Violações ao direito à alimentação escolar durante a pandemia são objeto de relatório da Plataforma Dhesca

Documento aponta violações ao direito humano à alimentação e indica os casos do Estado do Rio de Janeiro e do município de Remanso (BA) como situações extremas. Relatório apresenta também recomendações.

Em arte de colagem, é possível ver uma foto preto e branco de um prato de comida. No prato há arroz, feijão, alface, carne e abobrinha. Ao fundo da colagem há textura quadriculada.

A Plataforma Dhesca Brasil disponibiliza o Relatório da Missão sobre Violações ao Direito à Alimentação Escolar na Pandemia de Covid-19: Casos do Estado do Rio de Janeiro e do Município de Remanso (Bahia).

Realizada no segundo semestre de 2020, a missão trouxe à tona violações ao Direito à Alimentação e à Nutrição Adequadas (Dhana) no contexto da distribuição de cestas de alimentos do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) na pandemia, tais como o não atendimento a todos os estudantes, a má qualidade e irregularidade na distribuição das cestas, a falta de participação social e prestação de contas, além da interrupção da compra de alimentos da agricultura familiar.

Essas violações acontecem no momento em enfrentamos a maior situação de fome das últimas décadas. O recém lançado Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, realizado em dezembro de 2020 mostrou que 19,1 milhões de brasileiros, ou 9% da população, estava em situação de insegurança alimentar grave, uma condição análoga à fome.

O auxílio emergencial foi interrompido de forma abrupta, e está sendo retomado tardiamente e com valor insuficiente, e não há solidariedade da sociedade e filantropia capaz de dar conta de tamanha fome. Por outro lado, nossos governantes têm nas mãos e vem gerindo de forma pouco comprometida o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), um dos mais importante instrumentos para a promoção do direito humano à alimentação de crianças e adolescentes.

“Assegurar a alimentação das crianças e adolescentes mais vulneráveis durante a pandemia deveria ser prioridade para os nossos governantes. Mas não é. O PNAE é a mais potente ferramenta que temos para o enfrentamento da fome. Mas há um enorme descaso. Falta coordenação nacional, recursos públicos e vontade política para fazer alimento de qualidade chegar na mesa de quem precisa.” afirma Mariana Santarelli, responsável pela relatoria.

Ela avalia ainda que a situação tem se agravado com a chegada de novos/as prefeitos/as e secretários/as: “As novas equipes nem sempre estão familiarizadas com a gestão do programa. Há ainda constantes incertezas quanto a volta às aulas. Com isso, o que vemos em muitos lugares é a paralisação na distribuição das cestas, em um momento de agravamento da fome e ausência de auxílio emergencial.”

Para chegar ao diagnóstico das violações, foram realizadas entrevistas remotas com mães de alunos, representantes de grupos de agricultores e pescadores, gestores, professores, membros de conselhos e do Legislativo. A missão contou ainda com a promoção de duas audiências populares, uma das quais contou com a participação do . Relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito Humano à Alimentação, Michael Fakhri.

“Os dois casos relatados foram selecionados pelo que expressam do ponto de vista prático e simbólico. Foram escolhidos por representarem situações extremas, em que se pode afirmar a existência da violação da obrigação de promover e prover o direito humano à alimentação por parte do poder público”, afirma o relatório.

Rio de Janeiro: violação respaldada pelo Supremo Tribunal Federal

A rede estadual de educação do Rio de Janeiro atende cerca de 661.600 alunos, em um total de 1.168 escolas. Para isso, recebe anualmente do FNDE cerca de R$ 59 milhões, orçamento este que é complementado com recursos próprios do governo do estado, totalizando o insuficiente per capita de R$ 1,00 por refeição. Durante a pandemia, o governo do estado do Rio de Janeiro não distribuiu os alimentos de forma regular, com qualidade e a todos os estudantes, além de ter suspendido a compra de alimentos oriundos da agricultura familiar. As decisões foram tomadas sem diálogo com as comunidades escolares e a situação foi objeto de intensa mobilização de familiares, dando origem, inclusive, aos movimentos Mães de Itaboraí e Passeata das Mães.

“A irregularidade da distribuição, a má qualidade da alimentação sugerida e a não aquisição de alimentos frescos e saudáveis da agricultura familiar ferem o que está preconizado na Lei do PNAE”, diz o relatório.

Para além disso, no Rio de Janeiro houve um fator agravante de que o descumprimento da Lei do PNAE foi respaldado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Após o governo estadual do Rio de Janeiro ter descumprido a lei do Programa, uma Ação Civil Pública foi ajuizada pela Defensoria Pública e acatada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), determinando que o Estado distribuísse alimentos a todos os estudantes da rede sob pena de multa. Porém, em 1 de setembro de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu a decisão do TJ-RJ.

“Infelizmente com a decisão da mais alta Corte do país, a execução forçada do julgado restou interrompida, o que pode gerar risco à segurança alimentar e nutricional de muitas crianças não só do Estado do Rio de Janeiro, mas de todo o país, uma vez que a decisão do STF tende a ter efeito cascata sobre os processos similares”, analisa a relatoria.

Ouvido durante a missão, o relator da ONU Michael Fakhri ponderou que o modelo de alimentação escolar do Brasil já foi considerado um exemplo para o mundo, mas que, pelos relatos da pandemia, os governos, nos seus diferentes níveis, têm tratado a alimentação não mais como direito, mas como caridade. “O problema com esse modelo de caridade é que isso acaba com a dignidade das pessoas”, analisou ele durante a audiência popular.

Remanso (BA): interrupção de compra de alimentos compromete renda de agricultores e pescadores

Em Remanso (BA), a relatoria também diagnosticou a falta de atendimento universal, já que foi distribuída apenas uma cesta por família,e não por aluno, apenas duas vezes em um período de 6 meses, e com uma quantidade muito pequena de alimentos. Em muitas escolas rurais a cesta nem chegou a ser distribuída.

O agravante neste caso é que, com o fechamento das escolas, houve a interrupção das compras de alimentos via agricultura familiar e pesca artesanal, o que comprometeu a renda de agricultores e pescadores da região. Segundo a relatoria, grupos de agricultores e pescadores que, ao longo de 2019 receberam a quantia de mais de R$ 630 mil com o fornecimento de alimentos para as escolas do município, não receberam nada em 2020.

Esta realidade se reproduz pelo Semiárido. Em 2019, aproximadamente 4,5 mil produtores de alimentos, organizados em 168 grupos produtivos da região, tiveram um rendimento de aproximadamente R$ 27 milhões. Até setembro deste ano, os mesmos coletivos venderam o equivalente a apenas R$ 3,6 milhões o que, em grande medida, corresponde a vendas feitas antes das medidas de isolamento social.

“Chamamos para conversa, fomos conversar com a Secretária de Educação, alguns de nós somos parte do CAE. Fizemos reunião, e deram a desculpa da logística, com discurso de um decreto que desobrigava. E até agora nada aconteceu. O que foi falado é que esse dinheiro não ia ser mexido, porque ia ser guardado até a volta das aulas, guardado pra quando passar a pandemia”, denunciou à relatoria uma representante do Serviço de Assessoria a Organizações Populares (Sasop) que atua junto aos agricultores e pescadores de Remanso.

De acordo com a relatoria, antes do fechamento das escolas, ao menos três grupos formais e 10 informais já haviam assinado contrato com a prefeitura do município para fornecimento de alimentos. “Esperava-se, portanto, que com a autorização do FNDE para a distribuição de gêneros alimentícios, em caráter excepcional, adquiridos com recursos do PNAE, esses contratos anteriormente firmados fossem cumpridos, o que até novembro ainda não havia acontecido”, afirma o documento.

“A situação que se instalou em Remanso no contexto da pandemia da Covid-19, por conta da falta de diálogo e determinação política da gestão municipal, impacta de maneira direta a alimentação das crianças e adolescentes do município, as rendas de agricultores e pescadores e a economia local. Cabe informar que ao longo do processo de escrita desta relatoria tentamos, sem sucesso, agendar entrevistas com a Secretária de Educação, vereadores e representantes do CAE [Conselho de Alimentação
Escolar]l”, diz o relatório.

Recomendações

Considerando as violações diagnosticadas em 2020, o relatório apresenta ainda uma série de recomendações ao poder público, tais como: a ampliação do orçamento do PNAE, a partir do aumento real do valor per capita e reajuste anual pela inflação; revisão da composição das cestas, com alimentos frescos e minimamente processados, a retomada imediata das compras da agricultura familiar, e a adoção de estratégias que garantam maior transparência e a participação da comunidade escolar nas decisões.

No atual contexto, em que grande parte das escolas estão adotando modelos híbridos, que combinam aulas presenciais e remotas, é preciso assegurar que a alimentação escolar seja fornecida a todos, mesmo os que não voltarão às aulas.

Além de ser divulgado nacionalmente, o Relatório será encaminhado — a fim de que medidas cabíveis sejam tomadas — ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Escolar (FNDE), ao Ministério Público Federal (MPF), à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, ao Conselho Nacional de Direitos Humanos, às comissões de educação da Câmara dos Deputados e do Senado, ao governador do estado do Rio de Janeiro, ao prefeito de Remanso, e aos respectivos secretários de educação.

Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE)

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), responsável pela oferta de alimentação escolar a todos os estudantes da educação básica pública, é uma das mais relevantes políticas públicas voltadas à garantia do Direito Humano à Alimentação e à Nutrição Adequadas (DHANA) e uma das poucas que resiste ao sistemático desmonte de direitos que está acontecendo no Brasil. O PNAE atende cerca de 41 milhões de estudantes, com repasses financeiros da ordem de R$ 4 bilhões anuais aos 27 estados e 5.570 municípios.

Para muitos desses estudantes é na escola que se faz a única ou principal refeição do dia, o que é de extrema relevância para a garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Além disso, o PNAE é estratégico na estruturação de redes de abastecimento da agricultura familiar: 30% dos recursos repassados para a execução do programa, aproximadamente R$ 1,2 bilhões anuais, deve ser destinado à compra direta de alimentos da agricultura familiar. Isso gera impactos positivos tais como a geração de renda, a dinamização de economias locais, a melhoria da qualidade nutricional e a valorização da cultura alimentar regional.

Sobre a Plataforma Dhesca Brasil

Criada em 2002, a Plataforma Brasileira de Direitos Humanos – Dhesca Brasil é uma rede formada por 45 organizações e articulações da sociedade civil, que desenvolve ações de promoção e defesa dos direitos humanos, incidindo em prol da reparação de violações. A Plataforma Dhesca Brasil tem como princípio a afirmação de que todas as pessoas são sujeitas de direitos e, como tal, devem ter todos os direitos assegurados para garantir as condições de vida com dignidade.

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