Live marca lançamento do site Gênero e Educação

Evento ocorre neste dia 30/07 às 17h e será transmitido pelo Facebook do projeto Gênero e Educação.

Hoje (30/07), às 17 horas, a inciativa Gênero e Educação  lança seu novo site como forma de reafirmar seu compromisso com a agenda de gênero, raça e sexualidade no debate público e nas escolas. O portal reunirá conteúdos noticiosos, teóricos, informativos e pedagógicos em prol da igualdade de gênero na educação, sempre abordada em uma perspectiva interseccional articulada às desigualdades de raça, sexualidade e renda. 

A data escolhida para o lançamento estabelece relação com o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e o Dia Nacional de Tereza De Benguela, celebrados no 25 de Julho. Marco importante na agenda do movimento negro, a data celebra a vida e história de mulheres negras que assim como Tereza de Benguela, mulher negra quilombola chefiou o Quilombo do Quariterê durante período da escravidão, viraram grandes símbolos da luta antirracista no país.

Honrando a memória de Benguela e com o tema “Educadoras negras em luta por uma escola antirracista”, a live de lançamento da nova versão do site busca visibilizar a importância das mulheres negras no enfrentamento do racismo e sexismo no campo educacional e na construção de práticas pedagógicas comprometidas com o ensino da cultura e história africana e indígena em sala de aula (Leis 10.639/03 e 11.645/08).

O lançamento é resultado de um amplo trabalho de articulação política da Ação Educativa em parceria com Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), Ecos – Comunicação e Sexualidade, Geledés – Instituto da Mulher Negra e Fundação Carlos Chagas. O projeto conta com o apoio do Fundo Malala, criado pela ativista paquistanesa e Prêmio Nobel da Paz, Malala Yousafzai.

Sobre as participantes:

Benilda Brito – Coordenadora do programa de Direitos Humanos do Odara – Instituto da Mulher Negra, integrante da Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras e do Fórum Permanente de Igualdade Racial.
Givânia Silva – Professora, quilombola, pesquisadora nas áreas de educação e gênero em quilombos. Membra fundadora da CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas.

Luana Tolentino – Mestra em Educação pela UFOP. Foi professora de História em escolas públicas e atualmente professora universitária. É autora do livro Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula.

Luiza Alves – Educomunicadora em formação pela USP. Estagiária do projeto Gênero e Educação. Integrante das redes Friday’s For Future Brasil, Engajamundo e da 5ª edição do Programa Embaixadores da Juventude da UNODC.

Pandemia: como fica o retorno das creches e pré-escolas?

Especialistas em Educação Infantil comentam os desafios da retomada diante da pandemia.

Mulher passa álcool gel na mão de menino no seu colo. Ambos usam máscaras de proteção.

Por: Raquel Melo

A Educação Infantil é uma etapa essencial da Educação Básica, reconhecida como um direito das crianças, cuja função social é promover seu desenvolvimento integral, nas dimensões física, psicológica, intelectual e social. Suas práticas pedagógicas pressupõem o contato físico entre crianças, educadores e profissionais, assim como a exploração compartilhada de materiais, brinquedos e espaços, experiências imprescindíveis para a aprendizagem como afirma a psicóloga, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (MIEIB), Silvia Cruz, “a criança só aprende na interação com os outros, pois precisa explorar, conviver, participar, brincar”.

Esses princípios da Educação Infantil conflitam com os protocolos de saúde para a contenção do novo coronavírus. Como seria possível garantir os direitos educacionais e de saúde dos bebês e das crianças diante desta pandemia? E os direitos dos familiares e trabalhadores que interagem com eles? Profissionais e pesquisadores da área têm questionado a retomada das atividades nas creches e pré-escolas, dado que a covid-19 não está controlada no Brasil.

Na maior parte do país as atividades escolares ainda estão suspensas, mas a socióloga, pesquisadora do Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e também integrante do MIEIB, Rita Coelho, afirma que “suspensão não é sinônimo de proteção da criança”, pois, para algumas delas, especialmente as mais pobres, frequentar a creche é uma questão de sobrevivência e a educação infantil teria “essa função sociopolítica, de proteção da vida e do bem-estar dessa população vulnerabilizada”.

Rita Coelho e Silvia Cruz elaboraram um documento com outras especialistas na Educação Infantil, entre elas a ex-presidente da Ação Educativa, Maria Malta Campos, defendendo que a retomada das creches e pré-escolas seja realizada com planejamento e respeito aos direitos humanos dos bebês e das crianças. A pedagoga, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenadora do Grupo ErêYá, Lucimar Rosa Dias, compartilha desse pensamento, mas demonstra preocupação com o retorno, pois, para ela, os gestores públicos “estão muito lentos para responder essa demanda. Esse novo normal está bem velho porque tomam decisões sem diálogo, sem construir na coletividade”.

Essa postura governamental diante da pandemia pode frustrar o cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação (PNE) para a Educação Infantil. O documento prevê que, até 2024, pelo menos metade das crianças de 0 a 3 anos tenham acesso às creches, mas atualmente apenas 36% delas estão matriculadas. No caso das pré-escolas, a meta é a universalização para as crianças de 4 a 5 anos, hoje esta inclusão é de 94%. Sem um plano eficiente, como garantir os direitos dessas crianças após o fim da pandemia? 

A urgência de planejamento e gestão eficientes

Para as entrevistadas, parte das soluções está no diálogo com a comunidade escolar e na articulação intersetorial entre educação, saúde e assistência social. Esta intersetorialidade pode gerar informações para maior proteção de todos e para o direcionamento inteligente das ações e esforços financeiros nos âmbitos municipal, estadual e federal.

Porém, a desarticulação política e governamental acentua problemas novos e preexistentes como aponta Rita Coelho: “nunca ficou tão evidente a falta de um sistema nacional de educação, isso se agrava porque o Brasil não tem uma coordenação nacional nos Ministérios da Saúde, da Educação ou Presidência. A pandemia revelou as desigualdades estruturais do país e evidenciou crises antigas: problemas de calendário, de infraestrutura, de falta de água, de banheiro, de sala mal ventilada. A ausência de uma coordenação executiva nacional e de um sistema nacional de educação compromete a situação da educação frente à pandemia”.

As especialistas defendem que profissionais e trabalhadores da educação já deveriam ter recebido formação específica sobre a covid-19, pois existe muita desinformação e fake news sobre o tema. Além disso, professores deveriam estar coletando informações, estruturando e planejando o retorno: “deveria haver comitês de crise pensando a organização do espaço físico, em qual grupo volta primeiro. A população vulnerabilizada é grande, não é possível atender todos. O grupo prioritário são as crianças mais vulneráveis, desprotegidas nas suas casas. Será preciso escalonar começando dos mais velhos para os mais novos”, diz Rita Coelho.

Além de seguir os protocolos internacionais como os da Organização Mundial de Saúde (OMS), as escolas deveriam mapear suas comunidades locais, pois, dadas as desigualdades desse país continental, o retorno não será uniforme: “cada escola deve levantar suas próprias questões e definir como atender as crianças com extrema necessidade”. Deste modo, deve-se criar formas de comunicação, escuta e acolhimento das famílias, pois, “muitas estão passando por situações estressantes, de dor, perdas, tudo isso tem de ser acolhido pela escola”, sugere Silvia Cruz que acrescenta: “professores também devem ser ouvidos em seus medos e dúvidas, sendo respeitados e tendo a oportunidade de rever suas ideias sobre a educação infantil. Sem isso, não há sentimento de pertencimento e corresponsabilidade”.

Outra dimensão essencial para as soluções para a educação infantil no pós-pandemia são os investimentos: “quantas pias cada escola deve ter? Qual é o tamanho da caixa d’água? Quantos álcool em gel na entrada? Quantas janelas preciso abrir? Temos que reivindicar esse dinheiro, pois nenhuma secretaria municipal de educação tem esse mapa, ele precisa ser construído da escola para o órgão executivo. Essa iniciativa deveria estar em curso desde abril”, questiona Rita Coelho.

Sobre as rotinas, estrutura e disposição dos espaços, o documento proposto pelas entrevistadas aponta outras medidas que os países europeus estão adotando como: 1) redução de horários; 2) divisão de turmas em grupos e jornadas reduzidas; 3) marcações no chão, corredores e espaços comuns; 4) higienização duas ou três vezes ao dia; 5) refeições simples servidas nas turmas, e não em refeitórios; 6) uso de espaços externos que permitam distanciamento; 7) não fazer uso contínuo dos espaços fechados; 9) deixar portas e janelas abertas.

O futuro da Educação Infantil será ‘normal’?

Para as entrevistadas, a pandemia provocará transformações duradouras na Educação Infantil, nas práticas pedagógicas, nos hábitos e relacionamentos das crianças, professores e profissionais, no entanto, essas mudanças não podem macular os direitos humanos das crianças. “Há limites, não podemos aceitar situações horríveis como as que temos visto em alguns países com crianças dentro de quadrados de acrílico, sem interação, isso não é escola. Não vale tudo. Nossas decisões têm de seguir princípios e valores que já temos”, afirma Silvia Cruz.

Desde o fim do primeiro semestre, lideranças municipais e estaduais têm ensaiado e anunciado planos de retomada das atividades escolares, aparentemente motivados pela economia. Esses planos têm sido frustrados a cada atualização dos números sobre a covid-19, provocando recuos. Silvia Cruz alerta que é preciso uma mudança de mentalidade, pois “não se pode retomar só porque os pais precisam trabalhar, pois não se trata de uma vaga, mas de um direito”.

Parte da pressão sobre os governos vem da rede privada de educação. Estima-se que o setor perca até dois terços das matrículas neste ano*. A professora Lucimar Rosa Dias reconhece a relevância deste impacto econômico no setor, mas critica a postura de certas instituições que “ao invés de conversar e fazer acordos com as famílias, pressionam governos e divulgam inverdades”.

Apesar das incertezas sobre como e quando serão retomadas as atividades, para Lucimar Rosa Dias nada será como antes: “tá todo mundo esperando normalidade, não vai ter. As consequências vão impactar todo o ano de 2021, pois continuaremos com riscos. Vai melhorar com a vacina, mas nossos hábitos vão mudar, não vamos mais abraçar e beijar todo mundo. Isso vai impactar o processo educacional porque ele faz parte do contexto social. Precisaremos tomar mais cuidado. Vai levar tempo, mas precisamos construir novas formas de relacionamento sem ferir os princípios da educação infantil”.

Ainda que a gravidade da pandemia turve o horizonte para a educação como um todo, a pedagoga considera o momento oportuno e deixa uma mensagem de esperança: “as crianças estão aprendendo muito, não só coisas tristes, de mortes e de falta de estrutura, mas também de infância, pois estão próximas de seus pares nas comunidades. Se nós tivermos a sabedoria de ouvir o que as crianças fizeram, aprenderam, construíram, a escola poderá ser melhor. Suas dores e alegrias nesse processo podem ser os conteúdos trabalhados em uma nova educação, melhor e mais democrática”.

* Dados da Federação Nacional de Escolas Particulares (FENEP).

Quais são os desafios de meninas e mulheres negras na educação?

Matéria sobre o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha aborda desafios, conquistas e lutas.

Em foto, é possível ver professora e criança lado a lado. A professora segura uma 'letra B' e a criança, que segura um lápis, observa a professora.

Por: Raquel Melo

Os dados da educação apontam que as trajetórias dos meninos e das meninas negras – seu acesso, permanência e desenvolvimento escolar -, são impactados pelas desigualdades sociais no Brasil, e pela ausência, insuficiência ou ineficiência das políticas públicas no combate ao racismo e ao sexismo.

Cerca de 95,8% das crianças negras, de 6 a 10 anos, frequentam o primeiro ciclo do ensino fundamental, taxa equivalente à população branca desta faixa etária (96,5%). A partir daí, as trajetórias escolares da população negra sofrem sucessivos reveses: entre os que não concluíram a educação básica, 71,7% são negros; apenas 18,3% dos negros entre 18 e 24 anos frequentam o ensino superior, contra 36,1% dos brancos da mesma idade.

Que história essas estatísticas contam? Esta pergunta tem inúmeras respostas e para entendê-las é preciso resgatar o passado e suas consequências para a sociedade. Sabe-se que o tratamento desigual dado a meninos e meninas brancos e negros impactam seus futuros. Transformar esta realidade é responsabilidade de toda a sociedade, inclusive dos profissionais da educação.

Em homenagem ao mês das mulheres negras, celebrado em julho, o Gênero e Educação preparou essa matéria sobre a trajetória escolar das meninas e das mulheres negras. Entrevistamos mulheres influentes no campo da educação e dos movimentos das mulheres negras: a pedagoga e integrante do Odara (Instituto da Mulher Negra) e da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), Benilda Brito; a educadora Luana Tolentino; e a socióloga e integrante do Geledés, Suelaine Carneiro. Boa leitura!


Movimentos das mulheres negras e educação

O que determinou a inclusão escolar da população negra no Brasil, especialmente das meninas? Os movimentos das mulheres negras desde o período da escravização, afirmam as entrevistadas. No Brasil colonial, a educação era destinada apenas aos meninos e homens brancos, meninas e mulheres – brancas ou negras – e meninos e homens negros não tinham o mesmo direito. Para estes grupos, nada de educação, só trabalho. Portanto, a educação brasileira começa a ser construída por esta perspectiva sexista e racista, que discrimina as mulheres e a população negra, reservando-lhes um lugar de dominação e exploração.

No Brasil, as mulheres negras atuam desde os quilombos, construindo redes de solidariedade e de estratégias de resistência. Na América Latina e no Caribe, elas compõem movimentos como aqueles responsáveis pela criação, em 1992, do Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, definido durante o 1º Encontro de Mulheres Afro-latino- americanas e Afro-caribenhas, realizado na República Dominicana.

No Brasil, a mesma data foi instituída, em 2014, como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. Tereza de Benguela governou o Quilombo do Quariterê, próximo a atual cidade de Cuiabá, capital de Mato Grosso, entre 1750 e 1770. Histórias como as de Benguela ainda são desconhecidas pela população, pois,segundo a socióloga Suelaine Carneiro, na historiografia nacional, houve um apagamento da população negra e de suas realizações: “os quilombos foram a primeira experiência de democracia no Brasil, mas as crianças entram na escola ouvindo que o negro era escravizado e mais nada”.

Para enfrentar esta invisibilidade, as mulheres negras criaram o Julho das Pretas, dedicando o mês a inúmeras atividades de cunho políticos, culturais, educativos em todo o continente. No Brasil, as iniciativas seguem uma agenda definida coletivamente e o tema para 2020 foi “Vidas Negras em Defesa do Bem Viver”.

Desde 2019, a iniciativa conta com grupos específicos para tratar das pautas da educação, trocando com a comunidade escolar, elaborando materiais didáticos, revisando práticas pedagógicas, realizando feiras de literatura e outras atividades em escolas, espaços públicos e outras instituições. As iniciativas deste ano foram online devido à pandemia. O Julho das Pretas é um exemplo da importância de espaços de educação não formal para a população negra, especialmente para as meninas e mulheres.

Os marcos legais e os avanços na educação

A articulação dos movimentos das mulheres negras conquistou resultados também na educação formal, pois contribuiu para a criação de instrumentos legais para a valorização da cultura e da população negra na educação como a Lei nº 10.639 (2003) e o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, 2010), ambas determinaram parâmetros para o ensino sobre a História e a Cultura Afro-Brasileira nas escolas das redes pública e privada.

Os movimentos também influenciaram a inclusão dos negros e negras no ensino superior pela Lei de Cotas Raciais (Lei nº 12.711, 2012), que determina a reserva de vagas para egressos da escola pública, de baixa renda e negros. Desde sua implementação, houve aumento nas matrículas de negros e negras na graduação: em 2012, eram apenas 13,2%, em 2019, este percentual saltou para 35,8%.

Segundo Suelaine Carneiro, a função social da Lei de Cotas ultrapassou a inclusão universitária desses jovens, pois a partir dela as famílias passaram a discutir suas próprias questões identitárias, pois para ingressar na graduação era preciso dizer “eu sou preto”, “eu sou pardo”, desencadeando diálogos sobre racismo e gênero.

Para Luana Tolentino, as leis são essenciais, mas “a maior luta é contra a
mentalidade” e a construção de uma educação antirracista passa pelas escolhas profissionais da educação, inclusive no ensino superior: “em 2019, orientei um aluno que investigava os currículos de licenciatura em artes cênicas. Ele pegou 43 planos de ensino em um intervalo de cinco anos e só encontrou dois textos sobre a questão racial. Tem um racismo aí, pois este currículo é construído por alguém”.

Com os avanços, vieram retrocessos

Os efeitos positivos dos movimentos das mulheres negras, dos marcos legais e das mudanças dentro do ambiente escolar provocaram reações contrárias aos direitos das mulheres e da população negra como aponta Suelaine Carneiro: “as meninas começaram a tensionar o lugar da mãe e do pai, daí o Escola sem Partido vem de maneira violenta porque mudanças foram conquistadas no comportamento e na concepção de sociedade”.

As entrevistadas entendem que lideranças nacionais ameaçam essas conquistas, pois sinalizam não priorizar as necessidades e os direitos básicos da população, inclusive na educação. E sugerem que uma educação de qualidade depende da constituição de “um novo pacto social antirracista” que garanta a vida e os direitos de todos, especialmente negros e negras, os mais afetados pelas crises sanitária, política e econômica.

Benilda Brito ressalta que a inserção dos e das negras na educação, especialmente no ensino superior, gera incômodos porque eles estariam reescrevendo a história, e, apesar das atuais ameaças, “as escolas não vão conseguir silenciar a questão racial, pois com ou sem lei, há uma chama negra de identidade que está gritando”.

Por uma educação antirracista, anti-sexista e de qualidade

Ao olharmos para o percentual de negras doutoras que lecionam nas pós-graduações no Brasil (3%), é inimaginável mensurar os desafios que superaram em seus caminhos. Suelaine Carneiro lembra que nos estudos sobre educação “olha-se muito para quem sai, mas imagina o que é resistir a tudo isso e permanecer?”. Se é difícil imaginar o passado dessas mulheres, é possível projetar um futuro com mais autonomia e perspectivas.

Para tornar esse caminho possível para mais meninas e mulheres, as entrevistadas defendem o esforço individual e institucional para a construção de uma educação antirracista, antissexista e de qualidade, que questione o currículo e a estrutura escolar. Benilda Brito enfatiza que os professores jamais devem aceitar e reproduzir a pré-concepção racista que naturaliza a incapacidade escolar dos negros, e que suas atuações devem partir do afeto e, para tanto, devem entender seus próprios pertencimentos raciais. Em complemento, Suelaine Carneiro reforça a relevância de uma educação democrática que permita a divergência de ideias e os conflitos.

Essas transformações podem trazer ganhos para o Brasil e para o mundo, pois como lembra Luana Tolentino “quando se impede uma menina negra de acessar a educação, o mundo perde porque foi uma cientista negra, a Jaqueline Goes de Jesus, que é filha das políticas de expansão da universidade pública no Brasil que mapeou o genoma do vírus SARS-CoV-2. Ao se negar o acesso à educação à população negra, nega-se também o seu direito de ser, de existir e de escolher, de ter uma vida melhor”.

STF irá julgar inconstitucionalidade de lei do Escola sem Partido

Em várias decisões, a corte vetou a censura à abordagem de gênero nas escolas.

Após uma série de decisões em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade de leis que proíbem a abordagem de gênero em escolas, a corte se prepara para julgar as ações que questionam a Lei Escola Livre, de Alagoas, única lei estadual no modelo do Escola sem Partido. A lei, sancionada em 2016, está suspensa desde 2017 por decisão liminar do ministro Roberto Barroso, relator da matéria.

A Lei nº 7.800/2016 vedava o que chamou de “doutrinação ideológica” por parte do corpo docente ou da administração escolar. Devido ao caráter vago dessa classificação, que poderia levar a perseguições e ataques aos profissionais da educação, foram abertas três Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). As duas últimas foram apensadas à primeira.

A decisão liminar, em 21 de março de 2017, que cassou os efeitos da lei, apontou vícios formais e materiais – ou seja, tanto por não estar no âmbito da legislação estadual como por ferir a Constituição Federal. Em um trecho, o ministro Barroso ressalta que: “A liberdade de ensinar é um mecanismo essencial para provocar o aluno e estimulá-lo a produzir seus próprios pontos de vista. Só pode ensinar a liberdade quem dispõe de liberdade. Só pode provocar o pensamento crítico, quem pode igualmente proferir um pensamento crítico”.

A ação sobre a inconstitucionalidade da lei de Alagoas havia sido agendada para julgamento em 2018, mas foi retirada da pauta poucos dias antes. Na ocasião, um grupo de entidades da sociedade civil divulgou um apelo ao STF para que fizesse o julgamento. As mesmas entidades também divulgaram o Manual de Defesa contra a Censura nas Escolas, que, a partir de casos concretos, traz recomendações jurídicas e político-pedagógicas para enfrentar situações em que a liberdade de aprender e ensinar é ameaçada. O material contou com o apoio da Procuradoria Federal do Cidadão (PFDC/MP) e do Fundo Malala.

No dia 14 de agosto, além das ADIs 5537, 5580 e 6038 (que tratam da lei de Alagoas), o STF irá iniciar o julgamento das Arguições de Descumprimento de Direito Fundamental (ADPFs) 61, 465 e 600. As três ADPFs se referem a legislações municipais que proíbem o debate sobre gênero e sexualidade nas escolas e têm como relator o ministro Barroso. Ele deferiu liminares nos três casos, suspendendo a aplicação das leis.

Julgamentos anteriores

Ao longo do primeiro semestre de 2020, o Supremo julgou quatro ações que tratavam de legislações municipais que proibiam a abordagem de temas relacionados a gênero e orientação sexual em sala de aula. Em todos os julgamentos, as leis foram consideradas inconstitucionais por unanimidade.

A primeira decisão se deu com a ADPF 457, que teve julgamento concluído em 24 de abril. A legislação questionada foi a Lei n. 1516, aprovada pela Câmara Municipal de Novo Gama (GO) em 2015. Em 2017, a Procuradoria Geral da República apresentou a ação, que passou a ter relatoria do ministro Alexandre de Moraes. A decisão afirma que a “imposição do silêncio, da censura e, de modo mais abrangente, do obscurantismo” contraria o princípio da igualdade perante a lei e que a lei não cumpre o dever estatal de promover políticas de inclusão.

Em 8 de maio, foi concluído o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 526, que questionava a legalidade do § 5º do art. 162 da Lei Orgânica do Município de Foz do Iguaçu, acrescido pela Emenda n. 47/2018 – o trecho proibia qualquer menção a gênero ou orientação sexual em atividades pedagógicas da rede municipal de ensino. A ADPF foi iniciativa do Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Além de ressaltar a incompetência do município para legislar sobre diretrizes e bases da educação, a relatora, ministra Carmen Lucia, afirmou em seu voto que as proibições “suprimem parte indispensável de seu direito ao saber”, além de desobedecerem ao direito à liberdade de cátedra e o pluralismo de ideias.

O terceiro caso, em 28 de maio, foi a ADPF 467, sobre legislação de Ipatinga (MG) que excluía da política municipal de educação qualquer referência à diversidade de gênero e à orientação sexual. Na decisão, o relator, Ministro Gilmar Mendes, entende não apenas que a censura ao debate é inconstitucional, como também que a abordagem de gênero e sexualidade é uma obrigação de secretarias de educação, escolas e professores. “O dever estatal de promoção de políticas de igualdade e não discriminação impõe a adoção de um amplo conjunto de medidas, inclusive educativas, orientativas e preventivas, como a discussão e conscientização sobre as diferentes concepções de gênero e sexualidade”, afirma o voto do Ministro Gilmar Mendes.

Em 26 de junho, o tribunal concluiu o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 460, que se refere ao artigo 2º do Plano Municipal de Educação de Cascavel (PR), de 2015. Segundo esse trecho, é vedada a “adoção de políticas de ensino que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’”. A Ação foi movida pela Procuradoria Geral da República. O relator, ministro Luiz Fux, destacou tanto a inconstitucionalidade formal, pois não cabe a municípios legislar sobre conteúdo didático e formas de ensino, como a inconstitucionalidade material, por contrariar princípios constitucionais, valores democráticos e de autonomia pública e liberdades individuais, a tolerância e a convivência com a diversidade. “A proibição genérica de determinado conteúdo, supostamente doutrinador ou proselitista, desvaloriza o professor, gera perseguições no ambiente escolar, compromete o pluralismo de ideias, esfria o debate democrático e prestigia perspectivas hegemônicas por vezes sectárias”, afirma o voto do ministro. Ele ainda ressalta que a escola e os profissionais de educação são necessários para a formação mais ampla dos alunos, “por mais capacitados e empenhados que sejam os pais”.

As ações mencionadas fazem parte de um conjunto de 15 ações levadas ao STF sobre tentativas de censura nas escolas, quase sempre colocando em questão leis específicas. Já a ADPF 624, proposta pela Procuradoria Geral da República em 2019, trata de todo tipo de normas e iniciativas do poder público que autorize ou promova a realização de vigilância e censura da atividade docente, com base em vedações genéricas e vagas à “doutrinação” política e ideológica e à emissão de opiniões político-partidárias, religiosas ou filosóficas, entre outras. Seu relator é o ministro Celso de Mello. A ADPF 624 cita o Manual contra a Censura nas Escolas como uma das suas referências. Segundo o último levantamento do Movimento Educação Democrática, de 2014 a agosto de 2019 foram apresentados 226 projetos de leis nos legislativos municipais e estaduais de todo o país inspirados nas ideias do movimento Escola sem Partido e de movimentos ultraconservadores similares (https://www.escolasemmordaca.org.br).

Direitos Humanos

Para organizações e redes de educação e direitos humanos, os resultados são mais uma vitória na defesa de uma educação de qualidade e dos direitos das mulheres e da população LGBT, pois a censura às escolas e à atividade docente e a proibição da abordagem de questões de gênero e sexualidade promovem discriminações e violências e estimulam perseguições contra integrantes da comunidade escolar.

Um grupo de organizações e redes de sociedade civil que vem atuando contra a censura nas escolas elaborou subsídios ao STF que atestam a violação de direitos básicos em leis que proíbem a abordagem de gênero e em outras inspiradas no movimento Escola sem Partido. Além do Manual de Defesa contra a Censura nas Escolas, parte das entidades solicitou sua participação nos julgamentos de ações relacionadas à liberdade de ensino como amicus curiae, uma forma de a sociedade civil participar das decisões, oferecendo subsídios relacionados a seu campo de atuação.

Entre as instituições e redes, constam: Ação Educativa, Artigo 19, Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas (ABRAFH), Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), Associação Mães pela Diversidade, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED), Associação Nacional de Política e Administração de Educação, Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED), Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI (ANAJUDH), Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA Ceará), Centro de Estudos Educação e Sociedade (CEDES), Cidade Escola Aprendiz, Comitê da América Latina e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM Brasil), Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação (CEPIA), Conectas Direitos Humanos, Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Confederação Nacional dos Trabalhadores dos Estabelecimentos em Educação (CONTEE), Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, Frente Nacional Escola Sem Mordaça, Geledés – Instituto da Mulher Negra, Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GADvS), Instituto Alana, Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), Instituto Maria da Penha, Movimento Educação Democrática, Open Society Justice Initiative, Plataforma de Direitos Humanos – Dhesca Brasil, Projeto Liberdade, Rede Nacional de Religiões Afro-brasileiras e Saúde (RENAFRO), Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições do Ensino Superior (ANDES-SN), THEMIS – Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME), Associação TAMO JUNTAS – Assessoria Jurídica Gratuita para Mulheres Vítimas de Violência.