Escolas abertas ao debate sobre gênero e raça protegem mais as crianças

A vulnerabilidade das crianças e adolescentes a violências e violações de seus direitos está diretamente ligada à disponibilidade da escola em tratar de gênero e raça de forma transparente.

Em colagem, é possível ver duas meninas desenhando

As questões relacionadas ao gênero e à raça estão presentes em nossas vidas desde que nascemos, constituem o que somos, assim como nossas relações sociais. Conhecer esses conceitos é fundamental para a compreensão, a prevenção e o combate às desigualdades, violências e violações de gênero e de raça, cujas principais vítimas são as populações feminina, negra e LGBTIQA+. Infelizmente, o Brasil lidera os rankings internacionais de violências contra esses grupos e para reverter este quadro lamentável é preciso educação.

As tentativas de dificultar ou censurar uma educação sobre tais temáticas prejudicam o combate às desigualdades e violências de gênero e raça no país e, no contexto escolar, se configuram como uma violação dos direitos das crianças e adolescentes, como apontam especialistas em matéria recente do Gênero e Educação. Além disso, tais censuras seriam inúteis porque, cotidianamente, meninos e meninas pensam, falam e vivem experiências positivas ou negativas decorrentes destes universos. É o que afirmam as entrevistadas Bárbara Barboza e Mayara Pan.

Meninos e meninas têm necessidade de falar sobre gênero

Professora de Sociologia em uma escola pública de ensino médio na cidade de São Paulo, Mayara Pan conta que decidiu criar um projeto para debater gênero na instituição em que leciona quando, no contexto de uma aula, uma aluna revelou ter sofrido abuso sexual. Na ocasião, a jovem afirmou que contava com o apoio de sua família e vinha sendo acompanhada por profissionais de saúde, mas o impacto da revelação inesperada, fez a professora organizar – com a ajuda de outro professor – uma palestra sobre violência contra as mulheres com uma especialista em direito.

A palestra foi bem recebida pelos estudantes e desencadeou outras ações relacionadas com o apoio da gestão, como conta Mayara: “Os alunos e alunas estavam com tanta necessidade de falar sobre o tema que se abriram muito, conversaram sobre violência doméstica, sobre suas próprias vivências. Foi importante para termos uma dimensão do que isso significava para eles. Entendemos que a gente precisava pensar de fato as questões de gênero, e aí organizamos rodas de conversa sobre masculinidade com os meninos e sobre feminilidade com as meninas, de todos os anos do ensino médio”.

A professora relata que, inicialmente, ela e seus colegas tinham receio de que os meninos não participassem das atividades, mas foram surpreendidos positivamente e os encontros se mantiveram regulares e com boa adesão nos últimos dois anos, especialmente as rodas das meninas que, segundo Mayara, demonstravam maior interesse, conexão e conhecimento prévio sobre as temáticas: “muitas contam que aprenderam muitas coisas por meio do YouTube, das redes sociais, dos influenciadores digitais”

Apesar da interrupção das atividades com a pandemia, as meninas organizaram autonomamente encontros virtuais para continuar debatendo as questões de gênero. “Algumas meninas já têm clareza da distinção entre gênero, sexo, sexualidade, orientação sexual, questões que não são simples. Outras desconhecem ou não dominam esses conceitos. De qualquer forma, é evidente que elas são muito engajadas e o fato de terem organizado essas atividades sozinhas, com meninas de outras escolas que elas sequer conheciam, no meio da pandemia, é resultado do nosso trabalho”, afirma Mayara.

Cada experiência é única e impõe distintos desafios às escolas

A experiência relatada pela professora de Sociologia ratifica a importância do debate sobre gênero nas escolas que, neste caso, foi motivado por uma situação de violência grave vivida por uma aluna. Mas e se esta aluna tivesse dito para a professora que ninguém mais sabia do abuso? E se tivesse dito que não tinha nenhum suporte emocional, familiar ou de saúde física e mental? A professora deveria tomar as mesmas atitudes? Ou deveria agir de outra forma? Essas e outras dúvidas afligem qualquer educadora que se depara com situações semelhantes a essa, pois as questões e problemas relacionados ao gênero ou à raça são complexos e exigem conhecimento e experiência profissional.

Para a Educadora Popular e Cientista Política, Bárbara Barboza, os caminhos mais eficientes para lidar com situações semelhantes são: ouvir cuidadosamente esses meninos e meninas, para entender o foco do problema e sem expô-los; e, em seguida, deve-se acionar a rede de proteção, mas, para tanto, é preciso um trabalho prévio de planejamento, organização e criação de metodologias próprias a serem adotadas pelas escolas públicas. 

“É um processo, não tem receita pronta, mas temos alguns pontos de luz para fortalecer as ações das escolas, nas escolas ou com as escolas. Sabe-se que, quando o assunto é gênero e raça, quanto mais aberta a escola for menos vulnerável ela e os alunos ficam. Quando a escola está fechada as vulnerabilidades, violências e violações estão ali como em uma panela de pressão e acabam implodindo. Isso é um grande problema. A escola não tem como resolver isso sozinha, ela pode ser o lugar que, como dizem as pessoas, ‘recebeu o B.O.’, mas se ela fizer parte de uma rede de proteção, as coisas se encaminham”, afirma a Bárbara.

A Educadora reforça que a criação e o fomento de uma rede de proteção para crianças e adolescentes a partir da escola seria um trabalho preventivo que exige comprometimento individual e coletivo, que deve ser contínuo e atualizado constantemente nas oportunidades de planejamento interno e nos encontros com familiares. 

Bárbara Barboza afirma ainda que toda experiência escolar bem sucedida em uma rede de proteção pode servir de exemplo para outras instituições, mas nunca replicada integralmente, uma vez que cada território contém atores sociais e realidades distintas. Portanto, cada escola deve mapear seus territórios, identificar seus aliados, dentro e fora das instituições públicas, estabelecer formas de comunicação, diálogo, de documentação etc. Com o passar do tempo e as práticas, seus protocolos próprios para acolher as crianças e adolescentes vão se consolidando e se tornando mais seguros e assertivos. Tudo isso só funciona com uma gestão escolar democrática.

“Tudo é metodologia. Precisa mapear qual é o Conselho Tutelar mais aliado, por exemplo. Na ausência de um, procure aliados na Defensoria Pública. Não tem naquele território? Então vá para a ONG, e por aí vai. É preciso identificar qual política pública chega no território da escola e das famílias. As reuniões de planejamento, de conselho escolar ou com as famílias não precisam ser chatas e só informativas. Nelas você pode perguntar para a família: ‘qual é o serviço público que você acessa?’. A UBS? O CRAS? O ponto de cultura? Precisa ter escuta para identificar os personagens do território que vão ajudar a enfrentar as questões de gênero e raça dentro da escola. Nunca a escola sozinha”, defende Bárbara.

Uma escola que se abre para pensar, se envolver ou criar uma rede de proteção também precisa do apoio de instâncias governamentais como diretorias e secretarias de educação. A cidade de São Paulo é referência nesse quesito graças à criação, em 2014, do Núcleo de Apoio e Acompanhamento para a Aprendizagem (Naapa), uma iniciativa da Secretaria Municipal de Educação cujos objetivos são: articular e fortalecer redes de proteção locais; apoiar e acompanhar docentes e gestoras.

Outro ponto essencial neste processo seria uma formação continuada e o envolvimento dos professores, professoras, gestores e demais funcionários da escola nos conselhos ou espaços internos criados especificamente para a rede de proteção. “Se um menino tem uma relação afetiva e se identifica mais com a merendeira e conta para ela que foi abusado, e a escola for fechada e sem uma gestão democrática? O que vai acontecer? Provavelmente, o caso vai ficar personalizado, vai ficar um peso sobre a merendeira, e a chance desse menino ser violentado novamente é altíssima porque a escola falhou no acolhimento e no encaminhamento. Agora, se a escola for aberta, essa merendeira será considerada uma educadora também, fazendo parte dos espaços de diálogo, e não terá medo de compartilhar com a instituição o problema. Assim, essa denúncia será institucionalizada, no melhor dos sentidos, e levada para a rede de proteção da qual essa escola participa”, aponta Bárbara.

A negação do racismo ainda é um obstáculo

Além das questões de gênero, a rede de proteção deve, concomitantemente, mirar nas pautas e práticas antirracistas, dado que as violências cotidianas sofridas por meninas e meninos negros ainda são negligenciada em todos os espaços compartilhados na sociedade brasileira, inclusive nas escolas que, segundo a Educadora Popular Bárbara Barboza, “ainda não assumiram o racismo”.

De acordo com Bárbara, “as questões de gênero estão dadas e são assumidas pela sociedade, mesmo que alguns não queiram debatê-las na escola. Porém, o racismo ainda não foi aceito pela sociedade. A gente ainda está discutindo democracia racial. Veja, por exemplo, as desigualdades que existem nos cargos da escola. Os cargos mais precarizados são ocupados por pessoas negras e pobres, enquanto os diretores, gestores e professores são mais antigos, brancos e de classe média. Essa desigualdade social está atrelada ao racismo estrutural. Se a escola e a sociedade não assumem o racismo como enfrentá-lo?”.

Àqueles interessados em criar uma rede de proteção a partir de suas escolas, recomendamos a leitura do Guia a escola na rede de proteção dos direitos de crianças e adolescentes. Produzido pela Ação Educativa, em 2018, o guia traz referências sobre como realizar diagnósticos, mobilizar a comunidade escolar e criar procedimentos operacionais e de comunicação capazes de contribuir com o acolhimento de alunos e alunas, assim como para o encaminhamento a instituições competentes em casos de violência ou violações de direitos.

ONU Mulheres lança diretrizes para o atendimento de mulheres e meninas vítimas de violência

Tendo diretrizes elaboradas com base em recomendações internacionais, o documento preocupa-se com em conectar mulheres e serviços na pandemia.

Imagem de destaque em que é possível ver uma mulher beijando o rosto de uma menina. Elementos pontilhados e linhas entrelaçadas estão atrás delas.

No ano que marca os 14 anos da Lei Maria da Penha, a ONU Mulheres, em parceria com a União Europeia, lança as Diretrizes para atendimento em casos de violência de gênero contra meninas e mulheres em tempos da Pandemia da COVID-19. Este documento é um instrumento importante para orientar os fluxos de atendimentos remotos, para a maior proteção da vítima e fortalecimento das redes de acolhimento.

Dever do Estado e da sociedade

“A grande questão é saber o quanto o Estado brasileiro e a sociedade estão aliançados e comprometidos com esses 14 anos de uma lei que tem em seu preâmbulo o compromisso de prevenir, punir, erradicar toda e qualquer violência doméstica e familiar contra a mulher. A começar pela prevenção de forma efetiva, a análise que eu faço sobre a mesma durante esses 14 anos é que a sua trajetória tem sido oscilante e por isso mesmo tão vacilante no discurso e nas práticas dos gestores que estão a frente das políticas públicas em todas as instâncias oferecidas às mulheres em situação de violência com de suas famílias.” afirma Maria da Penha, convidada especial no lançamento do documento.  

As diretrizes orientam conselhos de direitos, profissionais de serviços especializados e não especializados em atendimento a mulheres em vítimas de violência, bem como a quaisquer organizações de políticas que acolhem mulheres de todas as idades e raças em situação de violência doméstica e familiar neste contexto de pandemia da COVID-19. 

O lançamento online, realizado no dia 07, de agosto teve a participação da Maria da Penha e Conceição Andrade, do Instituto Maria da Penha, da Cristiane Britto Secretária Nacional de Política para as Mulheres , da Anastasia Divinskaya representante da ONU Mulheres Brasil, da pesquisadora Wânia Pasinato, do embaixador da União Europeia no Brasil Ignacio Ybañez Rubio e a mediação foi realizada pela gerente de Programas da ONU Mulheres Brasil, Ana Carolina Querino.

Assista na íntegra:

Recomendações internacionais como base para as diretrizes

As diretrizes foram elaboradas com base em recomendações internacionais para atuação dos governos em casos de violência contra mulheres e meninas durante a pandemia, em protocolos internacionais de atendimento, fluxos e proteção de dados em casos de crises sanitárias e humanitárias. 

O documento das diretrizes está organizado em três partes: 

  1. Recomendações para a organização dos serviços e da rede para o atendimento presencial e remoto;
  2. Diretrizes para o atendimento;
  3. Recomendações para coleta de dados e o armazenamento das informações sobre os casos atendidos.

“Há no documento uma preocupação com a criação de canais alternativos para conectar mulheres e serviços. A diversificação de meios, utilizando recursos tecnológicos, telefonia, internet, aplicativos é importante. Mas é insuficiente numa sociedade economicamente desigual, social e culturalmente diversa como a sociedade brasileira. É preciso que cada iniciativa seja cuidadosamente planejada na sua implementação – com protocolos, com a capacitação dessas pessoas que poderão atender essas mulheres, cuidados nas formas de divulgação e, principalmente, com a criação de monitoramento para avaliar o sucesso da medida e o acesso aos recursos criados”, aponta a pesquisadora do documento Wânia Pasinato.

Baixe aqui o documento.

Entenda como a Lei Maria da Penha assegura a abordagem de gênero nas escolas

Para ter um futuro livre da violência, crianças têm o direito de saber oque é gênero, assim como o significado das desigualdades e da violência de gênero.

Em colagem, é possível ver menina escrevendo. Ao fundo, há elementos decorativos.

O que a Lei Maria da Penha tem a ver com práticas pedagógicas? Tudo, visto que a educação em gênero como meio de prevenção à violência contra meninas e mulheres é assegurada por este marco legal.

O Art. 8º da Lei Maria da Penha sugere diversas diretrizes a serem tomadas pelo poder público e por entes não-governamentais. Entre elas a elaboração de campanhas educacionais, a capacitação permanente e o destaque nos currículos escolares de conteúdos sobre equidade de gênero, raça, etnia e sobre o enfrentamento à violência contra a mulher.

Além de ser dever do Estado de cumprir com a legislação e garantir o direito educação em gênero nas escolas, as diferentes formas de violência contra as mulheres têm tudo a ver com a vida escolar e práticas pedagógicas. Segundo Ingrid Leão, Pedagoga, Doutora em Direitos Humanos e Integrante do Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) o gênero constitui uma importante dimensão da vida social, produzindo violências e desigualdade: “o gênero está na nossa vida desde que a gente nasce, é um aspecto da nossa vida, da sociedade, tudo à nossa volta é pensado sobre as relações de gênero a todo momento”.

Durante o primeiro semestre de 2020, foram julgadas no Supremo Tribunal Federal sete ações relativas a normas municipais que proibiam a abordagem de gênero e sexualidade nas escolas públicas. A Corte foi unânime em declarar a inconstitucionalidade das leis por desrespeito a valores como a liberdade de ensino e o pluralismo de ideias e o estímulo a desinformações e estigmas.

Para Ingrid Leão, a abordagem de gênero nas escolas seria um dever do Estado e de todas as escolas, e lembra ainda que o Plano Nacional de Educação, sancionado em 2014, também prevê a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”. Deste modo, a ideia de que seria proibido falar de gênero nas escolas é uma “campanha de desinformação que confunde as pessoas e atrasa o enfrentamento da violência no nosso país”, diz Ingrid.

Escola como formação para a cidadania

A pedagoga destaca ainda que a “escola não é um lugar só de letramento, mas de formação para a cidadania. Quando se nega as relações de gênero, a existência da violência de gênero ou se proíbe falar sobre gênero na escola o que estamos fazendo? Estamos assumindo um viés ideológico que aceita essa violência. É uma escola que silencia sobre a violência. É preciso não só falar, mas colaborar para a formação da cidadania”.

A Defensora e Coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria do Estado de São Paulo, Nalida Coelho Monte, compartilha da mesma visão e afirma que, além de ser inconstitucional, qualquer tentativa de proibir o debate sobre gênero nas escolas viola os direitos fundamentais das crianças e adolescentes, pois prejudica seu aprendizado para o exercício da cidadania como, aliás, prevê a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB). “Meninos e meninas precisam saber diferenciar o que é uma violação de direitos, e quais são os estereótipos das nossas supostas obrigações de ser homem e ser mulher. Para reivindicar direitos, exercer a cidadania, é preciso conhecer e entender esses direitos e a escola é o espaço fundamental para isso. Tentar impedir o debate sobre gênero nas escolas seria impedir que crianças e adolescentes sejam capazes de identificar as próprias situações de violações de direitos”, afirma Nalida Coelho.

A pedagoga Ingrid Leão lembra que meninos também são afetados pelas desigualdades de gênero e destaca a importância de questionar o machismo e os modelos de masculinidade aos quais são submetidos: “como vamos exigir de um homem adulto que ele não seja violento, se isso nunca foi falado para ele em lugar nenhum? Se a escola não ensinou desde criança que ele não pode ser agressivo com as meninas e mulheres que ele encontrar pela vida? A gente é responsável por isso! A gente não pode querer falar sobre violência de gênero quando já aconteceu o dano. É preciso focar no desenvolvimento da pessoa”.

Além de ser um direito, o debate sobre gênero protege crianças

Diferentemente do que pensam aqueles que desconhecem o que é gênero, tratar de suas questões nas escolas não geraria conflitos ou prejudicaria crianças e adolescentes. Ao contrário, uma educação sobre gênero pode protegê-los de situações de violência, ensiná-los a respeito dos direitos das meninas e mulheres e evitar que vivam ou reproduzam situações de discriminação ou violência de gênero na vida adulta. As entrevistadas do Gênero e Educação afirmam que muitos casos de violência doméstica poderiam ser evitados caso meninos e meninas tivessem contato com uma educação de qualidade sobre as questões de gênero, obviamente, adequada para sua faixa etária: “como a gente previne esse tipo de situação, senão a partir do currículo? Senão a partir da educação? Senão a partir do debate formativo sobre as desigualdades de gênero no nosso país?”, exalta Ingrid Leão.

As especialistas concordam, no entanto, que tratar das questões de gênero nas escolas não é uma tarefa simples, pode ocasionar dúvidas dos docentes e até mesmo censuras. A Defensora Nalida Coelho lembra que o Nudem auxilia professores e gestores a desenvolver e estruturar debates sobre gênero dentro das escolas e com toda a comunidade escolar, além de apoiar e assessorar juridicamente os profissionais que eventualmente tenham sofrido algum tipo de censura. Sobre este tema, sugerimos a leitura do Manual de Defesa contra a Censura nas Escolas, elaborado pela Ação Educativa e outras dezenas de organizações que trabalham pelos direitos humanos e pela educação.

As entrevistadas destacam ainda que os docentes precisam de apoio para incorporar as questões de gênero em suas atividades: “quanto ao papel do professor e da professora é sempre bom dizer que eles estão dentro da rede de educação, portanto são uma das peças, que não fazem educação sozinhos, tem a direção, tem o livro didático, tem a estrutura, tem a política educacional, o currículo escolar”, lembra Ingrid Leão.

Lei Maria da Penha: mais do que necessária

Em tempos de isolamento social e de aumento nos casos de feminicídio, Lei Maria da Penha se torna mais do que nunca essencial para a vida das mulheres.

Foto de destaque contém imagem de Maria da Penha e alguns elementos decorativos

Em agosto de 2006, foi sancionada a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340), que criou mecanismos para a prevenção e o combate à violência doméstica e familiar contra as mulheres. Apoiada na Constituição Federal e em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, a LMP leva o nome da cearense Maria da Penha Maia Fernandes que, após um longo ciclo de violências, em 1983, ficou paraplégica ao ser baleada nas costas pelo marido. Por mais de 20 anos, Maria da Penha lutou por justiça e mobilizou uma potente rede de apoio até que, em 2002, um grupo de organizações de mulheres elaborou a lei, que foi amplamente debatida com a sociedade e o parlamento brasileiro até a sua sanção. Outra conquista desta luta por direitos foi a criação, em 2015, da Lei n. 13.104 que tipifica o homicídio de mulheres em contexto de violência doméstica como feminicídio.

Transformações culturais e políticas

Para a Defensora e Coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria do Estado de São Paulo, Nalida Coelho Monte, a Lei Maria da Penha representou um “divisor de águas” no Brasil no que diz respeito à compreensão, prevenção e combate à violência doméstica, pois antes o que acontecia dentro dos lares era silenciado e sua criação “passou uma importante mensagem de que não se deve tolerar esta violência”. A partir da sanção da LMP algumas estruturas públicas – como, por exemplo, o sistema de justiça – se organizam para atender adequadamente as mulheres vítimas de violência, a mídia destaca mais as temáticas, profissionais de distintas áreas passam por processos de formação e o debate público sobre o problema se torna mais frequente.

Em 14 anos, a LMP promoveu transformações culturais e práticas sociais, afetando o comportamento e as ações do poder público. No entanto, ainda há um longo caminho a ser percorrido. De acordo com a Defensora Nalida Coelho, todas as formas de violência contra as mulheres resultariam de uma crença social e histórica de que as diferenças entre mulheres e homens hierarquizariam seus direitos e papéis na sociedade e essas violências seriam “a última expressão da desigualdade entre homens e mulheres e da discriminação contra as mulheres”.

Fim da violência exige combate às desigualdades de gênero e raça

A gravidade da desigualdade de gênero no Brasil se reflete nas estatísticas alarmantes. Segundo o Atlas da Violência 2020, produzido pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), houve um crescimento de 6,6% dos casos de feminicídios no Brasil entre 2017 e 2018. A pandemia intensificou o problema uma vez que o isolamento social, necessário para a contenção da COVID-19, forçou a convivência das mulheres com seus agressores, limitou a saída de casa e o contato delas com suas redes de apoio, além de interromper parte dos atendimentos em serviços especializados.

Segundo o FBSP, entre março e abril de 2020, houve queda de 25,5% nos registros de casos de violência doméstica e de 28,2% nos estupros, no entanto, os casos de feminicídio aumentaram 22,2% em relação ao mesmo período do ano anterior. Este paradoxo dos dados indica que, durante a pandemia, as mulheres tiveram mais dificuldade para pedir ajuda, mas continuaram sofrendo e morrendo. A pesquisa Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia, realizada pela Gênero e Número e pela Sempreviva Organização Feminista, revela que cerca de 8,4% das mulheres afirmam terem sofrido algum tipo de violência (física, psicológica ou sexual) nesta quarentena e que as mulheres negras são as principais vítimas (61%).

Se a violência contra as mulheres resulta das desigualdades de gênero e raça, para eliminá-la, é necessário combater o sexismo e o racismo presentes em diferentes dimensões da vida. Neste sentido, a defensora Nalida Coelho argumenta que “o enfrentamento às violências baseadas em gênero e raça passa pela criação e fortalecimento de políticas públicas no sistema de justiça, na segurança pública, no trabalho, na saúde, na assistência social e na educação”.

Imagem: Conselho Nacional de Justiça

Educação como prevenção à violência contra meninas e mulheres é tema de webinário

Evento sobre violência contra meninas e mulheres acontecerá nesta quinta (03/09), às 19h e será transmitido pelo Facebook do Consórcio Lei Maria da Penha.

Foto de divulgação de evento que reúne as miniaturas de rosto das cinco participantes do webinário 'Educação como prevenção à violência contra meninas e mulheres'. São elas: Lídice da Mata, Maria Guaneci Marques de Ávila, Erika Kokay, Ingrid Leão e Regina Célia A. S. Barbosa.

Com o crescimento das notificações de casos envolvendo violência contra meninas e mulheres durante a pandemia, o debate sobre educação e gênero se torna cada vez mais necessário.

Por isso, o webinário Diálogos sobre a Lei Maria da Penha abordará a importância da educação em gênero na educação formal e informal como meio de prevenção à violência doméstica e sexual contra meninas e mulheres (Art. 8º).

O evento discutirá também o que entidades e movimentos feministas têm feito para desmentir falsas ideias que têm circulado no debate público, como a de que existe uma “ideologia de gênero” sendo ensinada nas escolas.

O Art. 8º da Lei Maria da Penha traz diversas diretrizes a serem tomadas pelo poder público e pelas ações não-governamentais, como elaboração de campanhas educacionais, capacitação permanente e destaque, nos currículos escolares, de conteúdos sobre equidade de gênero, raça, etnia e o problema da violência contra a mulher.

+ Saiba porque é importante debater gênero nas escolas

O evento acontece nesta quinta-feira (03) às 19h, pelo Facebook do Consórcio Lei Maria da Penha e pelo canal do Youtube da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto – FDRP/USP.

Sobre as participantes:

Regina Célia A. S. Barbosa – Professora de Direito, Advogada e Vice-Presidenta do Instituto Maria da Penha;

Ingrid Leão – Doutora em Direitos Humanos, integra o CLADEM Brasil e o Projeto Gênero e Educação;

Erika Kokay Deputada Federal (PT/DF), Frente Parlamentar Feminista Antirracista com Participação Popular;

Maria Guaneci Marques de Ávila – Assistente Social, Promotora Legal Popular em Porto Alegre, formada pela Themis;

Lídice da Mata – Deputada Federal (PSB/BA), Frente Parlamentar Feminista Antirracista com Participação Popular.