Educação que protege fala de gênero: o papel da Lei Maria da Penha na formação de crianças e adolescentes

Considerada uma conquista na luta pelos direitos de mulheres, a Lei Maria da Penha possui grande relevância na educação em direitos humanos nas escolas

Imagem de destaque da matéria "Educação que protege fala de gênero: o papel da Lei Maria da Penha na formação de crianças e adolescentes". A imagem é uma colagem, feita com uma foto de Maria da Penha (Jarbas Oliveira/Folha Press 2019). Na colagem, vemos a imagem do Congresso Nacional e da Constituição Brasileira em torno do Sol, afrente vemos a imagem de Maria da Penha sorrindo em uma cadeira de rodas

No último dia 7 de agosto, a Lei Maria da Penha completou 17 anos de vigência no Brasil. Considerada um marco estratégico para os movimentos feministas, essa legislação desempenha um papel crucial em demarcar o caráter específico da violência contra as mulheres, ao explicitar a desigualdades de gênero como fator determinante desse problema.

Em 2022, houve crescimento de todas as formas de violência contra meninas e mulheres, o que mostra a importância de mecanismos de proteção e prevenção como os previstos pela lei.  

A Lei Maria da Penha conta com mais um recurso importante na luta contra a violência de gênero: a Lei n.º 14.164/2021, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (n.º 9.394/1996), para incluir conteúdos sobre a prevenção da violência contra a mulher nos currículos da educação básica, e institui a Semana Escolar de Combate à Violência contra a Mulher.

O tema gênero assume uma relevância essencial que permeia todas as disciplinas da educação básica, desde a linguagem não sexista e discriminatória, a integração igualitária de meninos e meninas nos esportes coletivos e individuais, até a abordagem inclusiva da presença das mulheres na história social e política do país e do mundo, considerando as diferenças culturais à luz da geografia política e organização social. 

Essa medida é uma resposta necessária em um cenário alarmante de estupros no país, como revelado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2023). Em 2022, o Brasil registrou o maior número de estupros da história, com um total de 74.930 mil casos no ano, representando um aumento de 8,2% em relação a 2021.

As estatísticas apontam que mais da metade desses casos (56.820 mil) são classificados como estupros de vulnerável, ou seja, crimes praticados contra menores de 14 anos. As principais vítimas desse cenário são as crianças, com 61,4% delas tendo entre 0 e 13 anos, sendo alarmante a incidência de 10,4% de crianças com menos de 4 anos afetadas por esse crime.

Quanto ao perfil racial das vítimas, o registro é grave, com 56,8% delas sendo negras e 42,3% brancas, além de 0,5% vítimas indígenas e 0,4%  amarelas.

Outro dado que chama a atenção é que 88,7% das vítimas de estupro são do sexo feminino, enquanto 11,3% são do sexo masculino. E, entre as vítimas de 0 a 13 anos, 86,1% são agredidas por pessoas conhecidas, sendo que 64,4% dos agressores são familiares. Entre as vítimas com 14 anos ou mais, 77,2% são atacadas por pessoas conhecidas, e 24,3% desses crimes são de autoria de parceiros ou ex-parceiros íntimos.

Lei Maria da Penha nas escolas

Diante dessa realidade perturbadora, é fundamental que a educação seja uma peça-chave na implementação da Lei Maria da Penha. A legislação determina que os currículos escolares de todos os níveis de ensino destaquem conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia, bem como à violência doméstica e familiar contra a mulher. No entanto, o estudo da ONU Mulheres revelou uma carência de qualificação nas temáticas de gênero e sexualidade na formação dos professores do ensino básico e médio, mostrando que ainda há um longo caminho a percorrer na promoção de uma política efetiva de educação inclusiva e combate à violência baseada no gênero.

Enfrentar essa situação requer esforços coletivos e sistemáticos em todos os setores da sociedade. A violência de gênero é uma violação grave dos direitos humanos e, para que a Lei Maria da Penha alcance todo seu potencial, é essencial que ela seja aplicada de maneira transversal e ampla dentro do Sistema de Justiça, indo além do Direito Penal e considerando as necessidades específicas de proteção das vítimas e seu núcleo familiar.

A educação, além de combater estereótipos de gênero e desconstruir padrões discriminatórios, deve ser um espaço seguro e inclusivo para meninas e meninos. É fundamental que o respeito e a equidade de gênero sejam promovidos desde cedo, incentivando uma cultura de igualdade e prevenindo a violência baseada em gênero. A Lei Maria da Penha e suas medidas protetivas são ferramentas poderosas nessa batalha pela construção de um Brasil mais justo, igualitário e seguro para todas as pessoas.

Com informações da Agência Patrícia Galvão, Agência Senado, Instituto Maria da Penha e ONU Mulheres

Ampla maioria defende que igualdade de gênero e educação sexual sejam abordadas nas escolas

Pesquisa nacional realizada pelo DataFolha revela que 96% da população acredita que estudantes devem receber na escola informações sobre enfrentamento à violência contra mulheres; 91% dizem que a educação sexual ajuda crianças e adolescentes a se prevenirem contra o abuso sexual

Imagem da matéria "Ampla maioria defende que igualdade de gênero e educação sexual sejam abordadas nas escolas" do site Gênero e Educação. Na imagem há duas meninas negras lendo livros

A pesquisa nacional Educação, Valores e Direitos revelou que a maioria dos brasileiros defende a abordagem de temas relacionados à desigualdade de gênero e à educação sexual nas escolas. Coordenada pelas organizações Ação Educativa e Cenpec, a pesquisa inédita foi realizada pelo Centro de Estudos em Opinião Pública (Cesop/Unicamp) e Instituto Datafolha, no marco da articulação de organizações da sociedade civil em defesa do direito à educação e contra a censura nas escolas. Foram ouvidas 2.090 pessoas em todo o país sobre questões consideradas polêmicas relativas à política educacional. Outros dados da pesquisa serão divulgados nas próximas semanas. A realização da pesquisa contou com recursos do Fundo Malala.

A pesquisa fez diversas perguntas sobre a abordagem de questões relacionadas à educação em gênero e sexualidade. Perguntados se estudantes devem receber, nas escolas, informações sobre as leis que punem a violência contra mulheres, 96% dos entrevistados disseram concordar, 93% acreditam que as escolas precisam ensinar meninos a dividirem com meninas e mulheres as tarefas de casa e 88% dizem ser importante que as escolas discutam as desigualdades entre homens e mulheres. Com relação à afirmação de que as escolas devem promover o direito das pessoas viverem livremente sua sexualidade, sejam elas heterossexuais ou LGBTs, a concordância foi de 81%.

Em relação à educação sexual, o apoio também é expressivo: 96% afirmam que as escolas devem oferecer informações sobre doenças sexualmente transmissíveis e como preveni-las; 93% são favoráveis a que os estudantes recebam, nas escolas, informações sobre como evitar uma gravidez indesejada; e 91% concordam que a educação sexual ajuda crianças e adolescentes a se prevenirem contra o abuso sexual. Sete em cada dez acreditam que a escola está mais preparada que os pais para explicar temas como puberdade e sexualidade (veja tabelas ao fim do texto).

“A pesquisa mostra que a população compreende a educação sexual como uma forma de proteger crianças e adolescentes. É a partir dessa abordagem, por exemplo, que crianças podem identificar e denunciar situações de abuso sexual e adolescentes podem se informar sobre a prevenção de uma gravidez indesejada”, comenta Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do Cenpec.

Educação sexual e gênero: tentativas de censura

A presença da temática de gênero e sexualidade na educação tem sido alvo de diversos ataques e tentativas de censura. Diversos municípios chegaram a aprovar leis proibindo qualquer referência a gênero, identidade de gênero ou orientação sexual nas escolas. Em uma série de julgamentos em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu que essas legislações são inconstitucionais, por ​​violarem valores democráticos, liberdades individuais e princípios como a tolerância e a convivência com a diversidade. As decisões também afirmam que a abordagem de gênero e sexualidade é uma obrigação de secretarias de educação, escolas e professores, para a promoção de políticas de igualdade e não discriminação.

“Essas decisões são um marco, reafirmando que a abordagem de gênero e sexualidade nas escolas está amparada na Constituição Federal e em diversas legislações, como a própria Lei Maria da Penha, que em seu artigo oitavo determina a educação para a igualdade de gênero e raça em todas as escolas. Além do respaldo legal, a pesquisa mostra que a maior parte da população compreende e apoia que o debate de gênero e sexualidade avance nas escolas, o que contraria o discurso de movimentos ultraconservadores que promovem desinformação e pânico moral sobre essas agendas”, explica Denise Carreira, coordenadora institucional da ONG Ação Educativa e integrante da Rede de Ativistas pela Educação  do Fundo Malala. Em fevereiro deste ano, um grupo de mais de 80 entidades de educação e direitos humanos lançou uma nova versão do Manual de Defesa Contra a Censura nas Escolas. A publicação apresenta orientações jurídicas e estratégias político-pedagógicas em defesa da liberdade de aprender e de ensinar, baseadas em normas nacionais e internacionais e na jurisprudência brasileira.

Grau de concordância sobre alguns assuntos relacionados à educação sexual
A escola deve oferecer informações sobre doenças sexualmente transmissíveis e formas de prevenção dessas doenças
Os estudantes devem receber, na escola, informações sobre como evitar uma gravidez indesejada
A educação sexual nas escolas ajuda as crianças e adolescentes a se prevenirem contra o abuso sexual

BAIXE A APRESENTAÇÃO DA PESQUISA (PDF)

Contatos para imprensa

Mariana Nepomuceno e Tales Rocha (Agência Galo/Assessoria da Ação Educativa) – (11) 97152-4834 e 98870-1089 – mariana.nepomuceno@agenciagalo.com; tales.rocha@agenciagalo.com

Aline Rezende  (Assessoria do Cenpec) – (13) 99137 7967 | aline.rezende@cenpec.org.br

Sobre a Ação Educativa

Criada em 1994, é uma organização de direitos humanos, sem fins lucrativos, com uma trajetória dedicada à luta por direitos educativos, culturais e da juventude. Desde a sua fundação, integra um campo político de organizações e movimentos que atuam pela ampliação da democracia com justiça social e sustentabilidade socioambiental, pelo fortalecimento do Estado democrático de direito e pela construção de políticas públicas que superem as profundas desigualdades brasileiras, bem como pela garantia dos direitos humanos para todas as pessoas. Desde 2018, a Ação Educativa é apoiada pelo Fundo Malala.  Saiba mais: https://acaoeducativa.org.br/ | https://generoeeducacao.org.br/

Sobre o Cenpec

Cenpec é uma organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, que há mais de 30 anos trabalha pela promoção da equidade e qualidade na educação básica pública brasileira. Por meio da produção de pesquisas e de tecnologias educacionais, contribui no desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens, na formação de profissionais de educação, na ampliação e diversificação do letramento e no fortalecimento da gestão educacional e escolar. Em parceria com redes de ensino, espaços educativos e outras instituições de caráter público e privado, atua dentro e fora das escolas públicas para diminuir as desigualdades e garantir uma educação de qualidade a todos e todas. Saiba mais: www.cenpec.org.br.

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Entenda como a Lei Maria da Penha assegura a abordagem de gênero nas escolas

Para ter um futuro livre da violência, crianças têm o direito de saber oque é gênero, assim como o significado das desigualdades e da violência de gênero.

Em colagem, é possível ver menina escrevendo. Ao fundo, há elementos decorativos.

O que a Lei Maria da Penha tem a ver com práticas pedagógicas? Tudo, visto que a educação em gênero como meio de prevenção à violência contra meninas e mulheres é assegurada por este marco legal.

O Art. 8º da Lei Maria da Penha sugere diversas diretrizes a serem tomadas pelo poder público e por entes não-governamentais. Entre elas a elaboração de campanhas educacionais, a capacitação permanente e o destaque nos currículos escolares de conteúdos sobre equidade de gênero, raça, etnia e sobre o enfrentamento à violência contra a mulher.

Além de ser dever do Estado de cumprir com a legislação e garantir o direito educação em gênero nas escolas, as diferentes formas de violência contra as mulheres têm tudo a ver com a vida escolar e práticas pedagógicas. Segundo Ingrid Leão, Pedagoga, Doutora em Direitos Humanos e Integrante do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) o gênero constitui uma importante dimensão da vida social, produzindo violências e desigualdade: “o gênero está na nossa vida desde que a gente nasce, é um aspecto da nossa vida, da sociedade, tudo à nossa volta é pensado sobre as relações de gênero a todo momento”.

Durante o primeiro semestre de 2020, foram julgadas no Supremo Tribunal Federal sete ações relativas a normas municipais que proibiam a abordagem de gênero e sexualidade nas escolas públicas. A Corte foi unânime em declarar a inconstitucionalidade das leis por desrespeito a valores como a liberdade de ensino e o pluralismo de ideias e o estímulo a desinformações e estigmas.

Para Ingrid Leão, a abordagem de gênero nas escolas seria um dever do Estado e de todas as escolas, e lembra ainda que o Plano Nacional de Educação, sancionado em 2014, também prevê a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”. Deste modo, a ideia de que seria proibido falar de gênero nas escolas é uma “campanha de desinformação que confunde as pessoas e atrasa o enfrentamento da violência no nosso país”, diz Ingrid.

Escola como formação para a cidadania

A pedagoga destaca ainda que a “escola não é um lugar só de letramento, mas de formação para a cidadania. Quando se nega as relações de gênero, a existência da violência de gênero ou se proíbe falar sobre gênero na escola o que estamos fazendo? Estamos assumindo um viés ideológico que aceita essa violência. É uma escola que silencia sobre a violência. É preciso não só falar, mas colaborar para a formação da cidadania”.

A Defensora e Coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria do Estado de São Paulo, Nalida Coelho Monte, compartilha da mesma visão e afirma que, além de ser inconstitucional, qualquer tentativa de proibir o debate sobre gênero nas escolas viola os direitos fundamentais das crianças e adolescentes, pois prejudica seu aprendizado para o exercício da cidadania como, aliás, prevê a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB). “Meninos e meninas precisam saber diferenciar o que é uma violação de direitos, e quais são os estereótipos das nossas supostas obrigações de ser homem e ser mulher. Para reivindicar direitos, exercer a cidadania, é preciso conhecer e entender esses direitos e a escola é o espaço fundamental para isso. Tentar impedir o debate sobre gênero nas escolas seria impedir que crianças e adolescentes sejam capazes de identificar as próprias situações de violações de direitos”, afirma Nalida Coelho.

A pedagoga Ingrid Leão lembra que meninos também são afetados pelas desigualdades de gênero e destaca a importância de questionar o machismo e os modelos de masculinidade aos quais são submetidos: “como vamos exigir de um homem adulto que ele não seja violento, se isso nunca foi falado para ele em lugar nenhum? Se a escola não ensinou desde criança que ele não pode ser agressivo com as meninas e mulheres que ele encontrar pela vida? A gente é responsável por isso! A gente não pode querer falar sobre violência de gênero quando já aconteceu o dano. É preciso focar no desenvolvimento da pessoa”.

Além de ser um direito, o debate sobre gênero protege crianças

Diferentemente do que pensam aqueles que desconhecem o que é gênero, tratar de suas questões nas escolas não geraria conflitos ou prejudicaria crianças e adolescentes. Ao contrário, uma educação sobre gênero pode protegê-los de situações de violência, ensiná-los a respeito dos direitos das meninas e mulheres e evitar que vivam ou reproduzam situações de discriminação ou violência de gênero na vida adulta. As entrevistadas do Gênero e Educação afirmam que muitos casos de violência doméstica poderiam ser evitados caso meninos e meninas tivessem contato com uma educação de qualidade sobre as questões de gênero, obviamente, adequada para sua faixa etária: “como a gente previne esse tipo de situação, senão a partir do currículo? Senão a partir da educação? Senão a partir do debate formativo sobre as desigualdades de gênero no nosso país?”, exalta Ingrid Leão.

As especialistas concordam, no entanto, que tratar das questões de gênero nas escolas não é uma tarefa simples, pode ocasionar dúvidas dos docentes e até mesmo censuras. A Defensora Nalida Coelho lembra que o Nudem auxilia professores e gestores a desenvolver e estruturar debates sobre gênero dentro das escolas e com toda a comunidade escolar, além de apoiar e assessorar juridicamente os profissionais que eventualmente tenham sofrido algum tipo de censura. Sobre este tema, sugerimos a leitura do Manual de Defesa contra a Censura nas Escolas, elaborado pela Ação Educativa e outras dezenas de organizações que trabalham pelos direitos humanos e pela educação.

As entrevistadas destacam ainda que os docentes precisam de apoio para incorporar as questões de gênero em suas atividades: “quanto ao papel do professor e da professora é sempre bom dizer que eles estão dentro da rede de educação, portanto são uma das peças, que não fazem educação sozinhos, tem a direção, tem o livro didático, tem a estrutura, tem a política educacional, o currículo escolar”, lembra Ingrid Leão.