ONU Mulheres lança diretrizes para o atendimento de mulheres e meninas vítimas de violência

Tendo diretrizes elaboradas com base em recomendações internacionais, o documento preocupa-se com em conectar mulheres e serviços na pandemia.

Imagem de destaque em que é possível ver uma mulher beijando o rosto de uma menina. Elementos pontilhados e linhas entrelaçadas estão atrás delas.

No ano que marca os 14 anos da Lei Maria da Penha, a ONU Mulheres, em parceria com a União Europeia, lança as Diretrizes para atendimento em casos de violência de gênero contra meninas e mulheres em tempos da Pandemia da COVID-19. Este documento é um instrumento importante para orientar os fluxos de atendimentos remotos, para a maior proteção da vítima e fortalecimento das redes de acolhimento.

Dever do Estado e da sociedade

“A grande questão é saber o quanto o Estado brasileiro e a sociedade estão aliançados e comprometidos com esses 14 anos de uma lei que tem em seu preâmbulo o compromisso de prevenir, punir, erradicar toda e qualquer violência doméstica e familiar contra a mulher. A começar pela prevenção de forma efetiva, a análise que eu faço sobre a mesma durante esses 14 anos é que a sua trajetória tem sido oscilante e por isso mesmo tão vacilante no discurso e nas práticas dos gestores que estão a frente das políticas públicas em todas as instâncias oferecidas às mulheres em situação de violência com de suas famílias.” afirma Maria da Penha, convidada especial no lançamento do documento.  

As diretrizes orientam conselhos de direitos, profissionais de serviços especializados e não especializados em atendimento a mulheres em vítimas de violência, bem como a quaisquer organizações de políticas que acolhem mulheres de todas as idades e raças em situação de violência doméstica e familiar neste contexto de pandemia da COVID-19. 

O lançamento online, realizado no dia 07, de agosto teve a participação da Maria da Penha e Conceição Andrade, do Instituto Maria da Penha, da Cristiane Britto Secretária Nacional de Política para as Mulheres , da Anastasia Divinskaya representante da ONU Mulheres Brasil, da pesquisadora Wânia Pasinato, do embaixador da União Europeia no Brasil Ignacio Ybañez Rubio e a mediação foi realizada pela gerente de Programas da ONU Mulheres Brasil, Ana Carolina Querino.

Assista na íntegra:

Recomendações internacionais como base para as diretrizes

As diretrizes foram elaboradas com base em recomendações internacionais para atuação dos governos em casos de violência contra mulheres e meninas durante a pandemia, em protocolos internacionais de atendimento, fluxos e proteção de dados em casos de crises sanitárias e humanitárias. 

O documento das diretrizes está organizado em três partes: 

  1. Recomendações para a organização dos serviços e da rede para o atendimento presencial e remoto;
  2. Diretrizes para o atendimento;
  3. Recomendações para coleta de dados e o armazenamento das informações sobre os casos atendidos.

“Há no documento uma preocupação com a criação de canais alternativos para conectar mulheres e serviços. A diversificação de meios, utilizando recursos tecnológicos, telefonia, internet, aplicativos é importante. Mas é insuficiente numa sociedade economicamente desigual, social e culturalmente diversa como a sociedade brasileira. É preciso que cada iniciativa seja cuidadosamente planejada na sua implementação – com protocolos, com a capacitação dessas pessoas que poderão atender essas mulheres, cuidados nas formas de divulgação e, principalmente, com a criação de monitoramento para avaliar o sucesso da medida e o acesso aos recursos criados”, aponta a pesquisadora do documento Wânia Pasinato.

Baixe aqui o documento.

Lei Maria da Penha: mais do que necessária

Em tempos de isolamento social e de aumento nos casos de feminicídio, Lei Maria da Penha se torna mais do que nunca essencial para a vida das mulheres.

Foto de destaque contém imagem de Maria da Penha e alguns elementos decorativos

Em agosto de 2006, foi sancionada a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340), que criou mecanismos para a prevenção e o combate à violência doméstica e familiar contra as mulheres. Apoiada na Constituição Federal e em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, a LMP leva o nome da cearense Maria da Penha Maia Fernandes que, após um longo ciclo de violências, em 1983, ficou paraplégica ao ser baleada nas costas pelo marido. Por mais de 20 anos, Maria da Penha lutou por justiça e mobilizou uma potente rede de apoio até que, em 2002, um grupo de organizações de mulheres elaborou a lei, que foi amplamente debatida com a sociedade e o parlamento brasileiro até a sua sanção. Outra conquista desta luta por direitos foi a criação, em 2015, da Lei n. 13.104 que tipifica o homicídio de mulheres em contexto de violência doméstica como feminicídio.

Transformações culturais e políticas

Para a Defensora e Coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria do Estado de São Paulo, Nalida Coelho Monte, a Lei Maria da Penha representou um “divisor de águas” no Brasil no que diz respeito à compreensão, prevenção e combate à violência doméstica, pois antes o que acontecia dentro dos lares era silenciado e sua criação “passou uma importante mensagem de que não se deve tolerar esta violência”. A partir da sanção da LMP algumas estruturas públicas – como, por exemplo, o sistema de justiça – se organizam para atender adequadamente as mulheres vítimas de violência, a mídia destaca mais as temáticas, profissionais de distintas áreas passam por processos de formação e o debate público sobre o problema se torna mais frequente.

Em 14 anos, a LMP promoveu transformações culturais e práticas sociais, afetando o comportamento e as ações do poder público. No entanto, ainda há um longo caminho a ser percorrido. De acordo com a Defensora Nalida Coelho, todas as formas de violência contra as mulheres resultariam de uma crença social e histórica de que as diferenças entre mulheres e homens hierarquizariam seus direitos e papéis na sociedade e essas violências seriam “a última expressão da desigualdade entre homens e mulheres e da discriminação contra as mulheres”.

Fim da violência exige combate às desigualdades de gênero e raça

A gravidade da desigualdade de gênero no Brasil se reflete nas estatísticas alarmantes. Segundo o Atlas da Violência 2020, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), houve um crescimento de 6,6% dos casos de feminicídios no Brasil entre 2017 e 2018. A pandemia intensificou o problema uma vez que o isolamento social, necessário para a contenção da COVID-19, forçou a convivência das mulheres com seus agressores, limitou a saída de casa e o contato delas com suas redes de apoio, além de interromper parte dos atendimentos em serviços especializados.

Segundo o FBSP, entre março e abril de 2020, houve queda de 25,5% nos registros de casos de violência doméstica e de 28,2% nos estupros, no entanto, os casos de feminicídio aumentaram 22,2% em relação ao mesmo período do ano anterior. Este paradoxo dos dados indica que, durante a pandemia, as mulheres tiveram mais dificuldade para pedir ajuda, mas continuaram sofrendo e morrendo. A pesquisa Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, realizada pela Gênero e Número e pela Sempreviva Organização Feminista, revela que cerca de 8,4% das mulheres afirmam terem sofrido algum tipo de violência (física, psicológica ou sexual) nesta quarentena e que as mulheres negras são as principais vítimas (61%).

Se a violência contra as mulheres resulta das desigualdades de gênero e raça, para eliminá-la, é necessário combater o sexismo e o racismo presentes em diferentes dimensões da vida. Neste sentido, a defensora Nalida Coelho argumenta que “o enfrentamento às violências baseadas em gênero e raça passa pela criação e fortalecimento de políticas públicas no sistema de justiça, na segurança pública, no trabalho, na saúde, na assistência social e na educação”.

Imagem: Conselho Nacional de Justiça