Como escolas podem conversar com famílias sobre gênero e sexualidade

Aproximar famílias do cotidiano escolar é um dos caminhos para ampliar a gestão democrática e o trabalho coletivo para a garantia dos direitos de estudantes

Como escolas podem conversar com famílias sobre gênero e sexualidade

Abordar questões de identidade, gênero e sexualidade é um dever das escolas e um direito dos estudantes, porque seu desenvolvimento integral e a convivência democrática e respeitosa em sociedade dependem disso. No entanto, um dos principais desafios é aproximar as famílias do fazer pedagógico para que elas participem e conheçam do que se trata esse trabalho.

“Não é pedir permissão, mas convidar as famílias a estarem mais presentes, porque elas são fundamentais para o cotidiano escolar e para concretizar uma gestão democrática. Além disso, elas têm um papel complementar ao da escola no desenvolvimento das crianças, adolescentes e jovens. É preciso que elas trabalhem juntas”, afirma Bárbara Lopes, coordenadora do projeto Gênero e Educação da Ação Educativa.

Nessa jornada, os conflitos vão aparecer e eles, em si mesmos, não são um problema, desde que não escalem para ameaças e agressividade. “O conflito faz parte da nossa convivência e da democracia e pode ser muito pedagógico”, explica Bárbara.

Educação em sexualidade 

Ao aproximar as famílias do trabalho que a escola desenvolve em torno destas questões, é possível desfazer mal entendidos e a desinformação. Assim, elas têm a oportunidade de compreender por que se trata de um direito humano que contribui para o desenvolvimento integral de todos.

“A educação em sexualidade ajuda a combater violências e a prevenir a gravidez não planejada e as ISTs. Mais do que isso, traz informações seguras sobre a puberdade e as adolescências, em meio a determinados contextos culturais e sociais. Também é sobre entender e respeitar os direitos e as identidades dos outros, a nossa diversidade humana”, diz a psicóloga Cristiane Narciso, que coordena os programas de Juventude, Sexualidade e Gênero da Fundação Gol de Letra.

Esse trabalho também é fundamental para promover um ambiente escolar seguro, acolhedor e inclusivo para toda a população LGBTQIAP+, que não a exclua das salas de aula e não viole seu direito à Educação. “A educação antirracista e a equidade social também sempre precisam fazer parte destas pautas de forma interseccional”, destaca Cristiane.

Confira algumas orientações das especialistas para abordar os temas de identidades, gênero e sexualidade, que podem ser adaptadas de acordo com a demanda de cada comunidade escolar e território:

Estreite as relações

Nos últimos anos, abordar identidade, gênero e sexualidade nas escolas se tornou alvo de controvérsias e motivo de perseguição a educadoras e escolas. O Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas apresenta orientações jurídicas e estratégias político-pedagógicas em defesa da liberdade de aprender e de ensinar, baseadas em leis nacionais e internacionais que garantem esse direito às escolas e aos estudantes. 

Superar esse ponto sensível é o primeiro desafio. “O movimento ultraconservador corroeu os vínculos e criou desconfiança entre famílias e educadores. Por isso, precisamos construir laços permanentes e contínuos com as famílias, não só quando aparecem situações potencialmente mais conflitivas”, afirma Bárbara. 

A questão religiosa também pode exercer resistência aos temas, o que demanda acolhimento e escuta dos educadores para que as famílias não se afastem. “É uma paciência pedagógica para tentar aproximar as pessoas sem abrir mão do que diz respeito aos direitos humanos básicos”, sintetiza Bárbara.

Mobilize o território

Além da escola e da família, a educação também é responsabilidade de toda a sociedade. Dessa forma, pode ser interessante mapear centros culturais, unidades de Saúde e outros setores que possam fortalecer o trabalho da escola e ampliar o diálogo com as famílias. “Também vale contar com as famílias que são mais abertas e engajadas e podem ajudar a aproximar outras”, indica Bárbara. 

Planeje um formato atrativo

A forma de apresentar os temas de identidade, gênero e sexualidade para as famílias importa tanto quanto mobilizar metodologias mais ativas com os estudantes. Dessa forma, as especialistas recomendam fugir do formato tradicional de reunião.

“Propor um dia da família, com oficinas e rodas de conversa, em agrupamentos variados, em um ambiente diferente, que favoreça a conversa entre todos, até atividades lúdicas e corporais, aproxima mais e mostra como funcionam as atividades na prática com os estudantes, tirando medos e preconceitos em torno disso”, recomenda Cristiane.

Explique por que também é papel da escola abordar estes temas

Famílias e escolas têm responsabilidades complementares. É papel das escolas garantir o acesso a informações seguras e atuais a tudo que diz respeito ao desenvolvimento dos estudantes e dos temas em pauta na sociedade. 

“A família não pode impor o que o estudante deve ou não ter acesso, porque ele não é propriedade da família e tem direito a acessar todo o conhecimento humano e informações presentes no mundo”, diz Bárbara. 

Nesse sentido, a popularização do acesso à internet cada vez mais cedo já é uma fonte de informações – e desinformações – para as curiosidades das crianças e adolescentes. Escola e família podem, portanto, ser aliadas. “A escola pode ajudar os estudantes a terem uma postura crítica diante de conteúdos que não têm base científica e são violentos”, pontua Bárbara.

A pesquisa Educação, Valores e Direitos, realizada pela Ação Educativa, também mostrou que as famílias se sentem pouco à vontade para abordar esse tema com as crianças e adolescentes. “As famílias reconhecem que têm alguns pontos que não vão conseguir dar conta”, relata Bárbara.

Se for o caso, pode ser interessante apresentar registros em vídeo e foto do que foi trabalhado com os estudantes e até relatos das crianças e adolescentes sobre o que acharam das atividades e o que aprenderam. Se as atividades ainda não tiveram início, é o caso de compartilhar o planejamento da escola e abri-lo para intervenções das famílias, como pede a gestão democrática.

Cuide da linguagem

O debate precisa ser acessível, porque o tema é cheio de termos que não fazem parte do cotidiano de muitas famílias. “Muitas famílias não se sentem à vontade para conversar e se posicionar por falta de conhecimentos sobre o tema e por eles próprios terem um afastamento com a escola e os conhecimentos pela vivência difícil que muitos deles tiveram quando crianças”, lembra Bárbara.

Dessa forma, fugir de discursos técnicos e explicar em linguagem simples o que significa cada um dos termos que surgirem na conversa é o melhor caminho. “É lembrar que estamos falando de pessoas, de vidas”, diz a coordenadora do projeto Gênero e Educação.

A pesquisa Educação, Valores e Direitos também mostrou que trazer notícias sobre o tema, falar sobre a importância de prevenir a gravidez na adolescência e ISTs, bem como histórias de escolas que conseguiram identificar situações de abuso, costuma mobilizar as famílias de forma favorável para começar o trabalho e, depois, evoluir para os demais temas.

“Quando perguntamos se as famílias concordam que a escola deve promover o respeito, a concordância é muito alta, e pode ser um caminho para começar essa aproximação”, aponta Bárbara.

Veja em Como escolas podem conversar com famílias sobre gênero e sexualidade – Centro de Referências em Educação Integral

8 iniciativas que falam de gênero, sexualidade e raça nas quebradas

Coletivos e projetos culturais fomentam debates sobre direitos humanos em diferentes formatos

Imagem de destaque da matéria "8 iniciativas que falam de gênero, sexualidade e raça nas quebradas". Na foto há um menino dançando no meio de uma roda

É a partir do senso de comunidade que iniciativas nas periferias de São Paulo acontecem todos os dias – são pessoas de todos os cantos, movidas pela coletividade, que fazem o “corre” ser realizado. O projeto Gênero e Educação da Ação Educativa selecionou algumas iniciativas que estão fomentando debates sobre questões voltadas a gênero, sexualidade e/ou raça nas pontas da cidade, de norte a sul, de leste a oeste ou até mesmo no interior.

“A gente é comunidade junta, a gente é mutirão em dias ruins”

“Favela venceu” – Don L

Espaço Puberê

Nascido no Grajaú, zona sul de São Paulo, o “Espaço Puberê” começou ainda em 2009, discutindo temas voltados à sexualidade infanto juvenil com oficinas de prevenção a ISTs (infecções sexualmente transmissíveis) e gravidez não planejada na adolescência. Com o passar do tempo, temas como educação emocional, parentalidades, educação em sexualidade e defesa de direitos humanos passaram a ser pautas abordadas pelo espaço.

Elânia Francisca, coordenadora do espaço, conta que o foco do Puberê é a “defesa e a proteção do direito ao desenvolvimento integral saudável de crianças e adolescentes, sobretudo da juventude periférica e negra, respeitando seus direitos sexuais e reprodutivos”. Francisca revela que uma das experiências mais marcantes durante a atuação no espaço foi quando uma pastora de uma igreja evangélica convidou o Puberê para dar oficina de autocuidado para adolescentes. “Para nós foi significativo pois sabemos o quanto o fundamentalismo religioso fragiliza as ações nas quebradas, e ter uma pastora sensível para esses temas mostra o quanto somos reconhecidas como uma coletiva que realiza um trabalho de respeito aos corpos e não de erotização, como muitas fake news tentam pregar.”

Imagem via Instagram @espacopubere e @vulvarias

Masculinidade Quebrada

O Masculinidade Quebrada surgiu em 2018 no Grajaú, Zona Sul de São Paulo, a partir das movimentações que o debate de gênero ganhava na região – mas que vinham de mulheres e meninas. Em uma metodologia de seis conversas, que abordam masculinidade, rede de afetos, sexualidade, relação com o feminino, violência de Estado e novas possibilidades, o coletivo nasceu com a ideia de “quebrar” a masculinidade hegemônica, trazendo novas perspectivas para que pessoas de todas as idades que se identificam com o masculino entendam gênero como algo construído socialmente. 

“O Grajaú é um dos distritos com maior número de notificações de violência de gênero, então havia uma constatação de que era urgente pensar sobre relações de gênero com homens, não só com mulheres”, comenta Raul Gomes, psicólogo responsável pelas atividades do coletivo. A iniciativa também conta com a supervisão de Elânia Francisca do Puberê, para que os integrantes e responsáveis do coletivo possam realizar “uma crítica maior aos processos de masculinidade”, conforme explica Gomes.

Imagem via Instagram @masculinidadequebrada

Okupação Cultural Coragem

A Okupação Cultural Coragem existe desde 2016, originada de um projeto chamado “Reggae na rua”, em que artistas tocavam um som de forma totalmente independente nas imediações da COHAB II, Zona Leste de São Paulo. Dos shows de reggae às batalhas de rap, artistas e produtores culturais passaram a ocupar um espaço nos arredores da Praça Brasil que viria a se tornar a Okupação, fortalecendo as atividades de artistas da região.

Com exposições como a “Aruanda”, que fala sobre religiões de matrizes africanas, e fortalecendo o corre de mulheres periféricas – são sete mulheres e dois homens na coordenação do coletivo -, a Okupação funciona de domingo a domingo, com coletivos de literatura, teatro, dança, rap, entre outras manifestações culturais que integram a programação cultural do espaço. “Hoje, a Okupação Cultural Coragem faz parte do circuito cultural da cidade, e o que eu mais curto são as exposições – a gente traz para a ocupação boas exposições, com muita qualidade, pra comunidade periférica acessar”, comenta Michele Cavalieri, produtora cultural e presidente do coletivo C.O.R.A.G.E.M – Coletivo de Ocupação, Revitalização, Arte, Graffiti, Educação e Música.

Imagem via Instagram @okupacaoculturalcoragem

Mães do Morro

Mães artistas, artesãs e oficineiras são as protagonistas das atividades realizadas pelo coletivo “Mães do Morro”, que surgiu em 2019 devido à falta de espaço e acolhimento para elas e seus filhos – tanto em eventos no território do Morro Doce, zona noroeste de São Paulo, quanto em outros lugares da cidade. Além das atividades culturais, as mães do morro organizam palestras e assessorias jurídicas sobre abandono paterno, violência doméstica, violência obstétrica, não romantização da maternidade, entre outros temas. 

“Além de fortalecer o fazer cultural da quebrada, o coletivo também tem um espaço de formação, principalmente para mulheres em situação de vulnerabilidade social”, conta Cida Marinho, uma das responsáveis pela iniciativa. “Por meio das rodas de conversa, podemos trazer dores, espaços de troca, vivências e espaços de escuta para essas mulheres”, complementa, em atividades que acontecem em praças e centros culturais da região.

Imagem via Instagram @maesdomorro

Rede Família Stronger

Fundado por Roberto Stronger, o coletivo surgiu em 2006 no Largo do Arouche, região central de São Paulo, com o intuito de proteger e acolher pessoas periféricas LGBTQIA+. Após 17 anos de atuação, o objetivo principal do coletivo é o direito à cidade, trabalhando com setorizações voltadas à atuação política e à promoção da saúde, principalmente com a prevenção de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), e por núcleos, como os voltados a pessoas transmasculinas, periféricas e negras.

Elvis Justino, integrante da Família Stronger há mais de 10 anos, explica que promover cultura pelo caminho inverso “saindo da Paulista e região central e voltando para nossos barracos e vielas” é revolucionário, pois além da ocupação da cidade ser um direito, e não um favor, “pessoas LGBT da periferia estão sendo protagonistas de suas próprias histórias.”

Imagem via Instagram @redefamiliastronger

Coletivo Acuenda

O Acuenda é um coletivo de drag queens que surgiu em 2014 no Jardim Romano, Zona Leste de São Paulo. Entre espetáculos e conversas sobre temas como gênero, sexualidade, racismo ou xenofobia, é por meio da cultura que os integrantes do coletivo divulgam a arte drag queen periférica e desejam que ela seja cada vez mais pulsante e viva nos extremos da cidade.

“A gente fala muito sobre identidade de gênero, orientação sexual e sobre a linguagem drag mesmo, que muitas pessoas ainda confundem com travestis e transexuais, e colocamos isso muito em pauta para mostrar as diferenças. Através dos eventos culturais, conseguimos aos poucos plantar essas sementinhas nas pessoas”, conta Bruno Fuziwara, da coordenação do coletivo. 

Imagem via Instagram @coletivoacuenda

Maracatu Ouro do Congo

Entre as construções de alfaias e os batuques, educadores iniciaram as atividades do Maracatu Ouro do Congo em 2009, mas a ideia de que ali se formava um grupo começou a partir de 2010, com um maior estudo sobre as questões de espiritualidade que envolvem o maracatu. A partir das atividades realizadas pelos artistas, uma rede de articulação cultural passou a se formar de maneira orgânica no Campo Limpo, Zona Sul de São Paulo, com o maracatu sendo levado a oficinas em diversas escolas e espaços culturais da região.

“A gente tem como objetivo trazer essa cultura pra cá – quando ela atravessa 3 mil quilômetros de Recife até São Paulo, a gente acolhe com muito respeito às questões de espiritualidade e as técnicas, queremos entregar algo com excelência como eles nos ensinam”, conta Paulo Félix Pinheiro, um dos fundadores do Maracatu. Ele relata que coloca toda a energia possível quando toca o tambor porque o maracatu não é só por ele, mas também por Antônio Severo da Silva: fundador do Ouro do Congo nascido em Cabo de Santo Agostinho (PE), que tinha o sonho de viver o Maracatu em São Paulo.

Imagem via Instagram @maracatuourodocongo

Adeola – Princesas Guerreiras

Ao serem convidadas para conversarem com crianças e adolescentes em um centro cultural no interior de São Paulo em 2015, as educadoras Denise Teófilo e Raísa Carvalho perceberam que o referencial literário de quando eram crianças não tinha muitas referências de personagens negras – e quando existia essa representação, muitas vezes era fomentando subjetividades racistas. Assim, nasce o “Adeola – Princesas Guerreiras”, que leva às crianças referências estéticas, históricas, de música e de arte dos povos africanos e afro-brasileiros. 

“Nossa proposta é conseguir criar imagens e possibilidades de histórias sobre rainhas e guerreiras,  envolvendo o lúdico e a brincadeira para acessar memórias sobre a história que ainda precisa ser recontada”, compartilha Teófilo. Das experiências mais marcantes do projeto, a educadora destaca o momento de coroação com turbantes, em que as crianças constroem coroas com tecidos. “O brilho no olhar das crianças pretas ao verem as princesas com certeza é a nossa experiência mais marcante.” 

Imagem via Instagram @princesasadeola