Estudantes demandam discussões sobre gênero, raça e sexualidade na escola

Projetos elaborados por estudantes comprometidos com um Ensino Médio de qualidade reforçam a necessidade da abordagem das agendas, apesar de resistências da comunidade escolar

Ilustração: Dillasete

Se desde 2013, nas discussões sobre o atual Plano Nacional de Educação (PNE), setores conservadores tentam retirar a discussão de gênero das escolas, as comunidades escolares, especialmente estudantes, nunca deixaram de pautar e reivindicar as agendas que consideram primordiais no ambiente escolar, ainda que encontrem resistência. Prova disso são as formações de redes contra a censura na educação e as muitas iniciativas estudantis que seguem demandando discussões sobre gênero, raça e sexualidade para promover o respeito com todas as pessoas, prevenir violências e avançar na melhoria da qualidade educacional. 

Algumas dessas iniciativas se inscreveram e foram contempladas pelo Edital “EM LUTA – Estudantes por um Ensino Médio de Qualidade!”, promovido pelo projeto Tô no Rumo, da Ação Educativa, em 2022. Nelas, estudantes da grande São Paulo receberam apoio para levar suas demandas para a escola pública: organizaram palestras, oficinas, slams e debates, muitas vezes sem o apoio da diretoria ou coordenação pedagógica. E reafirmaram que escola é sim um espaço para combater o racismo, sexismo e a LGBTfobia.  

O projeto “Lute como uma garota” é um exemplo da persistência das estudantes. Duas alunas do terceiro ano do Ensino Médio, com base em experiências pessoais e de outras meninas dentro da escola, viram a urgência de debater e combater o assédio sexual e moral, principalmente contra jovens negras. Em 2022, conseguiram organizar 3 dias de palestras sobre gênero, raça e sexualidade, realizadas por uma facilitadora externa, além de fazer intervenções pela escola (no Jardim Varginha/SP) com informações sobre legislação e sobre como procurar ajuda em caso de violência, inclusive psicológica. 

“Dar início ao projeto foi bem difícil, e acabamos atrasando porque a direção, apesar de formalmente apoiar o projeto, resistiu muito. Nós apresentamos o projeto em todas as reuniões com os professores, além da direção, e o diretor não estava presente para apoiar. Mas depois que conseguimos realizar a primeira palestra correu com mais facilidade”, relata Bianca*, de 18 anos, uma das idealizadoras do “Lute como uma garota”. 

Em contrapartida, tanto as alunas e alunos impactados pela iniciativa como o corpo docente demonstraram grande aceitação. “A resistência veio justamente daqueles que praticavam assédio, mas foi uma minoria”, conta Bianca. Os três dias de oficina, segundo ela, fomentaram e muito a discussão sobre assédio na escola – um problema que partia de professores ou funcionários contra alunas, mas também de alunos contra professoras. A questão era tão presente na escola que até mesmo alunos do ensino fundamental fizeram parte do projeto (as conversas com esse público tiveram linguagem e conteúdo adaptado para a faixa etária e etapa). Uma intervenção que se mostrou tão necessária que mesmo que as idealizadoras do projeto tenham concluído o Ensino Médio em 2022, a comunidade escolar se movimenta para dar seguimento ao “Lute como uma garota”. 

Já em uma escola estadual de Sumaré, quatro estudantes do segundo ano do EM interviram para trazer discussões de autoconhecimento e educação sexual para os colegas. “Percebia que a falta de autoconhecimento e de conhecimento sobre essas questões estava atrapalhando as relações sociais dentro da escola. Notamos que no local onde mais temos interações sociais, éramos reprimidos”, lembra Julia*, que idealizou o projeto “Em busca do seu eu”. A iniciativa tinha o objetivo de falar abertamente sobre raça, igualdade de gênero, orientação sexual, capacitismo e temas correlatos, a fim de acolher estudantes, trabalhar a autoestima e incentivar uma cultura de respeito e de combate a preconceitos e discriminações. 

Neste caso, planejar foi a parte fácil. Difícil foi vencer a resistência de pais e responsáveis em tocar no assunto. Foram, por exemplo, veementemente contra a distribuição de um kit de prevenção a ISTs e gravidez, e conseguiram vetar a iniciativa. Ou melhor, a própria escola achou melhor vetar com medo das represálias. “Tivemos que ter esse cuidado por conta da resistência da comunidade escolar, que não permitiu que fizéssemos tudo que estava originalmente previsto”, conta Julia. Ela, que inscreveu mais de um projeto no Edital, conta que o “Em busca de seu eu”, por tratar de temas tabus, era sempre visto com algum medo, desconfiança ou “pé atrás”. Mas ainda foi possível concretizar várias ações: levaram uma psicóloga para falar com as/os/es estudantes, fizeram gincanas de autoconhecimento, trabalharam as emoções, realizaram uma intervenção artística e distribuíram a cartilha “Por que discutir gênero na escola?”. 

“A palestra da psicóloga foi muito boa, especialmente porque fazia tempo, por conta da pandemia, que não tínhamos essa atividade presencial. No fim, tanto estudantes como familiares gostaram. A apresentação da artista Lila May foi muito interativa, e foi seguida por uma roda de conversa sobre como as mulheres são tratadas na sociedade e na escola”, relembra Julia. A estudante, agora no último ano do Ensino Médio, avalia que o projeto foi bem-sucedido com base no retorno das/dos/des jovens e também da equipe da escola, que, segundo ela, começou a tocar mais nestes assuntos. O professor de biologia do Ensino Médio, por exemplo, viu na iniciativa a deixa perfeita para falar de educação sexual e prevenção a ISTs nas aulas. “Mostramos que dá para abordar um assunto ‘pesado’ para a comunidade escolar. Faltava alguém colocar a ideia na mesa para as pessoas abraçarem”, resume a estudante. 

Essa conclusão vai inteiramente ao encontro do que mostrou a pesquisa “Educação, Valores e Direitos”, realizada em 2022 pelo Centro de Estudos em Opinião Pública (Cesop/Unicamp) e coordenada pela Ação Educativa e pelo CENPEC. Os resultados deste amplo estudo, que ouviu mais de 2.000 pessoas de 16 anos ou mais em todas as regiões do país, mostram que, na verdade, a população brasileira apoia a discussão sobre gênero, raça e sexualidade na escola, bem como tem opiniões progressistas em relação à militarização das escolas e à educação religiosa. Por exemplo, sete em cada dez entrevistados acreditam que a escola está mais preparada que os pais para explicar temas como puberdade e sexualidade, e nove em cada dez concordam que a discriminação racial deve ser debatida pelos professores. Quase 90% de quem respondeu à pesquisa concorda com a discussão sobre desigualdades entre homens e mulheres e quase 80% concorda que os pais não devem ter o direito de tirar seus filhos da escola e ensiná-los em casa. E o apoio da população à abordagem da igualdade de gênero e da educação sexual se torna ainda maior quando esse termo é concretizado em questões como o enfrentamento ao abuso sexual contra crianças e adolescentes e a violência contra mulheres.

“Uma das grandes contribuições da pesquisa é evidenciar o poder da vivência cotidiana para tensionar e, muitas vezes, desmontar discursos conservadores”, ressalta Denise Carreira, professora da Faculdade de Educação da USP/SP que coordenou a pesquisa pela ONG Ação Educativa e integrante da Rede de Ativistas pela Educação do Fundo Malala. “Na perspectiva da educação popular, constatamos que quando aterrissamos o debate em experiências das pessoas em suas famílias e comunidades, as posições muitas vezes mudam. Posições contrárias às agendas de direitos humanos são repensadas quando se ativa casos concretos que mostram como, por exemplo, a educação sexual integral tem um papel decisivo na prevenção de casos de abuso sexual de crianças e adolescentes. Há complexidade, contradições e brechas que favorecem a retomada e o fortalecimento de uma agenda comprometida com a educação em direitos humanos, uma educação em prol da igualdade de gênero, raça e sexualidade, que estimule uma perspectiva crítica frente às nossas profundas desigualdades e à história autoritária e violenta do país”, completa. 

O projeto “Diversidade e inclusão na prática: educação igualitária e de qualidade para todos”, executado em uma escola em Poá/SP, é ilustrativo dessa complexidade. Proposto pelo coordenador pedagógico em parceria com alunas do segundo ano do ensino médio, tinha como objetivo promover a reflexão da comunidade escolar sobre temas urgentes como racismo, homofobia, diversidade de gênero, inclusão, violência, intimidação, saúde mental e qualidade da educação, especialmente considerando o contexto de retorno às aulas presenciais pós pandemia de COVID-19 e da reforma do Ensino Médio. Mais uma vez, familiares e responsáveis se opuseram à iniciativa, que tinha boa aceitação entre os corpos docente e discente. A tentativa de coação chegou a tal ponto que o projeto foi “denunciado” para o mandato da deputada Carla Zambelli, que enviou um e-mail para a escola acusando-a de “ideologia de gênero” e de tentar “doutrinar” estudantes. Felizmente, a escola não embarcou na tentativa de represália e o projeto seguiu mesmo assim. 

“Nós pensamos no projeto para tentar abrir a cabeça dos alunos, para ter uma visão mais abrangente sobre o que é viver em sociedade”, define Patrícia*, uma das idealizadoras do projeto. “Tínhamos muitas denúncias de brincadeiras de mau gosto ou ações violentas contra alunos da comunidade LGBTQ, por exemplo. E achamos que um dos motivos disso é a falta de informação ou de iniciativa da escola de ensinar sobre isso”, explica ela, que ressalta que nenhuma dessas agendas constava na nova grade da escola de acordo com o Novo Ensino Médio. “Esse modelo está sendo horrível. O que vemos é só uma sobrecarga dos professores, isso quando há professores. Eu escolhi o percurso de artes, mas não tive uma única aula de artes no ano porque não havia professores. Tentaram colocar mais coisa onde não se tem o básico”, critica. 

Neste contexto, as ferramentas encontradas pelo projeto para suscitar o debate foram a realização de palestras participativas, uma excursão até a USP e uma batalha de slam – com participação de uma slammer LGBT convidada para disparar a reflexão, intervenção que deu tão certo que não se encerrou com o projeto. As denúncias de agressão dentro da escola diminuíram, alguns alunos pediram desculpas por comportamentos passados e, segundo Patrícia, algumas “piadas” ou “brincadeiras” pararam. 

Ou seja, mesmo em contextos adversos é possível pensar em soluções e iniciativas para discutir temas urgentes na escola – e as estudantes mostram que querem falar sobre isso. E que tais intervenções podem sim fazer a diferença. Como ressalta Denise Carreira, da FEUSP e rede Malala, “os coletivos e movimentos juvenis têm sido decisivos por alimentar esse debate no cotidiano escolar, pressionando às escolas, às universidades e às políticas educacionais a transformarem seus currículos. Têm sido decisivos por empurrar estas agendas pra frente em um contexto adverso, caracterizado por ataques diversos à laicidade de Estado e pela censura e grande autocensura nas escolas. Precisamos que a política educacional reconheça as demandas, as propostas e acúmulos juvenis e estudantis, em articulação com o estímulo e a valorização de experiências promovidas por coletivos docentes, com a urgente retomada de políticas de formação para profissionais de educação sobre essas agendas. A política educacional precisa enfrentar a atmosfera de medo e insegurança nas escolas, decorrente da ação de grupos ultraconservadores, afirmando a necessidade fundamental da retomada e fortalecimento do debate sobre gênero, raça e sexualidade em creches e escolas”.

*Os nomes das estudantes foram alterados para sua proteção. 

Texto publicado originalmente em: De Olho Nos Planos

Em semana de apagão de dados educacionais pelo Inep, mais de 80 entidades lançam nova versão do Manual Contra a Censura nas Escolas

O Manual inclui decisões recentes do STF que reforçam a inconstitucionalidade de leis inspiradas no movimento Escola sem Partido e o dever do Estado em abordar gênero e sexualidade nas escolas.

Em resposta às intimidações, ameaças e notificações dirigidas a docentes e escolas e à escalada do autoritarismo no país, um grupo de mais de 80 entidades de educação e direitos humanos lança, nesta quarta-feira, 23 de fevereiro, uma nova versão do Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas. A publicação apresenta orientações jurídicas e estratégias político-pedagógicas em defesa da liberdade de aprender e de ensinar, baseadas em normas nacionais e internacionais e na jurisprudência brasileira.

“O Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas articula duas estratégias complementares: por um lado, fornece subsídios para que as comunidades escolares possam, em seu cotidiano, enfrentar as ameaças concretas ou anunciadas. Por outro,  valoriza o debate público sobre essas situações como forma de enfrentamento de um conflito social gerado pela manipulação das ideias”, explica a apresentação do material.

Lançada em 2018, a primeira versão do documento contou com mais de 150 mil downloads. Na nova versão, foram incluídas decisões recentes do Supremo Tribunal Federal que reforçam a inconstitucionalidade de leis inspiradas no movimento Escola sem Partido e o dever do Estado em abordar gênero e sexualidade nas escolas como forma de prevenir a violência doméstica e o abuso sexual contra crianças e adolescentes. 

A nova versão também apresenta estratégias de como responder a novos tipos de ameaças que têm sido promovidas por movimentos e grupos ultraconservadores contra comunidades escolares. Além disso, são esmiuçadas as alterações recentes de normativas nacionais e internacionais de direitos humanos, além de novas possibilidades no campo das estratégias jurídicas, políticas e pedagógicas de enfrentamento ao acirramento do autoritarismo na educação.

Lançamento da nova edição do Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas

Apagão de dados educacionais

O lançamento ocorre na mesma semana em que microdados do Censo Escolar foram descartados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) com base na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Em nota de posicionamento, entidades, redes de pesquisa e movimentos sociais afirmam que o descarte é inadmissível, carece de fundamento legal e, como resultado, impede a avaliação e elaboração de políticas públicas que respondam às necessidades da população.

O Manual também está sendo lançado como forma de prevenção e enfrentamento de possíveis ataques às escolas, educadores, estudantes e famílias em um ano eleitoral dramático, marcado por ameaças diversas à democracia, desinformação e disputas acirradas.

Casos-modelo, seus desdobramentos e estratégias de defesa

O Manual, que pode ser baixado gratuitamente clicando aqui, descreve 19 casos-modelo baseados em situações reais, seus desdobramentos e estratégias jurídicas e político-pedagógicas que podem ser usadas por profissionais de educação.

Entre os casos, são apresentadas situações de ameaças pelo Poder Público, como a aprovação de legislações antigênero; a interferência do Legislativo ou Executivo nas instituições educacionais; o constrangimento de docentes por diretorias de ensino e a militarização de escolas públicas. São também abordados casos de ameaças por membros da própria comunidade escolar e de seu entorno, como a perseguição por meio de notificações extrajudiciais, a ocorrência de constrangimentos ao uso de nome social, a censura ao uso de linguagem neutra, a violação da laicidade e o cerceamento das discussões sobre racismo e do ensino – previsto em lei – das histórias e culturas indígena, africana e afro-brasileira em escolas públicas e privadas.

O Manual trata ainda do tema fortemente recorrente, mas pouco comentado, da autocensura, isto é, da interrupção da abordagem de gênero, raça e sexualidade nas escolas pelos próprios docentes em decorrência do pânico moral e do medo de perseguição decorrentes da atuação autoritária de movimentos ultraconservadores contra professores. 

Marcos legais nacionais, internacionais e decisões do Supremo Tribunal Federal

A primeira versão do Manual foi lançada no final de 2018 como parte de uma estratégia de incidência junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que a Corte julgasse um conjunto de ações que questionavam a constitucionalidade de leis de censura na educação.

Ao longo do ano de 2020, dez ações foram julgadas positivamente, reafirmando a inconstitucionalidade da censura e o dever do Estado em abordar as questões de gênero e sexualidade na Educação Básica como forma de prevenir o abuso sexual de crianças e adolescentes. As decisões reforçaram também que a ideia de neutralidade ideológica é antagônica ao pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, pilar constitucional da legislação educacional brasileira.

Outro aspecto importante referendado pelo STF foi a interpretação a respeito do lugar das famílias na gestão democrática da educação. Na compreensão da Corte, a participação das famílias na vida escolar de crianças e adolescentes é fundamental, mas  não pode ser usada como artifício para limitar o direito constitucional de crianças e adolescentes a uma educação que contemple várias visões de mundo, estimule a capacidade de refletir e de pesquisar a realidade e que prepare os e as estudantes para uma sociedade sempre mais complexa e desafiante.

“Muitas vezes, mobilizadas pelo desejo de proteção de suas filhas e filhos, algumas famílias acabam contribuindo para que crianças e adolescentes cresçam despreparados e vulneráveis para enfrentar o mundo e atuar conscientemente pela superação das desigualdades, discriminações e violências nas suas vidas e na sociedade brasileira”, destaca o Manual.

Articulação contra o Ultraconservadorismo na Educação

Com apoio do Fundo Malala, do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e da Defensoria Pública da União (DPU), a publicação é resultado do trabalho de uma ampla articulação de sociedade civil, que inclui organizações não governamentais e redes que atuam pelo direito humano à educação, entidades sindicais, associações científicas, redes de pesquisa, organizações vinculadas ao movimento feminista, negro e LGBTQI+, setores religiosos progressistas defensores da laicidade do Estado, coletivos políticos e órgãos públicos comprometidos com a defesa dos direitos humanos.

Confira a lista completa de entidades signatárias:

  • Ação Educativa
  • Ação Educação Democrática
  • ABEH – Associação Brasileira de Pesquisa em Ensino de História
  • ABGLT – Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos
  • ABIA – Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS
  • ABPN – Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as
  • AGB – Associação dos Geógrafos Brasileiros
  • Agência Pressenza
  • Aliança Nacional LGBTI
  • ANAÍ – Associação Nacional de Ação Indigenista
  • ANAJUDH-LGBTI – Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos de LGBTI
  • Andes-SN – Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior
  • Anfope – Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação
  • Anpae – Associação Nacional de Política e Administração da Educação
  • ANPEd – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação
  • Anpocs – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
  • Anpof – Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia
  • Antra – Associação Nacional de Travestis e Transexuais
  • Articulação de Mulheres Negras Brasileiras
  • Associação Brasileira de Ensino de Ciências Sociais
  • Campanha Nacional pelo Direito à Educação
  • Cedeca-CE – Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Ceará
  • Cedes – Centro de Estudos Educação e Sociedade
  • CENDHEC – Centro Dom Helder Câmara de Estudos e Ação Social
  • Cenpec
  • Centro das Mulheres do Cabo
  • Centro de Cultura Professor Luiz Freire
  • Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza
  • CFEMEA – Centro Feminista de Estudos e Assessoria
  • Cidade Escola Aprendiz
  • Cladem – Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher
  • CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
  • Coletivo de Advogad@s de Direitos Humanos
  • Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia
  • Comissão Pastoral da Terra
  • Comitê Goiano de Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno
  • Conic – Conselho Nacional de Igrejas Cristãs
  • CONTEE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino
  • Dom da Terra AfroLGBTI
  • Fineduca – Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação
  • Forumdir – Fórum Nacional de Diretores de Faculdades, Centros de Educação ou Equivalentes das Universidades Públicas Brasileiras
  • Fórum Ecumênico ACT-Brasil
  • Gajop – Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares
  • Geledés – Instituto da Mulher Negra
  • GPTEC – Grupo de Pesquisa em Tecnologia, Educação e Cultura (IFRJ)
  • Grupo Dignidade
  • IDDH – Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos
  • Inesc – Instituto de Estudos Socioeconômicos
  • Instituto Alana
  • Instituto Pólis
  • Instituto Vladimir Herzog
  • Intervozes
  • Justiça Global
  • LAVITS – Rede Latinoamericana de Estudos em Tecnologia, Vigilância e Sociedade
  • Mais Diferenças – Educação e Cultura Inclusivas
  • Marcha das Mulheres Negras
  • Mirim Brasil
  • Movimento Humanista
  • Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio
  • MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
  • Núcleo de Consciência Negra – USP
  • NUDISEX – Núcleo de Estudos e Pesquisas em Diversidade Sexual
  • Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte
  • Odara – Instituto da Mulher Negra
  • OLÉ/UFF – Observatório da Laicidade na Educação
  • Plataforma Dhesca Brasil
  • Professores contra o Escola sem Partido
  • Projeto Mandacaru Malala
  • QuatroV
  • Rede Brasileira de História Pública
  • Rede Liberdade
  • REPU – Rede Escola Pública e Universidade
  • SBEnBio – Associação Brasileira de Ensino de Biologia
  • SBEnQ – Sociedade Brasileira de Ensino de Química
  • Sinpeem – Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo
  • Sinpro Guarulhos – Sindicato dos Professores e Professoras de Guarulhos
  • Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos
  • SPW – Observatório de Sexualidade e Política
  • Terra de Direitos
  • UNCME – União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação
  • Undime – União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação
  • UPES – União Paranaense dos Estudantes Secundaristas

Os desafios de estudantes do ensino médio na volta às aulas presenciais

Elas partilham a alegria de rever amigos e professores, mas têm medo da covid-19. O Gênero e Educação entrevistou três jovens que estudam em escolas públicas na capital paulista para saber como tem sido o retorno às aulas.

Imagem da matéria Os desafios de estudantes do ensino médio na volta às aulas presenciais. Imagem de estudantes subindo a escada de uma escola. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Cerca de 90% da população de estudantes, em 186 países, foram afetados com a pandemia da covid-19. No Brasil, o fechamento parcial ou total das escolas provocou insegurança alimentar e impactos no aprendizado, na socialização, no acesso a conteúdos devido à exclusão digital, e provocou evasão e abandono escolar, fenômenos que podem comprometer a educação de toda uma geração, com reflexos negativos na vida social e laboral. Sabe-se também que a pandemia intensificou os problemas e as desigualdades escolares preexistentes no país, que historicamente prejudicam mais meninos e meninas negras.

Desde o início da crise sanitária, em 2020, especialistas criticam a ausência de ações consistentes e coordenadas para mitigar tais problemas, especialmente em âmbito federal. Nos estados e municípios, gestores têm adotado políticas variadas que instituíram o ensino remoto, o ensino híbrido e depois presencial, condicionando tais decisões às orientações das autoridades regionais de saúde, mas, em muitas regiões, sem o devido diálogo com especialistas da área da educação e, principalmente, com as comunidades escolares.

Inicialmente, o retorno no estado de São Paulo, por exemplo, não era compulsório e era escalonado de acordo com as taxas de contaminação e mortes provocadas pela covid-19. No segundo semestre de 2021, com o avanço da vacinação² e a queda das taxas no estado, a retomada passou a ser obrigatória e as redes municipais e estadual de ensino voltaram às aulas presenciais, ainda que a maioria dos estabelecimentos não tenha realizado mudanças estruturais recomendadas pelas autoridades sanitárias e reivindicadas pelos profissionais da educação, tais como a adequação das escolas com novas instalações para higienização, maior ventilação e reformas que tornassem os espaços mais abertos e arejados.

Em meio a tantas incertezas e problemas de distintas ordens, estão os e as estudantes que são pouco ouvidos, mas têm muito a dizer, especialmente os do ensino médio que experimentam o peso da conclusão da formação básica que, em tese, lhes serviria como possibilidade de transição para a universidade e/ou para o mundo do trabalho.

O Gênero e Educação entrevistou três jovens moças que estudam em escolas públicas do ensino médio na capital paulista, para saber o que elas têm vivido com a pandemia e como tem sido o retorno às aulas presenciais. Concedemos nomes fictícios a nossas entrevistadas, que conversaram conosco por meio de plataformas digitais e pelo Whatsapp.

O isolamento social, o afastamento das escolas e da convivência com amigos e professores geraram nelas ansiedade, dificuldade de adaptação ao ensino remoto e de concentração, como relata Erica, de 17 anos, que atualmente cursa 3º ano em uma escola estadual, localizada no bairro do Tatuapé, zona leste da capital paulista:

“Quando as aulas foram interrompidas, eu estava no 2º e fiquei muito desesperada porque gosto muito da escola. No começo achei que fosse rapidinho e cada semana que ia passando, ia ficando mais desesperada. Eu até tinha internet, mas meu computador tinha problemas e às vezes eu ficava sem fazer as atividades. O meu emocional ficou extremamente abalado, eu me senti bastante mal, comecei a desenvolver crises de ansiedade e estresse, fiquei doida da cabeça”, diz. 

Carla, de 17 anos, no 2º ano de uma escola estadual, no bairro Santo Amaro, zona sul de São Paulo, reforça o relato anterior e pontua ainda que, em sua avaliação, o ensino remoto não permitiria a mesma rotina nem a mesma relação de troca entre professores e alunos.

“De cara eu não conseguia manter uma rotina, nem fazer os exercícios nem estudar. A relação entre professor e aluno não é a mesma de forma remota, na minha antiga escola a gente não chegou a ter vídeochamadas, eram só as atividades do centro de mídia¹. Às vezes a gente perguntava pro professor, ele não respondia e eu ficava chateada, mas hoje eu entendo que também deve ter sido difícil pra eles. No remoto, fica muito mais o professor falando. As aulas remotas tinham que ser mais interativas, ter mais conversa, com mais interação entre professor e aluno”.

Carla

Para Erica, certas particularidades do ensino remoto como a conectividade, a dependência dos dispositivos e a dificuldade neste diálogo com os professores causam fadiga e ansiedade.

“Em 2021, foi complicado, eu quase não fiz nenhuma atividade, inclusive eu me arrependo por isso porque agora eu tô tendo que correr atrás de todo o prejuízo, mas sabe? Eu estava exausta, cansadíssima, não tava aguentando mais nada, todas as atividades que mandavam eu falava que ‘não consigo fazer’, ‘não vou fazer’. Tinha professores que não explicavam as atividades e eu nem corria atrás pra entender porque minha cabeça não dava, tinha muita coisa”.

Erica

O depoimento de Natália, de 15 anos, que atualmente cursa o 1º ano do ensino médio em uma escola estadual, no Jardim Nazareth, zona leste paulistana, reforça as dificuldades de adaptação e suas consequências para os e as estudantes no que diz respeito ao seu aproveitamento neste período:

“No ano da pandemia, no ensino fundamental, praticamente a gente não teve aula, não tive acesso às aulas. Então eu senti falta dos estudos e no começo de 2021 [quando entrou no ensino médio] eu tava bem atrasada e fui treinando pras minhas notas não caírem”.

Natália

As estudantes entendem que o retorno às aulas presenciais gera uma profusão de sentimentos positivos e negativos. Por um lado, elas demonstram alegria pela possibilidade de rever amigos e professores. Por outro, ainda sentem muita preocupação com a pandemia e com as dificuldades em retomar o “ritmo” dos estudos.

“Eu fiquei feliz porque eu ia encontrar meus amigos, ia conseguir conversar, ver os professores, é outra história… Só que… sei lá… é preocupante porque a gente sabe que o governo não tá ligando muito pras pessoas pobres, que o governo não tá nem aí pra gente. É preocupante porque os casos não pararam de acontecer, a pandemia ainda não acabou”.

Erica

“Foi uma mistura. A ansiedade de voltar por conta da pandemia, mas também por ser uma escola nova. Eu tava muito nervosa em socializar, se iria conseguir conversar de boa, se ia ficar travada, se ia conseguir prestar atenção na aula. Notei que eu não consegui ficar prestando atenção 100% do tempo. Na hora do intervalo era o momento que eu ficava mais desconfortável porque já eram mais pessoas. Tem muita gente que tá desconfortável por voltar. Não sei a realidade que a pessoa vive, o transporte que ela pega, se é cheio ou não, com quem ela vive, então obrigar as pessoas a irem pro presencial é não pensar nas diversidades que cada um passa dentro de casa”.

Carla

“Acho que eles deveriam pensar mais um pouco no psicológico dos alunos porque a gente ficou um ano e meio sem ter aulas presenciais, sem ter pessoas do lado, sem ter contato e voltar pro presencial todo dia, ter muito trabalho pra apresentar é difícil. Teve a semana de humanas que eu tive crise de ansiedade porque não tava conseguindo lidar com a quantidade de trabalho”.

Natália

A preocupação das jovens com a pandemia da covid-19 é absolutamente pertinente, uma vez que as autoridades de saúde em todo o mundo sinalizam para o surgimento de novas mutações do novo coronavírus e a possibilidade de um novo pico de contaminação no primeiro trimestre de 2022. 

No Brasil, apesar do avanço na vacinação, existe uma enorme desigualdade no acesso à saúde e à educação em todo o território nacional e sabe-se que os estabelecimentos de ensino carecem de estrutura adequada e de itens básicos para garantirem a plena segurança a estudantes, professores e trabalhadores. 

Uma pesquisa da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), por exemplo, apontou que 40,4% dos municípios não tinham protocolo de segurança sanitária para o retorno às aulas. Segundo a Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) cerca de 80% dos professores, alunos e pais tinham medo do contágio no retorno ao presencial. 

Por outro lado, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), o Brasil está entre os países que mais tempo ficaram sem aulas presenciais durante a pandemia. Portanto, nosso desafio é como recuperar as perdas sofridas por estudantes, seus familiares e professores, sem lhes expor aos riscos da covid.

Notas

¹  Centro de Mídias da Educação de São Paulo, iniciativa da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo.

²  Quando esta matéria foi concluída 62,15% da população estava completamente imunizada, o que representava pouco mais de 132,5 milhões de pessoas.