Regulamentação do Fundeb: Relatório de Projeto é apresentado na Câmara

Deputado Felipe Rigoni apresentou relatório baseado no PL 4372, de Professora Dorinha. Entenda o que diz o texto e o que está sendo debatido desde a promulgação do novo Fundeb.

Em colagem, é possível ver criança desenhando um sol

Na terça-feira, 16/11, o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES) apresentou o relatório do projeto de regulamentação do novo Fundeb aos líderes da Câmara dos Deputados. O relatório refere-se ao projeto de Lei 4372/2020, da deputada Professora Dorinha (DEM-TO) e traz alterações em relação ao original. De acordo com Rigoni, o governo posiciona-se majoritariamente a favor do novo texto, com poucas ressalvas. Também segundo o relator, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), quer dar prioridade à matéria. Caso a regulamentação seja aprovada ainda este ano, as regras do novo Fundeb começam a valer em 2021. 

Entenda o que diz o texto do relator em alguns dos pontos cruciais e mais debatidos desde a promulgação do novo Fundeb:

Recursos públicos para escolas públicas 

O repasse de recursos do Fundeb para instituições sem fins lucrativos, como entidades filatrópicas ou religiosas, foi um dos pontos mais controversos e debatidos das últimas semanas. O governo de Jair Bolsonaro fez intensa pressão para que escolas religiosas sem fins lucrativos pudessem acessar recursos do Fundo em todos os níveis de ensino – atualmente o repasse é permitido apenas na educação infantil, especial e do campo, que têm problemas de acesso. A regra é mantida no PL 4372, mas era rejeitada no PL 4519, do Senador Randolfe Rodrigues, que propunha o fim gradual deste repasse, priorizando o uso de recursos públicos em escolas públicas. 

Já o relatório apresentado por Felipe Rigoni faz alterações no PL da deputada Professora Dorinha, embora não na medida que queria o governo. O texto apresentado no dia 16 permite o repasse para instituições privadas sem fins lucrativos também no ensino técnico e profissional, mas continua vetando no ensino fundamental e médio comum. Em coletiva de imprensa, Rigoni alegou um argumento redistributivo: a brecha beneficiaria municípios mais ricos, pois é onde estão a maioria das matrículas em escolas conveniadas de EF. “Mas isso foi conversado com o governo e até segunda ordem está tudo certo”, disse ele. O relator não entrou no debate da laicidade do ensino, limitando-se a dizer que “existem argumentos favoráveis e contrários por diferentes motivos”. 

Referenciais para distribuição e vinculação a resultados

O novo Fundeb prevê que a complementação da União salte de 10 para de 23%. Desta quantia, 2.5% deve estar  vinculada a indicadores de aprendizagem que garantam equidade, e é na regulação que se delimita o que se considera nesta avaliação. Neste sentido, havia uma disputa para que outros indicadores além dos resultados em avaliações externas de larga escala fossem considerados. O Sinaeb, previsto no texto constitucionalizado, amplia o conceito de qualidade na educação para além das avaliações externas de larga escala (como o Ideb), que tendem a marginalizar ainda mais algumas redes, como as indígenas e quilombolas. 

O texto de Felipe Rigoni menciona o caráter equitativo deste repasse de 2.5% (VAAR), mas o mantém vinculado apenas ao desempenho escolar. Segundo o relatório, a avaliação deve contemplar resultados anuais da aprendizagem em Língua Portuguesa e Matemática e, a partir deles, definir os níveis de aprendizagem para o cálculo da medida de equidade da aprendizagem. Nesse modelo, redes que partirem dos menores índices e evoluírem nos mesmos terão maior peso na distribuição. Assim, levam mais recursos as redes de ensino que conseguirem reduzir a desigualdade no aprendizado e melhorarem suas próprias notas. “Educação é aprendizado”, disse o deputado em coletiva de imprensa na tarde desta segunda-feira. 

CAQ 

O Custo Aluno-Qualidade (CAQ) não é mencionado no relatório de Felipe Rigoni – assim como não era no projeto da Deputada Professora Dorinha. De acordo com o relator, o CAQ constará apenas na regulamentação do Sistema Nacional de Educação (SNE). Essa é uma lei complementar necessária para operacionalizar todo o Fundeb, principalmente por conta do Custo Aluno-Qualidade (CAQ). Isso porque o SNE estabelece e implementa a coordenação entre diferentes níveis de governo. 

Fatores de ponderação 

Outra discussão importante é a dos fatores de ponderação, que determinam “pesos” no repasse para as diferentes etapas e modalidades. Seguindo o PL 4372, o texto de Felipe Rigoni indica que em 2021 eles permaneçam os mesmos do atual modelo, pois acredita que “ainda faltam estudos” que embasem mudanças nessas ponderações. Nos anos seguintes, após mais discussão, eles seriam alterados. O PL do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) alterava algumas etapas e modalidades, como educação infantil, indígena e quilombola, já em 2021, aumentando o repasse para elas. 
Constitucionalizado em agosto, dois projetos de lei de regulamentação do Fundeb tinham sido apresentados: um pela deputada Professora Dorinha (DEM-TO) e um pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) – entenda as diferenças entre eles neste link.

Reportagem: De Olho nos Planos

Edição: Marcelle Matias

Por uma ciência antirracista: bate-bola com Anna Benite

O trabalho da química Anna Benite para transformar a educação e a trajetória de alunos e alunas negros em Goiás.

Em colagem, é possível ver ao centro foto da cientista Anna Benite e, ao fundo, formas orgânicas que remetem a moléculas

“A Química me autoriza a falar de tudo porque como ciência da transformação da vida ela não foi feita por uma única sociedade branca”. Esse pensamento que tem ecoado nos espaços acadêmicos e nas escolas básicas goianas é de Anna M. Canavarro Benite. Química e Professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), Anna Benite tem transformado a realidade de estudantes e docentes, professores e professoras do ensino fundamental, médio e universitário, questionando a centralidade da produção de saberes brancos e ocidentais, e divulgando o conhecimento produzido pelos negros e negras no Brasil e no mundo. Fundadora do Coletivo Negro (a) CIATA do Laboratório de Pesquisas em Educação Química e Inclusão (LPEQI) da UFG, coordenadora do projeto Investiga Menina e Militante do Grupo de Mulheres Negras Dandara no Cerrado, nossa entrevistada fala sobre sua trajetória, os desafios da profissão e sua luta antirracista.

[Gênero e Educação] Professora, conte um pouco sobre sua origem e sobre como a Química surgiu na sua vida.

Anna Benite – Somos de Taquara em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. É um lugar difícil, sem trabalho, tem que ir para Central do Brasil [centro do Rio de Janeiro] para trabalhar. A minha mãe, uma mulher negra com potencial transformador, transformava a penúria em que vivíamos todos os dias. Não estou falando só de miséria, mas de um lugar que não tem água de rua nem esgoto. Então eu tinha dois caminhos: a escola ou continuar vivendo do subemprego e no lugar de ausência. Eu não tive uma predileção pela Química, fiz o que era possível para uma pessoa negra. Fui parar em um curso de licenciatura noturno. Ali percebi que a Química me autoriza a falar de tudo porque como ciência da transformação da vida ela não foi feita por uma única sociedade branca. Todas as sociedades, das consideradas primitivas às lidas como modernas, se organizaram por processos de transformação da matéria. Na academia, entendi que aquela ciência não me contemplava. Por isso, decidi trabalhar com e por uma ciência que refletisse quem eu era de fato, ou seja, a mãe, professora, militante, mulher negra, sou todas essas pessoas. Mas foi um caminho sem muitos louros, pois ao mesmo tempo em que apareço na mídia não tenho grana de projeto há uns quatro anos, porque para o desgoverno do nosso país esses temas não são importantes.

[Gênero e Educação] Você é referência no campo da educação voltada para a “descolonização” do saber. O que significa este termo e por que essa corrente é importante?

Anna Benite – O termo descolonização, na verdade, não é bom, porque se a colonização tivesse acontecido de fato, eu não estaria falando com você. A gente não teria resgatado a nossa história, mas a gente está contando a nossa história, não só eu, mas as mulheres antes de mim e outras que virão. Esse termo não é bom porque os referenciais teóricos são os homens brancos, mas as pessoas reproduzem porque são treinadas na academia branca e continuam lendo as mesmas coisas.

Precisamos de uma ciência mais diversa, pois essa monocromática está falida. A universidade e a ciência se desconectaram da dimensão concreta da vida das pessoas, elas precisam se comunicar com quem somos, um país de maioria autodeclarada negra, de pretos e pardos.

Quando alguém diz para mim “ah, você nem parece cientista com esse turbante na cabeça”, isso não é só um comportamento tosco, perverso, isso é um projeto de poder que é estrutural, cruel e que produz tantas ausências que as pessoas têm dificuldade de se identificar, de saber que seus ancestrais produziram tecnologia

Para entrar nesse debate sobre “descolonização” e ocupar o meu lugar na ciência, precisei dominar as ferramentas desse sujeito do poder. É um artifício, falamos no consenso e depois o deslocamos, portanto, para mim, o termo correto é “deslocamento epistêmico”.

Anna Benite

[Gênero e Educação] Como promover esse “deslocamento epistêmico” na educação básica?

Anna Benite Quando você é um menino ou menina negra, você entra na escola experimentando confrontos culturais e simbologias que não te pertencem. Você é apresentado para este lugar a partir de um único referencial que é de um homem branco. Ninguém te apresenta um livro de uma mulher negra, uma descoberta de uma cientista negra.

Houve mudanças, mas insuficientes para nosso contingente de população negra. Somos o segundo maior país em população negra no mundo, atrás só da Nigéria, na África. Chega a ser dolorido falar disso. Eu tenho uma filha de 10 anos que liga a TV todos os dias e diz: “mãe, olha como a Maju tá linda hoje”. Isso é um exemplo fácil para entendermos o que acontece na escola.

Perdemos essas crianças porque não damos a elas uma chance de descobrirem que têm um passado de glória

Anna Benite

Contamos histórias a partir de um lugar que não é nosso. A gente não diz “olha, tem um outro caminho, tem uma pessoa que fez uma coisa bacana e que se parece com você”. Tem um monte de gente fazendo coisa legal e é gente preta. Precisamos conhecer essas pessoas porque elas existem, sempre existiram.

[Gênero e Educação] Qual sua avaliação sobre a revisão curricular para uma educação antirracista?

Anna BeniteNo Brasil, a população negra não pode fazer o que quer e o discurso da meritocracia de que basta você se esforçar é uma mentira. A necessária revisão curricular não vai acontecer por um instrumento efetivo somente, pois isso demora. Por isso trabalhamos com formação de professores e todos os alunos ligados ao grupo que eu coordeno trabalham com o conceito de “deslocamento epistêmico” em atividades com crianças desde a tenra idade até a pós-graduação. Quanto mais cedo começamos, mais cedo plantamos para termos cientistas negros e negras no futuro.

Eu e minha corrente de pesquisadores não esperamos leis. A gente vai na escola, com currículo engessado mesmo, com 45 minutos de tempo de aula etc. e deslocamos o conhecimento. Ao invés de contar a história pela matemática, a gente dá aula a partir dos adinkras. Gente, Aristóteles ficou nos elementos terra, fogo, ar e água durante 2 mil anos, mas os africanos falavam disso antes, basta estudar os processos de mumificação e escarificação. A gente mostra que há outras ciências e indicamos onde elas estão.

[Gênero e Educação] Qual são os objetivos do Coletivo Negro (a) CIATA que você fundou?

Anna Benite – É um grupo de estudos que reúne estudantes negros e negras para discutir coisas da natureza que não estão no conhecimento da Química, pois a Química estuda moléculas e a gente queria estudar gente. Questionamos nosso papel como cientistas porque a ciência autorizou o racismo e a escravidão, dizendo que negros podiam ser explorados porque não teriam alma, não seriam humanos. Nos questionamos: “Somos químicos, tudo isso foi legitimado na história a partir de processo químico, o que fazemos para mudar isso?”. Então fomos estudar sociologia, psicologia, filosofia para saber quem éramos nessa história e hoje somos um grupo de cientistas pela luta antirracista. Fomos atrás de referências fora do mundo ocidental, pesquisamos quem fazia e faz química na África, por exemplo, buscamos outras fontes para contar para todo mundo que essa gente existe.

[Gênero e Educação] Como funciona o projeto Investiga Menina?

Anna Benite – Eu era uma mulher negra, integrante de um grupo de negras, mas não estávamos contando para os estudantes negros o que fazíamos, então não existíamos. Por isso fomos para a escola nas periferias. Trabalhamos desde o 9º ano do fundamental até o fim do ensino médio. Fazemos o acompanhamento pedagógico, ensinamos química, física, biologia, matemática no horário regular, porque aluno pobre e negro não vai voltar à tarde na escola. Ele vai tomar conta dos irmãos, trabalhar, não dá para fazer fora do horário, tem que ser no horário de aula, com a participação dos professores. Ensinamos a ciência a partir do um olhar do povo da diáspora. Uma vez por mês levamos cientistas negras na escola.

Inicialmente, as estudantes queriam saber quem eram aquelas cientistas, as origens delas, as dificuldades que enfrentaram. Com o tempo, entenderam que aquelas mulheres tinham uma história próxima de superação e ausência. Assim, o foco do nosso desafio mudou e passamos a explicar o que aquelas cientistas faziam, atribuindo significado daquela ciência na vida dos e das estudantes.

Escolas do campo, indígenas e quilombolas enfrentam desafios pela falta de políticas públicas

Iniciativa De Olho Nos Planos ouviu comunidades escolares em todas as regiões do país e atesta que falta água, saneamento e internet em muitas escolas.

Em colagem, é possível ver menina lendo apostila escolar

A falta de pessoal faz com que seja comum que os professores das escolas quilombolas em Salvaterra (PA), sejam os responsáveis pela merenda e outras tarefas de manutenção. Do outro lado do país, em Cascavel (PR), os moradores do assentamento Valmir Mota de Oliveira não puderam esperar o Estado e eles mesmos construíram sua escola. 

Uma parede de gesso separava duas salas de aula de um Colégio Estadual Indígena em Rodelas (BA). A divisória, improvisada para comportar as turmas da escola, não era suficiente para impedir o isolamento acústico, e os docentes precisavam negociar com antecedência as atividades envolvendo audiovisual ou mesmo debates. A 77km de distância, no município de Glória (BA), os alunos de outro Colégio Indígena não têm refeitório e comem sua merenda no chão, não raro cercados pelos animais que invadem o perímetro da escola. 

Em todo o Brasil, outras escolas do campo, indígenas e quilombolas enfrentam desafios parecidos, consequência do abandono histórico destas modalidades por parte de governos e pela ausência de políticas públicas. Estes desafios tornam-se especialmente relevantes no contexto da pandemia de Covid-19 e do novo Fundeb, que garantiu mais recursos para a educação pública. No processo de regulamentação do novo fundo, que precisa ser iniciado com urgência em 2020 para valer já em 2021, ainda serão definidas importantes diretrizes de financiamento para estas três modalidades. Por isso, a iniciativa De Olho Nos Planos ouviu as comunidades escolares. 

No mês de outubro de 2020, foram realizadas 12 entrevistas telefônicas com diferentes atores da educação escolar quilombola, indígena e da educação do campo para entender melhor sobre suas atuais condições de ensino e aprendizagem, mapeando seus desafios para assegurar uma Educação de qualidade. Foram ouvidas professoras, diretoras e diretores, alunas e alunos, ativistas, familiares e um gestor. As entrevistas mostraram que, em maior ou menor grau, as escolas ainda não contam com insumos mínimos como bibliotecas, laboratórios ou mesmo acesso a água e saneamento básico. O que já têm é, em grande medida, fruto de anos de mobilização e iniciativas comunitárias que tentam suprir a demora do Estado em garantir o direito à educação destas populações.

A seguir, alguns dos problemas mais comuns identificados:

Água, saneamento básico e energia elétrica

Em grande parte das escolas mapeadas, as escolas aproveitavam soluções pensadas pela própria comunidade, como fossas sépticas e cisternas, não havendo um sistema específico para as unidades de ensino. Para se ter uma dimensão do problema, há 3.574 escolas rurais sem acesso a água no país – quase um terço delas (964) no estado do Maranhão. E 4.166 sem acesso a energia elétrica. Em outras 2.919, as aulas não acontecem em um prédio escolar. Os dados são de um levantamento de 2019 produzido por diferentes entidades de Educação no Campo. 

Em entrevistas, foram frequentes os relatos de banheiros interditados. Em escolas mais afastadas, como anexos de escolas indígenas e quilombolas, sequer há banheiro e muitas vezes o acesso à água depende de carros-pipa. Quando este não chega, as aulas precisam ser interrompidas. Se o cenário já era grave antes da pandemia, agora é imperativo proporcionar condições sanitárias adequadas para que a volta das aulas presenciais não ponha a comunidade escolar em risco. 

A gente sonha muita coisa…eu gostaria de um banheiro separado para professores e crianças. Nesse exato momento a descarga está quebrada, então tem que pegar água em um balde para poder jogar na privada. São coisas básicas, mínimas, mas que fariam muita diferença para a gente hoje.

(Diretora de escola indígena – Glória-BA)

A escola tem um laboratório de informática, mas na prática não tem, porque a energia elétrica não comporta ligar todas as máquinas ao mesmo tempo.

(Professora de escola quilombola, Salgueiro-PE) 

A reforma da escola incluiu novos banheiros, mas houve um problema com o encanamento e ele teve que ser interditado, agora só há um banheiro masculino e um feminino. Se usarmos esse banheiro, o esgoto fica onde a gente vai passar. É muito nojento. Basicamente o banheiro abriu e já teve que fechar, mas estão buscando solucionar. A água vem de um poço artesiano bem antigo, mas é muito ruim. Um aluno numa feira de ciências analisou e viu que o pH estava inadequado. A reforma teoricamente também pensou em acessibilidade, então o banheiro foi feito pra ser acessível: mais espaçado, tem corrimão, cabine exclusiva e tudo mais. Mas para entrar, é com degrau. Não adianta dentro ser acessível e o acesso não.

(Aluno de escola do campo, 3° ano EM, Espera Feliz-MG). 

Nosso maior problema é a fiação, temos medo de pegar fogo a qualquer momento e estarmos dentro da escola. É muito velha, eu acho que nunca teve manutenção. Fica ainda pior quando chove. E na aldeia sempre falta energia, então às vezes não tem como ter aula de noite. (…) O banheiro adaptado não sei se quebrou, mas desde que eu me lembre ele sempre foi uma dispensa (…) banheiro masculino (…) quebrou e ficou só o feminino, que fica interditado

(Aluna de escola indígena, 2° ano EM, Rodelas-BA) . 

Um dos anexos funciona com energia solar, o que é bastante incomum. Mas reivindicamos uma placa mais potente que consiga sustentar uma geladeira, porque atualmente não conseguimos mandar todos os produtos da merenda para o anexo porque eles estragam. Verdura e carnes estragam, não tem como conservar. A falta de água também nos impediu de dar continuidade ao projeto da horta. Isso dificulta o trabalho  junto aos alunos de trazer uma vivência maior com a terra para o dia a dia da escola.

(Diretora de escola indígena – Glória-BA)

Merenda e transporte escolar

Na maior parte das escolas, o transporte – em geral, terceirizado – não consegue atender os alunos ao longo de todo o ano letivo. Seja porque apresenta problemas de manutenção ou, principalmente, pelas más condições das estradas, que alagam ou são de difícil acesso. É frequente que, em épocas de chuva, os alunos não consigam chegar à unidade de ensino. Quanto às merendas, a maior parte das escolas consegue ter acesso a ingredientes frescos e condizentes com suas culturas, exceto quando há problemas com os equipamentos de armazenamento. No entanto, reclamam de pouca verba disponível para a merenda, o que faz com que ela se atenha a ingredientes básicos e pouco variados e se limite a apenas uma refeição, mesmo quando os alunos fazem longos trajetos. 

A verba da merenda é de apenas 64 centavos por dia por aluno, é muito pouco. Então a gente acaba comprando o grosso: feijão, arroz, macarrão, frango. Não dá pra comprar outro tipo de carne. Também relacionado a isso, algo que eu sinto muita falta é um refeitório pras crianças, porque a gente só tem uma cozinha. Eles pegam a merenda e vão sentar no chão ou vão para as salas de aula comer. As vezes tem cachorros que entram na escola e se misturam, o que sabemos que não é higiênico. Gostaria de um refeitório com mesas e cadeiras para que as crianças pudessem sentar e fazer suas refeições todo dia, direitinho.

(Diretora de escola indígena – Glória-BA)

A merenda que chega dá para no máximo 15 dias, o que os gestores fazem para isso durar o mês é revezar: em um dia tem merenda, no outro não tem. E a maioria das escolas não dispõe de lugar para armazenar alimentos frescos, então muitas vezes não vem. Só alimento com conservante. O transporte escolar é precário, os ônibus geralmente estão superlotados, com alunos viajando em pé e é frequente quebrar no meio do caminho, porque são velhos. O que vinha para o quilombo não tinha nem farol. Se quebra, os alunos da tarde só conseguem chegar em casa 9 ou 10 da noite. Além disso, durante o inverno as vias ficam intransitáveis, no ano passado o transporte ficou 2 meses sem conseguir passar por alguns trechos. Estamos denunciando essa situação junto ao poder público. 

(Técnica em educação e liderança quilombola, Salvaterra-PA)

O transporte escolar é de péssima qualidade, a merenda deveria ter mais recursos. Muitos alunos vêm de longe e não podem tomar um café da manhã antes da aula, seria bom se pudéssemos contar com um desjejum.

(Coordenadora pedagógica de escola quilombola, Nossa Senhora do Livramento-MT).

O transporte não é exclusivo para alunos, então todo dia convivemos com passageiros comuns para ir para a escola. A gente já se deparou com diversas cenas, já me ofereceram droga na volta da escola, já vimos brigas, pessoas bêbadas.. E em zona rural às vezes o transporte não tem como passar. Em época de chuva tem estudante que fica sem ir na escola. 

(Aluno de escola do campo, 3° ano EM, Espera Feliz-MG). 

Salas multisseriadas, ausência de bibliotecas, laboratórios e internet

Nenhuma das escolas tinha laboratório de ciências ativo e apenas uma tinha quadra poliesportiva coberta. Exceção também é a escola que possui laboratório de informática à disposição de seus alunos. Em geral, os espaços de lazer misturam-se aos da comunidade em que a escola está inserida, inclusive porque muitas escolas são abertas. 

Salas multisseriadas já foram uma realidade em praticamente todas as escolas, e em muitas continua sendo, especialmente em unidades anexas e em etapas iniciais do ensino fundamental. A justificativa é o baixo número de matrículas por turma, uma característica compartilhada pela educação rural, indígena e quilombola.

As bibliotecas também deixam a desejar: nem todas as escolas conseguem garantir um espaço como este, com livros além dos que são trabalhados em sala de aula. Há uma queixa frequente dos materiais didáticos e livros disponíveis não conversarem com as realidades dos estudantes e das comunidades. 

Minha escola passou por muitas reformas, a maioria de iniciativa da comunidade escolar mesmo ou algumas parcerias. As salas até que se encontram em boas condições, mas sinto falta de tecnologia dentro da sala: TV, projetor.  A reclamação dos professores é falta de acesso a internet dentro das salas, porque agora tudo depende de internet, inclusive a anotação de presença. Muitas vezes a chamada é na sala dos professores, depois da aula, pois lá pega internet.

(Aluno de escola do campo, 3° ano EM, Espera Feliz-MG)

Nos anos iniciais do ensino fundamental temos multissérie, por conta do número de alunos. E vimos que tem defasagem quando chega no sexto ano. Até 4 anos atrás não era multissérie, e aí vimos a diferença. O professor dos anos iniciais é a base. 

Diretora de escola do campo, Santa Maria d’Oeste-PR

Nós conseguimos manter um número reduzido de estudantes por turma porque a nossa estrutura não comporta mais: as salas não dão condições de aglomeração, no frio faz muito frio e no verão faz muito calor. No fim do ano, quando solicitamos as turmas ao Estado, é sempre uma briga. Precisamos justificar o baixo número de matrículas por turma. Em geral, quando eles veem as fotos da escola, acabam aceitando. E é melhor para o trabalho dos professores.

(Diretor de escola do campo, Cascavel-PR).

Cheguei a ter aulas de informática, mas tiraram os computadores, não sei ao certo o porquê. No Ensino Fundamental tem aula de educação digital até hoje, mas como nem todo mundo tem notebook para levar, a aula é mais por folha [de papel]. Dão arquivo impresso ou o professor leva notebook e usa datashow ou apostila. No meu caso particular, eu gosto muito de conhecer as coisas, de pesquisar e aprender coisas novas, então não ter mais esses computadores faz muita falta.  E os professores já falaram que sentem falta de laboratório de ciências, queriam ter acesso e mostrar pra gente. Mostrar, por exemplo, uma água não potável no microscópio. E na aula de inglês não usamos muito o livro, seria melhor se tivéssemos livro. O único que eu usei era bem desatualizado. 

(Aluna de escola indígena, 2° ano EM, Rodelas-BA)

(…) Nenhuma escola do município tem internet banda larga. Quando tem, professor ou gestor está pagando do próprio salário para conseguir trabalhar. Ofertada pelo poder público, não tem. 

(Técnica em educação  e liderança quilombola, Salvaterra-PA)

O material enviado pela Seduc não é específico para a comunidade, nós começamos a produzir nossos próprios materiais por causa disso, mas precisamos de mais recursos para aumentar a quantidade e qualidade.

(Coordenadora pedagógica de escola quilombola, Nossa Senhora do Livramento-MT).

Os livros que chegam para a gente trazem mais a realidade do Sudeste, Sul e Norte do país. Nada voltado pro nosso Nordeste, conseguimos acompanhar muito pouco. Por isso, nos últimos 5 anos temos nos amparado no projeto Saberes Indígenas na Escola. Fazemos atividades continuadas, trabalhamos leitura e escrita, produção de material didático, etc. Assim, conseguimos desenvolver um material didático nosso. Mas nós não formamos os alunos apenas para a comunidade e sim para o mundo, então não podemos deixar de trabalhar outros conteúdos – mas sentimos muita falta de um livro mais adequado, que fale bem das populações indígenas, do nordeste, que valorize mais nossa cultura, tradição e história. Na EJA, por exemplo, não há nada específico para eles. Na Educação Infantil, os professores têm que sempre buscar na internet.

(Diretora de escola indígena, Glória-BA).

(DES)valorização das professoras e profissionais da educação

A maioria das professoras e dos professores de escolas do campo, quilombolas e indígenas trabalha sob um contrato precarizado e com pouca ou nenhuma estabilidade. Na Educação no Campo, entidades da área apontaram 138.416 professores temporários no país em 2019.

Em todas as modalidades abordadas pelo mapeamento, foram comuns relatos de atrasos em pagamentos e de prejuízo ao ensino por conta da precarização dos contratos, já que sua curta duração implica em alta rotatividade de professores, impedindo projetos e formações a longo prazo. Ainda, houve relatos de atrasos no início do ano letivo pela demora na regularização dos contratos. Os concursos são raros, não havendo perspectiva de mudança deste cenário. 

O fato da maioria dos professores serem contratados – e não concursados – faz com que muitos aceitem condições indignas de trabalho. Eles se submetem porque precisam sobreviver, mas o contrato lhes tira direitos. Uma outra reclamação é a ausência de material didático para trabalhar questões do currículo elaborado e proposto.

(Técnica em educação  e liderança quilombola, Salvaterra-PA). 

Há anos não existe formação continuada específica oferecida pelo Estado na modalidade de Educação do Campo. Sempre que podemos e há disponibilidade de educadores participamos de formações oferecidas pelo Movimento [dos Sem Terra].

Diretora de escola do campo, Santa Maria d’Oeste-PR 

Na nossa escola eu gostaria de ter mais condições de trabalhar nossa proposta pedagógica. O governo estadual engessou demais a autonomia da escola, as propostas são padronizadas no estado inteiro como se todas as regiões fossem iguais. Sinto dificuldade na formação e na autonomia para liberdade pedagógica. Nossas escolas não aceitam ser um forno de cidadãos dóceis, são espaços de formação coletiva e para a  liberdade e autonomia.

(Diretor de escola do campo, Lapa-PR). 

Mobilização comunitária

O Estado não tem garantido insumos básicos para a efetivação do direito à educação nas escolas participantes do mapeamento. Pelo contrário, comunidades quilombolas, aldeias indígenas e assentamentos são protagonistas nas mudanças e melhorias de suas escolas. São professoras e profissionais que usam o fim de semana para reparar a rede elétrica, comunidade que desenvolve tecnologia de tratamento de água ou que, literalmente, levanta a escola do zero. O trabalho coletivo é acompanhado de diálogo com o poder público e com constantes reivindicações, mas as questões mais emergenciais tendem a ser resolvidas internamente. 

Todo ano a gente faz o arraiá da escola, com as barraquinhas de comida. Fizemos rifa e usamos o dinheiro da venda para comprar ar condicionado para as salas, porque não tinha em todas.

(Aluna de escola indígena, 2° ano EM, Rodelas-BA) 

Com muita luta, a comunidade conseguiu fazer com que a seleção para professoras e professores fosse específica para a comunidade. Quer dizer, apenas docentes daqui podem dar aula em nossas escolas. Assim, geramos mais renda e emprego para a comunidade e motivamos a juventude a continuar estudando, porque eles sabem que vai haver uma forma de trabalhar por aqui. Na escola, armamos os estudantes com nossas histórias, tradições e ancestralidade. Quem melhor para fazer isso do que o próprio povo? 

(Professora de escola quilombola, Salgueiro-PE)

Nossa estrutura é precária, mas antes era ainda pior, não tinha sequer energia. Vem melhorando com recursos que vêm do Estado: as salas são de madeira com piso bruto, tem energia elétrica, mas ainda não tem forração. As portas e janelas são de madeira e construídas pela comunidade, temos laboratório de informática, embora os computadores não sejam novos. Para quem não tinha nada, foi uma evolução. Mas nada veio de reconhecimento do governo e sim de muita luta e enfrentamento. É uma luta diária, mas não dá pra desistir, porque se não tivéssemos lutado não teríamos conquistado o que temos hoje. Para o governo talvez fosse mais fácil botar todos os estudantes dentro de um ônibus e ir para a cidade, mas não é o que a comunidade quer e isso descaracteriza o estudante do campo. Nossa luta é pela manutenção da escola do e no campo.

(Diretor de escola do campo, Cascavel-PR).

Em Salvaterra há 12 escolas dentro dos territórios quilombolas, e conseguimos renomear todas como escolas quilombolas. E desde 2012 lutamos para implementar  as diretrizes para educação escolar quilombola. Conseguimos inserir no Plano Municipal de Educação o currículo para educação escolar quilombola. É uma história de muita luta, diálogo, do movimento sempre se articulando fortemente.

Técnica em educação  e liderança quilombola, Salvaterra-PA

Reportagem: Nana Soares | Edição: Claudia Bandeira

Imagem: Marcello Casal Jr / Agência Brasil | Edição: Marcelle Matias