparece invertido. Em geral, temos a política de educação se submetendo à verba “disponível”, sempre insuficiente. Historicamente, o dinheiro do povo é drenado para as elites. Mas deveríamos começar nos perguntando: que educação queremos (e precisamos) construir e para quem? Partir disso para definir os recursos necessários – que existem – e que sejam distribuídos de forma a enfrentar as desigualdades, ou seja, fazendo com que cheguem mais aonde sempre chegaram menos – caso das escolas indígenas, quilombolas, das periferias urbanas e do campo – e, assim, reparar parte da dívida histórica do Estado brasileiro com suas populações mais violentadas e oprimidas.
A prática da educação que temos continua privilegiando os mesmos de sempre, desde a colonização. Diante de tantos problemas e desafios, as juventudes feministas, negras, indígenas, quilombolas, periféricas e do campo, LGBTQIAP+ e com deficiências se unem para ocupar as universidades e escolas todos os dias, para pintar a educação de povo. Nossas lutas são plurais por uma educação democrática e participativa, que sirva à emancipação do nosso povo, das meninas e mulheres espalhadas pelo nosso país. Essa ocupação traz consigo o povo e a comunidade para tomarmos juntes o lugar de estudar e termos o direito de sonhar e realizar.
Precisamos nos mover!
Precisamos começar a olhar o nosso povo como caminho para a construção de políticas públicas efetivas que quebrem a opressão do elitismo e embranquecimento que ainda nos rondam. Quem está decidindo a educação do nosso país são homens, brancos, heteros, cis e ricos, que nunca sequer vivenciaram a situação precária da educação pública. O futuro que eles arquitetam é de continuar privilegiando somente a eles. Mas a educação é PÚBLICA e temos o nosso direito de sermos doutoras e doutores. Precisamos nos mover e nos perguntar: o que fazemos pelo presente das meninas? Meninas negras, indígenas, quilombolas, LGBTQIAP+, meninas trans e travestis, meninas com deficiência, periféricas e do campo, para assim construirmos um futuro no feminino.
A educação que eles constroem é para quem?
Para efetivar o direito à educação de qualidade precisamos quebrar o modelo de “reformas” que vêm de cima para baixo. Precisamos transformar as reformas estatais em intervenção popular, que não forme apenas trabalhadores reféns da exploração capitalista e sim pensadores críticos, que não reduzam seu potencial a apenas uma profissão “bem remunerada”. Que os estudos alimentem uma dignidade sem depender de um diploma que fica na parede, ou seja, essa noção de que alguém só tem validade por sua carreira. Quando a pedagogia politiza, massas e coletivos se movimentam. Mulheres negras, trans e travestis, indígenas, quilombolas, com deficiência, mães, filhas, líderes e periféricas são humanizadas, a política se faz e acontece. As desigualdades são superadas, o Estado opressor se desfaz, a população vai pra rua, pela intervenção e libertação dos nossos. Queremos ocupar os espaços de poder!
Por fim, queremos que entendam que a forma de se fazer educação no Brasil, para nós – meninas negras, indígenas, quilombolas, faveladas, de periferias, meninas trans, travestis, trabalhadoras rurais, com deficiência, juntas aqui nesse grupo e nos diversos embates – não é uma educação que atende às nossas pluralidades, às nossas mais simples necessidades. “Desfrutamos” de uma educação ilusória, que não chega até nós. Sonhamos com o dia em que desfrutaremos de uma educação de boa qualidade – sem machismo, racismo, LGBTQIA+fobia e capacitismo – que complemente quem somos, que valorize nossas ancestralidades e não nos obrigue a seguir um sistema que com certeza vai apagar a nossa história, que nos molda e nos torna seres inconscientes de quem somos e de por que estamos aqui.
A luta é por uma educação para todas, todes e todos! A educação que conscientiza, que liberta e fortalece todos dentro das suas especificidades!
Eu não quero mais uma educação que me faça sentir medo de expor minhas opiniões. Eu quero uma educação em que eu possa ser eu mesma, com minhas heranças culturais e sociais, em um ambiente onde ser diferente não me torne excluída. Lorrane Macedo, 19 anos, jovem negra do campo
Eu sonho com uma educação em que todos sejam aceitos. Para chegar a uma educação de qualidade, a gente precisa de igualdade e respeito. Sonho com uma educação que respeite minha cor, minha religião e meu gênero. Ana Luiza Roque, 17 anos, jovem negra e quilombola
Muitas escolas têm uma estrutura física incompatível com as necessidades dos alunos e os recursos financeiros destinados estão abaixo do necessário. Rhaynnara Borges, 19 anos, jovem do campo
A educação que eu quero é uma educação de qualidade, em que as mães na adolescência não tenham que largar a escola para cuidar da casa ou dos filhos porque na escola não tem apoio para elas. Shayres Pataxó, 18 anos, jovem indígena
Muitas vezes, as vozes das pessoas jovens são ignoradas pelas pessoas. Costumam falar que os jovens são o futuro, mas também somos o presente. Para fazermos um futuro melhor, precisamos ter atenção no presente. Maria Clara Tumbalalá, 18 anos, jovem indígena
Tenho esperança em ver a escola da minha comunidade estabilizada e que todas as crianças e jovens se realizem. Mel Kaimbé, 17 anos, jovem indígena
Eu quero uma educação pintada de povo! Uma educação que converse com a realidade do povo, que se construa das ruas para dentro das escolas. Uma educação que construa o país como uma sala de aula. Bia Diniz, 16 anos, jovem negra e pansexual
Eu quero uma educação que trabalhe a realidade dos alunos, que estimule o protagonismo dos educandos. E que seja utilizado material didático contextualizado e que o ambiente escolar tenha todos os equipamentos necessários para que os alunos desenvolvam suas habilidades. Vitória Souza, 21 anos, jovem negra e quilombola
Nada melhor do que um documento que seja escrito por pessoas que vivem a educação diariamente. Por isso, este manifesto é tão importante, porque a gente representa toda a diversidade e pluralidade brasileira, a gente sabe das nossas vivências. Lorena Bezerra, 18 anos, jovem negra e quilombola
Esse manifesto surge da necessidade de um documento que dê voz às mulheres, que faça outras mulheres se movimentarem, se articularem e se politizarem em lutas sociais. Maria Eduarda Moreira, 17 anos, jovem negra e periférica
Eu, como uma menina travesti, preta e periférica, não quero uma instituição de ensino onde eu tenha medo de estar e de estudar, onde meu nome social não seja respeitado. Uma educação de qualidade é uma educação constante, anti-conservadora, como um fenômeno sempre em movimento e mudança. Angel Queen, 19 anos, jovem travesti, preta e periférica
Eu não quero mais uma educação seletiva e elitista, uma educação privatizada em que grande parte da população é esquecida e inferiorizada. Para chegar em uma educação de qualidade, a gente precisa de mais inclusão, acessibilidade e empatia. Thalita Nogueira, 18 anos, jovem negra e periférica
O que vemos hoje são escolas que mais parecem prisões, com professores e alunos sem esperança. Nós sonhamos com uma educação que seja verdadeiramente para todes, uma educação emancipatória e que liberte as pessoas. Uma escola que permita aos alunos sonhar. Lua Quinellato, 18 anos, jovem travesti
Eu sonho com uma educação em que pessoas como eu não sejam abandonadas na escola, sozinhas, porque o ônibus para o passeio estava com a rampa quebrada. Eu sonho com uma educação que me veja e veja os meus como pessoas dignas de respeito e igualdade, não como anjos intocáveis. Maria Viviane Lima, 17 anos, jovem negra com deficiência
Eu não quero essa educação em que quem tem dinheiro vale mais. Eu sonho com uma educação em que tenhamos todos os recursos, desde um currículo voltado para a nossa cultura e nosso modo de vida, podendo ter o mesmo acesso às tecnologias. Julia de França, 15 anos, jovem negra e quilombola
A educação que eu desejo é aquela em que eu possa ter direito a tudo que está na lei, em que eu possa me sentir bem quando eu expresso minha cultura, meu gênero, minhas origens. Uma educação que me escute e capaz de entender minhas ideias, propostas para educação da minha escola. Maria Clara Silva, 16 anos, jovem do campo
Eu quero uma educação onde uns dos maiores desafios não seja continuar de fato estudando. Onde a falta de professores, dificuldade de locomoção até a escola não exista mais. Eu quero uma educação que o acesso venha igual para todos, e que a gente se sinta ouvidos e acolhidos. Glenda Teixeira, 16 anos, jovem periférica
Eu quero uma educação sem preconceitos, onde as nossas necessidades sejam levadas em consideração. A qual possamos nos sentir respeitados e assistidos. Amanda Andrade, 14 anos, jovem negra com deficiência
Os desafios na educação são inúmeros: desde o ambiente escolar precário até a falta de preparação para o suporte ao aluno. Isso se intensifica em escolas periféricas. Quando temos um percentual maior de candidaturas diversas de pessoas periféricas, pessoas com deficiência, negras e meninas trans e travestis, LGBTQIAP+, ainda é difícil para as mesmas conseguirem colocar seus planos em ação. É preciso mudar isso! Carolaine do Nascimento, 17 anos, jovem negra periférica
A educação escolar indígena é um dos maiores desafios das nossas comunidades, a implantação do que foi formulado e desejado ainda está longe do ideal para nossas comunidades. Ainda temos a desigualdade salarial dos professores indígenas, que recebem menos do que os professores não indígenas. Queremos que nós mulheres indígenas tenhamos mais segurança e respeito em nossas escolas e universidades. Hellen Sharen Pataxó e Atikum, 17 anos, jovem indígena